Por Athayde Motta
Você já deve ter lido aqui no DRAFT ou em alguma outra publicação sobre alguém que abandonou o mundo corporativo e uma carreira lucrativa para encontrar satisfação pessoal e propósito dedicando sua vida a uma causa social, indo trabalhar numa ONG ou empresa do Terceiro Setor. Eu fiz o caminho contrário, precisamente pelos mesmos motivos.
Então, depois de 27 anos de uma carreira bem sucedida, pedi demissão do meu emprego como executivo com alto salário e saí em busca de um trabalho inovador, criativo e com impacto social. Mas ao contrário da maioria, saí de uma ONG, abandonei o Terceiro Setor, para cair no empreendimento e me tornar empresário.
Quando fui trabalhar como estagiário no Ibase, ONG criada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1987, as ONGs brasileiras eram um burburinho de inovação e criatividade. Seus membros enfatizavam o compromisso com a transformação social. Havia recursos financeiros abundantes da cooperação internacional, uma democracia a construir e nenhum manual de como fazer isso.
Essa mistura teve um resultado incrível. Algumas das políticas públicas brasileiras mais avançadas, e que ainda hoje são exemplo para o mundo, como o Estatuto das Cidades e Conselho Nacional de Segurança Alimentar, foram incubadas nessa época dentro das ONGs. Essas organizações também foram fundamentais na formulação e aprovação da Constituição de 1988, um modelo global de constituição democrática. Sem a ação incansável das ONGs pela descentralização de poder e recursos, as cidades brasileiras hoje seriam bastante diferentes… e bem mais pobres. E vale lembrar que a internet chegou ao Brasil pelas mãos de uma ONG.
É preciso aprender a captar os recursos que você quer investir
O que mudou desde então? Muito. ONGs e seus membros continuam a enfatizar o compromisso com a transformação – mas o Brasil é um país bem diferente daquele do início da década de 1980, menos pobre e menos desigual. E, por esse motivo, os recursos abundantes da cooperação internacional deixaram de ser enviados prioritariamente para financiar o trabalho das ONGs por aqui.
Ao se tornar menos pobre e um pouco mais democrático, o Brasil se transformou também perante os grandes financiadores internacionais que, por décadas, bancaram a maioria das ONGs brasileiras. O país deixou de ser prioridade para o envio de recursos para se transformar em prioridade para o investimento filantrópico, cujo objetivo é criar organizações nacionais autossustentáveis e que funcionem de modo similar às fundações e ONGs internacionais (ou seja, que financiem o trabalho das ONGs “de ponta” por aqui, que atuem diretamente em projetos comunitários e de monitoramento de políticas públicas locais). O pessoal deixou de mandar peixes e nos convidaram a criarmos por aqui as nossas varas de pescar.
Dessa forma, o Brasil (junto com outros países dos BRICSAMs – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e México) se tornou um celeiro para experimentos inéditos do que se poderia chamar de “empreendedorismo filantrópico” – o que o DRAFT cobre sob a retranca “Negócios Sociais”.
Tornar-se sustentável e desenvolver a capacidade de arrecadar e gerir recursos no Brasil, doados por brasileiros, talvez seja o maior desafio na história das ONGs nacionais. É algo que elas deveriam ter abraçado com o mesmo ímpeto criativo e espírito inovador com que atuaram na defesa dos direitos humanos e das políticas de inclusão social. Para muitos experts no Terceiro Setor, a mobilização de recursos locais é uma tarefa impossível, pois o Brasil não teria uma “cultura de doação” como a que existe nos Estados Unidos ou em países europeus. No entanto, o que a ciência da generosidade (o campo que estuda ações de filantropia, voluntariado e altruísmo) aponta é que não há sociedade que não pratique em algum nível a doação e a troca como elementos de ajuda mútua que reforçam a coesão social, especialmente em momentos críticos como um conflito, crise ou desastre.
E o Brasil não é exceção. Apesar da ampla crítica ao uso do termo filantropia (ONGs preferem praticar a “solidariedade” e empresas fazem “investimento social”), o Brasil tem até mesmo um ato que simboliza sua cultura de doação, praticado inconscientemente por milhões de pessoas em todo o país. Há certamente pessoas que nunca doaram um quilo de alimento, mas é quase impossível que um brasileiro não entenda o que isso significa quando alguém lhe pede isso como uma doação. Pois esse hábito surgiu há apenas 22 anos, em 1993, com a Ação da Cidadania, um movimento criado por Betinho para acabar com a fome no Brasil. E já se tornou um ato familiar, reconhecido, praticado e aplaudido. O que distingue o Brasil de outros países, portanto, não é a falta de uma cultura de doação, mas sim a falta de uma cultura de empreendedorismo aplicada à filantropia, uma cultura de captação dessas doações.
É preciso aprender a comunicar direito aquilo que você faz
Atualmente, há vários “empreendimentos filantrópicos” no Brasil. Há organizações internacionais que sustentam suas operações no Brasil com recursos locais. Outras financiam suas operações em países mais pobres que o Brasil com o dinheiro que arrecadam aqui. E várias outras investem consideráveis quantias para que seus escritórios nacionais se tornem membros autônomos e autossustentáveis de redes internacionais. Além disso, a explosão dos negócios sociais (a nova “nova economia”) no Brasil é amplamente financiada com recursos da filantropia internacional. Infelizmente, a maioria das ONGs brasileira está ausente nessas duas áreas.
