Entre quinta e sexta, véspera de uma das eleições presidenciais mais acirradas da história brasileira, convidamos dois articulistas para defender o voto em Dilma Rousseff, dois para defender o voto em Aécio Neves, dois para defender o voto nulo e um para defender o não-voto. Com você, teses bem defendidas, que tentam escapar às desinteligências e à desinformação que tomaram conta dos ânimos neste final de campanha. Para que você termine de formar a sua opinião.
Por Denis Russo Burgierman
Independente de quem ganhar a eleição, o governo brasileiro cometerá pelo menos um grande crime nos próximos anos.
Se a vitória for de Aécio, o crime será o encarceramento em massa de crianças, um jeito covarde de responder emocionalmente ao terrível medo que os brasileiros vêm sentindo (com razão). É vingar-se do caos do sistema de segurança atacando o mais fraco: as crianças que o estado não soube cuidar. Não estou dizendo que pequenos psicopatas não devam ser presos, em nome da segurança pública, e provavelmente nossa lei deveria mesmo saber lidar com casos excepcionais. Mas, do jeito que o projeto foi escrito, não é isso que vai acontecer. Quem vai ser preso, às dezenas de milhares, vão ser meninos negros magrelas nas favelas do Brasil, pelo crime de ser criança, e portanto admirar as crianças mais velhas do bairro, que no caso deles são traficantes. Eles serão presos prestando pequenos serviços para o tráfico e acabarão enquadrados como traficantes: crime hediondo, pena mínima de cinco anos, tome oito para aprender.
E aí eu pergunto: que chance vai ter esse menino na vida? Preso aos 16 anos por empinar uma pipa na favela avisando o primo mais velho que a viatura subiu o morro, enjaulado até os 24, sem educação nenhuma, sem nenhum treinamento profissional, sem nenhum contato fora do crime. Que chance ele vai ter? Que chance teremos nós?
Se a vitória for de Dilma, o crime será na Amazônia, onde cada um dos grandes rios será transformado numa sucessão de represas – Belo Monte é só a primeira de 30. E quase toda a cultura ribeirinha, que está na origem do Brasil, o país mais fluvial do mundo, irá desaparecer submersa. Todo um ecossistema, dependente do maior volume d’água doce que circula na Terra, irá ser afetado, com espécies extintas, florestas inteiras alagadas. Tribos indígenas terão que mudar morro acima, deixando debaixo d’água a terra sagrada dos seus ancestrais, e talvez muitos deles percam a vontade de viver no processo.
Tudo isso em meio ao período de maior incerteza hídrica da história do Brasil, com secas saháricas torrando o centro do país, enquanto chuvas ferozes destroem as bordas. Uma possível explicação para esse enlouquecimento climático é a disrupção dos chamados “rios voadores” da Amazônia, nuvens que carregam quase tanta água quanto o Rio Amazonas, abastecendo a América do Sul inteira. Modificar brutalmente todos os rios da Amazônia em meio a uma crise hídrica sem precedentes é uma imensa irresponsabilidade com a geração de minha filha. Ainda mais quando se sabe que há jeitos bem simples de reduzir o consumo de energia: a mera substituição dos chuveiros elétricos poderia economizar 5%, só para dar um exemplo.
Para mim, é injustificável apoiar esse projeto, e é abjeto apoiar o projeto de enjaulamento de crianças. No domingo eu voto nulo porque é o único voto que me parece possível. Clicar o número de um candidato ou do outro, para mim, equivaleria a carimbar minha aprovação, meu “de acordo”, a pelo menos um desses dois crimes. Pois recuso-me.
Daqui a algumas décadas estaremos contando as vítimas de um desses dois projetos (ou de ambos): as vidas perdidas para a violência, os refugiados do clima, a produtividade minguada, a geração desperdiçada, os suicídios indígenas, as oportunidades deixadas para trás. Voto nulo porque, quando isso acontecer, não poderei alegar ignorância. Eu sei dos crimes, e nada do que eu faça me permitiria deixar de sabê-lo.
Voto nulo não porque os dois candidatos sejam iguais. São diferentes, e é perfeitamente possível preferir um ao outro (eu mesmo prefiro). Mas, para mim, ambos os caminhos são inaceitáveis. Ambos os crimes são imperdoáveis.
Voto nulo contra os marketeiros das duas campanhas, contra o poder tremendo que eles adquiriram, contra a forma como eles se tornaram os principais elaboradores de políticas públicas, permitindo que crimes desse tamanho sejam cometidos em nome de um suposto “bem maior”. Governa-se para agradar a opinião pública, não para atender o interesse público. Voto nulo contra o discurso de ódio das campanhas e de boa parte da mídia, contra uma política que não quer saber das nossas necessidades – quer me impor caminhos pré-escolhidos.
Mas voto nulo em paz. Respeito e aceito os votos diferentes do meu. Entendo que cada pessoa veja o mundo de sua perspectiva. Reconheço os tremendos avanços recentes do país, assim como reconheço as limitações desses avanços. Conheço muita gente que pensa e vota diferente de mim e ainda assim é boa pessoa. Da mesma forma, conheço gente que vota como eu e não vale um tostão.
Voto nulo, ou não. Porque me permito a liberdade suprema de mudar de ideia, quando estiver cara a cara com a urna, se algum dos candidatos me chatear demais entre hoje e domingo, ou se algum deles me convencer que não vai cometer esse crime. Meu voto é meu. E o teu é teu. E a decisão do voto diz respeito apenas a quem vota e à sua consciência. Pois minha consciência me diz que não dá para votar em nenhum desses dois projetos.
Torço para que essa eleição acabe logo, para que nós brasileiros possamos seguir com nossas vidas, com nossos amigos, com nosso trabalho, com nossa família, construindo um país, juntos, 365 dias a cada ano.
Denis Russo Burgierman, 41, é diretor de redação da Superinteressante, a segunda maior revista mensal do Brasil. Autor de livros como O Fim da Guerra (sobre o futuro das políticas de drogas) e Piratas no Fim do Mundo (sobre a caça a baleias na Antártica), Denis foi também produtor-associado do filme Ilegal, e curador-chefe e apresentador da conferência TEDxAmazônia, realizada em 2010 num auditório flutuante no meio da floresta. Foi diretor da Webcitizen, uma startup especializada em aplicativos cívicos. Escreve e dá aulas sobre sistemas complexos.
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