“Antes mundo era pequeno, porque Terra era grande. Hoje mundo é muito grande, porque Terra é pequena”, escreveu, sabiamente, Gilberto Gil. Há algum tempo, a dimensão das questões mais existenciais estava limitada ao arco de compreensão da nossa realidade mais próxima. Hoje, dois fatores contribuem para que esse fato tenha mudado. O primeiro foi o que Gil captou bem e transmitiu na letra: o mundo é interconectado pelo advento da tecnologia. Somos – boa parte dos quase 8 bilhões de seres humanos que habitam a Terra – repórteres de plantão 24 horas por dia. Mas há um segundo elemento, tão relevante quanto o primeiro, que faz do nosso mundo uma pequena aldeia global: os problemas da humanidade são cada vez mais comuns a todos, ou seja, afligem a todos nós, habitantes da Nave Terra. Essa pensata, inclusive, esteve muito presente na 13o Social Business Day 2023, realizada em julho, motivo pelo qual escrevo este artigo.
A pandemia deixou muito clara essa interconectividade do planeta – algo que tem avançado ano a ano. Na carta anual de 2020, a Bill & Melinda Gates Foundation já falava em “desigualdade imunológica”, ou seja, que “a Covid-19, em algum lugar, é uma ameaça em todos os lugares”, defendendo, na época, que a vacina fosse acessível a todos os cidadãos do mundo, sem distinção das suas nacionalidades. Este alerta escancara um fato importante de ser considerado: os vírus não conhecem fronteiras. A crise sanitária nos ensinou que um programa de vacinação nacional contra determinada doença é ineficiente se não houver coordenação regional, ou mesmo global, entre as nações. Em paralelo, se há algumas décadas os países resolviam os problemas de desemprego e imigração, por exemplo, com programas governamentais anticíclicos de obras públicas e controle de fronteiras, talvez essas iniciativas se tornem obsoletas, tendo em vista o tsunami de desemprego estrutural que as tecnologias de inteligência artificial ameaçam criar – e com elas as crises derivadas de previdência e seguridade social. Da mesma forma ocorre com relação às mudanças climáticas. De nada adianta um país pretender fazer transição energética em direção a uma matriz limpa sozinho. Se não houver um concerto entre as nações, os esforços são em vão.
O fato de vivermos uma era de problemas comuns a toda a humanidade impõe que estejamos conectados globalmente se pretendermos ser parte da solução dos problemas. São inúmeros os fóruns globais que pretendem ser facilitadores da concertação dos esforços. As Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) são, talvez, o mais evidente deles, e se propõe a enfrentar o desastre climático que já estamos vivendo.
SOCIAL BUSINESS DAY
O professor Muhammad Yunus – prêmio Nobel da Paz de 2006, fundador do Grameen Bank e criador dos conceitos de microcrédito e dos negócios sociais –, há treze anos, organiza um evento global chamado Social Business Day, dedicado a estudar e promover o papel dos negócios sociais como parte da solução para os graves problemas sociais e ambientais que vivemos. São mais de quarenta anos usando e promovendo o poder dos negócios para encontrar respostas para os problemas das nossas sociedades.
Yunus advoga não apenas pelo apoio via microcrédito e capacitação técnica ao empreendedorismo da base da pirâmide social – os quais ele chama de Negócios Sociais Tipo 2 – como defende, também, os negócios que tenham as pessoas menos favorecidas da sociedade como as beneficiárias de produtos e serviços, e que estes contribuam para aliviar a pobreza e a exclusão desses cidadãos. Estes últimos são os Negócios Sociais Tipo 1, que podem ser empreendidos por pessoas de qualquer classe social ou mesmo por grandes corporações que cada vez mais percebem que apenas procurar lucro a qualquer custa vai diminuindo sua relevância perante a sociedade. O racional é, enfim, que a lógica e o poder dos negócios sejam usados como força complementar para a solução dos problemas sociais.
Neste ano, o Social Business Day foi realizado de 27 a 29 de julho, em Langkawi, na Malásia, sob o título Guerra, Paz, Economia e o Futuro dos Seres Humanos. Tive a honra de organizar e representar as atividades conduzidas no Brasil, que anteciparam o encontro internacional. Para isso, organizamos o Fórum Brasil no qual diversas organizações tiveram a chance de contribuir para uma leitura atualizada do campo dos negócios sociais no país: Somos Todas Marias, Trampay e Estante Mágica, entre os empreendedores; Unilever, Fundação Grupo Volkswagen e EDP, entre grandes corporações; Wright Capital e Próspera Social, entre investidores; BNDES, Yunus Negócios Sociais e Artemisia, entre as organizações impulsionadoras do tema, apresentaram suas ações, os principais gargalos e oportunidades no campo, diligentemente apresentadas por Vitor Neia, Diretor-Superintendente da Fundação Grupo Volkswagen para a plateia global presente no evento. Do Brasil, também a Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, enviou um vídeo em que relatou os enormes desafios do setor, bem como conquistas importantes – tais como a redução de mais de 30% no ritmo de desmatamento na Amazônia nos primeiros seis meses de 2023 quando comparados com os números do ano passado.
O que ouvimos em Langkawi trouxe um tom extra de urgência em torno dos problemas e da necessidade de ação imediata. Não há mais tempo a perder.