Nos últimos anos, dirigi uma organização que tinha o objetivo de mobilizar recursos no Brasil e financiar o trabalho de outras ONGs. Um problema frequente em projetos desse tipo é que organizações internacionais assumem que os parceiros ideais para conduzir essa tarefa são as mesmas ONGs que eram apoiadas por eles até aqui. De fato, estamos falando de duas atividades bastante diferentes: o trabalho de arrecadar e doar (complexo e pouco conhecido no Brasil) e o trabalho de implementar projetos e programas, no qual as ONGs brasileiras têm ampla experiência. Várias organizações internacionais fazem as duas coisas. São pouquíssimas as organizações brasileiras dispostas a fazer o mesmo.
Apesar da reação de muitas ONGs brasileiras a esse novo cenário, eu considero essa uma evolução natural do setor. Ao longo de minha carreira, me preparei para atuar nessa área. Mesmo antes de entender plenamente o complexo mundo do “desenvolvimento internacional” (que reúne um sem número de organizações baseadas em países do Hemisfério Norte dedicadas a atuar na mitigação da pobreza em países pobres) eu me entendia como um profissional desse setor. Por isso, estudei e me capacitei para ser um gestor de projetos, de programas e de organizações. Minha carreira, há quase três décadas, inclui o trabalho em organizações brasileiras e internacionais, atuando no Brasil e no exterior. Meus títulos de mestrado, ambos de uma universidade americana, tratam de temas com que lidei no meu dia-a-dia profissional. Ser um profissional de desenvolvimento de projetos me deu oportunidades profissionais e pessoais incríveis, mas, nos últimos anos, ao lidar com pessoas que se recusavam a aceitar o trabalho de arrecadar e gerir recursos e que preferem contar com o apoio de governos, senti grande cansaço, uma profunda sensação de desapontamento e a necessidade cada vez mais urgente de uma mudança de carreira.
É preciso superar o romantismo e trabalhar para recuperar a relevância perdida
Há três meses, dei o salto – deixei o Terceiro Setor e me tornei empresário na área de marketing digital, trabalhando para atender pequenas e médias empresas. O trabalho é pesado, os desafios são muitos e, de certa forma, continuo próximo dos objetivos de minha carreira nas ONGs. Minha escolha se deu principalmente porque, como franqueado de uma startup elogiada por sua proposta inovadora, me sinto desafiado a ser cada vez mais inovador e criativo. Que isso tenha um impacto positivo na vida de pequenos empresários é, sem dúvida, um enorme bônus. Acho que é dessa forma que vou continuar fazendo diferença para melhor no mundo – mais do que se tivesse ficado atuando à frente de uma ONG.
Será que poderia dizer que minha carreira no Terceiro Setor chegou ao fim? No mercado de trabalho de hoje, aqueles que têm habilidades múltiplas são certamente mais valorizados, ainda que isso possa ser diferente para profissionais negros de meia-idade (eu sou negro, estou na meia-idade e esses são dois problemas presentes no mercado de trabalho brasileiro que eu tenho que enfrentar).
Além do mais, ONGs são necessárias. Sempre serão. Em especial num país como o nosso. Mas elas precisam enfrentar o desafio de se reinventar para se reinserir num Brasil diferente, que não é mais o de 20 ou 30 anos atrás. Não tenho a pretensão de prever meu futuro. E nem de ditar regras. Mas sonho com algumas mudanças de atitude para as ONGs brasileiras, para que elas continuem a ser relevantes no século XXI:
1. É PRECISO APRENDER A CAPTAR OS RECURSOS QUE VOCÊ QUER INVESTIR
Não há nada errado com ONGs que arrecadam e gerem profissionalmente seus recursos. ONGs brasileiras foram sustentadas durante décadas por organizações internacionais que faziam e fazem exatamente isso. As ONGs brasileiras são um caso raro em que o dinheiro dos outros é melhor que ter seu próprio dinheiro.
2. É PRECISO APRENDER A COMUNICAR DIREITO O QUE VOCÊ FAZ
Comunicação não é um projeto ou atividade complementar. Seja para arrecadar recursos, seja para efetivar mudanças, ONGs que se comunicam amplamente com a sociedade estão melhor preparadas do que as que não fazem isso.
3. É PRECISO SUPERAR O ROMANTISMO
A “mística” do ativismo precisa ser revista e dosada. Mesmo no Brasil, ONGs fazem parte de um setor relevante da economia (definida pela IBGE como “fundações privadas e associações sem fins lucrativos” – Fasfil) e formam um mercado de trabalho com habilidades específicas e que precisa se renovar.
4. É PRECISO RECUPERAR A RELEVÂNCIA PERDIDA
As Fasfil estão incluídas no setor de serviços, o que mais cresce na economia brasileira. Embora não haja dados, os “empreendimentos filantrópicos” e os negócios sociais parecem ter crescimento e impactos maiores que as ONGs. Não é impossível que essas organizações desapareçam para dar espaço a outras com objetivos similares, mas que optem por atuar de forma diferente. O maior inimigo da ONGs é a irrelevância. Para que as ONGs brasileiras tenham um futuro promissor, elas não devem se manter apenas atuantes, mas devem ser relevantes para a sociedade em geral. Precisam que sua mensagem seja ouvida, precisam ser necessárias.
Athayde Motta, 51, é microempresário e antropólogo.
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