Segundo Gavin Schmidt, o principal climatologista da NASA, julho de 2023 entrará para a História como o mês mais quente do mundo em centenas, senão, em milhares de anos. E é assustador pensar que talvez seja o mais frio dentre os que estão por vir.
O historiador Yuval Harari diz que, para além da eliminação de postos de trabalho, a Inteligência Artificial ameaça a própria existência do homem ao retirar dele a primazia da construção das narrativas, da qual usufruímos desde a Revolução Cognitiva, há 70 mil anos. É um sinal bastante importante o fato de o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ter anunciado, em julho passado, com os CEOs das principais gigantes do setor de tecnologia, um acordo voluntário de salvaguardas para desenvolvimento de Inteligência Artificial. Segundo Biden, a “inteligência artificial avançada tem o poder de interromper empregos e indústrias”.
AUMENTO DA CONCENTRAÇÃO DE RENDA E DA POBREZA
Quando consideramos fatores estruturais, difíceis de navegar – como as mudanças climáticas e a Inteligência Artificial –, com fatores conjunturais, como a inflação global dos alimentos agravada pela disrupção das cadeias de logística, ainda em decorrência da pandemia, e da Guerra na Ucrânia, vivemos um cenário de aumento da concentração de renda e da pobreza extrema. Segundo um estudo do Banco Mundial, de outubro de 2022, a Covid-19 e a guerra na Ucrânia ameaçam a meta da Organização das Nações Unidas (ONU) de eliminar a pobreza extrema até 2030, e são os maiores reveses nos esforços globais para a eliminação da pobreza desde 1990.
Todo esse cenário revela um quadro em que a consciência não pode mais se dar ao luxo de ser artigo de luxo. Se consumir alimentos que não contribuem para o aquecimento global ou produtos responsáveis com as condições de trabalho ao longo das cadeias de suprimento, era “moderno e chique”, passará a ser questão de ordem.
Se as empresas escolhiam as ações sociais e ambientais mais “bacanas” para constarem em anuários em belas edições gráficas de responsabilidade socioambiental, agora a mensuração dos efeitos maléficos socioambientais de seus produtos e serviços deve virar tão obrigatório quanto reportar a geração de caixa e a política de distribuição de dividendos. Investidores, acostumados a pensar apenas em risco e retorno como as variáveis a serem consideradas nos ativos dos seus portfólios, talvez passem a conviver com o imperativo de calcular o trinômio risco, retorno e impacto na equação. Se eleitores não entenderem a diferença entre fatos e mentiras e continuarem a se colocar a serviço da desinformação apenas por “opinião ideológica”, é nossa própria democracia que estará em risco em escala global.
Isso tudo pode soar incômodo. Mas a cada ano soará menos alarmista. Porque alarmismo é quando tudo está em ordem e há um “chato” dizendo que o desastre está por vir. Agora que o desastre chegou e, em diversas dimensões, a hora é de agir!
MAS AGIR COMO?
São diversas as formas de atuar, e o 13° Social Business Day mostrou, também, o que tem funcionado: Grameen America, sob a gestão de Andrea Jung, ex-CEO da Avon, já desembolsou mais de US$ 3 bilhões nos últimos 3 anos em microcrédito para mais de 175 mil mulheres da base da pirâmide social nos Estados Unidos. Porta-vozes como Jennifer Lopez e Beyoncé juntaram-se aos esforços de tirar as pessoas da pobreza por meio do empreendedorismo de base.
O Grameen Shakti, negócio social do setor de energia, em Bangladesh, já vendeu mais de 1,8 milhão de painéis solares e 1 milhão de fogões biológicos a pessoas sem acesso à energia no país. A Grameen Sunpower Auto, negócio social corporativo com uma indústria de autopeças japonesa, oferece crédito estudantil profissionalizante para pessoas em situação de vulnerabilidade em Bangladesh e as emprega, posteriormente, na indústria de autopeças. Do Brasil, entre tantos exemplos levantados, podemos citar o Já É, iniciativa da Artemisia com o apoio de diversas organizações da Coalizão em Inclusão Produtiva, que promove educação empreendedora via cápsulas de conhecimento no WhatsApp e que já impactou cerca de 30 mil pessoas.
O empreendedorismo não resolverá todos os problemas seríssimos que assombram a nossa geração. Mas não pode ser deixado de lado como uma ferramenta importante no enfrentamento das questões. Como qualquer dom, ele deveria ser incentivado e nutrido, além de direcionado para a solução de problemas reais que enfrentamos na nossa contemporaneidade. Assim, estaríamos colaborando para a construção de anticorpos para as graves doenças sociais com as quais convivemos. Os resultados dessa batalha serão proporcionais a quanto mais estivermos conectados na missão. Que a conexão seja do tamanho da Antena Parabolicamará do imortal Gilberto Gil.
**Luciano Gurgel é diretor-executivo da Artemisia. Bacharel em economia pela Universidade de São Paulo (USP), trabalhou por mais de 15 anos no Mercado de Capitais em diversos bancos (Santander, HSBC e Safra) e durante esse percurso se especializou em operações estruturadas de crédito. Na Yunus Negócios Sociais foi responsável pela estruturação e captação do Fundo de Investimento em Direitos Creditórios da Yunus – o primeiro dedicado ao financiamento de negócios sociais no modelo Yunus no Brasil.
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