Flore Wittouck tem 28 anos e é dona do Belga Corner, um dos lugarzinhos novos e bacanas para comer e beber que espocaram nos últimos anos no Itaim-Bibi – um bairro de classe média paulistano que tem se reinventado, especialmente como um polo de gastronomia.
Flore – não se surpreenda! – é belga. Nasceu em Bruxelas e se formou em Antropologia na Universidade Livre da cidade, em 2009. No ano seguinte, estudou Development Management, na London Business College, na Inglaterra.
Em setembro de 2011, Flore se mudou para São Paulo. O marido, Gabriel de L’Escaille, 30, formado em administração pela Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, também na Bélgica, veio para cá a trabalho da consultoria A.T. Kearney. Eles namoram há 10 anos e estão casados há três.
O sonho de Flore era trabalhar com causas sociais. Essa é sua formação e esse era o seu principal intento ao vir morar no Brasil. Tentou trabalhar com o Instituto Ayrton Senna, passou seis meses na Ashoka, mais oito meses na Boavista Seguros, trabalhando com educação financeira, se aproximou da Casa Taiguara.
Esses trabalhos, em geral sem remuneração, não geraram condições de ela continuar atuando na área. A relação não era sustentável no seu lado da régua. Seu visto de dependente não ajudava nada do ponto de vista burocrático.
Em paralelo, Flore se deparou com uma realidade que boa parte das ONGs brasileiras conhece bem – o Brasil não é mais visto, pelos grandes órgãos financiadores internacionais, como um país prioritário para a recepção de investimentos. É um dos problemas de prosperar um pouco – você perde a sua carteirinha de indigente. Você ainda não enriqueceu – mas não é mais pobre.
(Nossa situação, nessa seara, é como daquele adolescente que cresceu e perdeu o conforto e os privilégios da casa dos pais, ao se tornar adulto, só que sem ter se desenvolvido plenamente para gerar sozinho condições para manter, ou a ampliar, seu padrão de vida.)
Sem poder trabalhar no país – vai ver que o Brasil não está precisando mesmo de antropólogos formados em Bruxelas, com especialização em Gestão do Desenvolvimento em Londres, dispostos a trabalhar em projetos sociais por aqui –, Flore decidiu empreender. A falta de oportunidades de emprego é um caminho bem comum para chegar ao empreendedorismo.
Flore tirou um visto de empreendedora – sai em três meses, desde que o estrangeiro comprove que vai investir 150 mil reais no país ou 75 mil reais, empregando dez funcionários.
Sendo uma belga vivendo em São Paulo, Flore decidiu abrir o primeiro restaurante belga da cidade. Mas ela avisa: “Restauranteur não é empreendedor – é apenas dono de restaurante”.
O Belga Corner abriu em fevereiro de 2014. Flore e Gabriel compraram o imóvel na rua Pedroso Alvarenga e o reformaram. “Foi complicado. As plantas registradas junto ao poder público não correspondiam à realidade do imóvel”, diz Flore, que passou por um dos piores pesadelos de todo brasileiro – ter que dichavar os absurdos kafkianos da nossa burocracia.
Outros obstáculos foram a qualidade do serviço – a reforma atrasou três meses. E um vizinho que denunciou a reforma na Prefeitura, o que fez a abertura do restaurante atrasar mais um mês. Ao todo, Flore e Gabriel investiram 1,9 milhão de reais no negócio – o imóvel custou 1,2 milhão de reais, a reforma custou 450 mil reais e os equipamentos de cozinha, outros 120 mil.
Flore emprega 15 brasileiros no Belga Corner. “Pago mais que o mínimo. Mas não acho que pague demais. O que faço é pagar certo”, diz ela, que está todos os dias no restaurante. “Quem vem até o corner quer ver a belga”.
Pergunto sobre as diferenças entre Brasil e Bélgica, do seu ponto-de-vista de empreendedora. (Ainda que Flore considere que apenas abriu um restaurante.)
Na Bélgica, Flore considera que poderia operar o seu restaurante, que tem 80 lugares, com um terço das pessoas que emprega aqui. Ou seja: lá, seriam ela e mais cinco. Lá a mão de obra é mais versátil e produtiva. Assim como considera que lá abriria seu restaurante mais rápido (ou ao menos no prazo combinado), com menos burocracia e com uma qualidade de reforma melhor.
O piso de um garçom em São Paulo gira em torno de 900 reais. Na Bélgica, em torno de 1 200 euros – pouco mais de 4 mil reais. Na Bélgica, segundo Flore, um casal com um filho vive bem com uma renda mensal de 6 mil euros – pouco mais de 20 000 reais. Bem, você faça a sua conta e a sua própria comparação com nosso custo de vida por aqui.
“As leis no Brasil mudam muito. E é muito caro e demorado resolver problemas. Aqui também tem o risco trabalhista, que na Bélgica não existe”, diz ela. “A situação por lá, hoje, não é boa para conseguir emprego. Há muitas pessoas que se acomodam no sistema de welfare. Mas a situação no Brasil deteriorou muito desde que chegamos aqui, em 2011”.
Flore diz que os alugueis em São Paulo são mais caros do que na Bélgica. Um apartamento de 130 metros quadrados, num bom bairro de São Paulo, com IPTU e condomínio incluídos, pode custar 6 mil reais. Em Bruxelas, Flore diz que alugar um imóvel semelhante custaria algo como 1 700 euros – um pouco menos de 6 mil reais.
Para cobrir os custos do Belga Corner, Flore precisa ter 30 pessoas no almoço e 45 pessoas no jantar, todos os dias. Desde que abriu o restaurante, há pouco mais de um ano, ela diz só ter perdido dinheiro em um mês – setembro. O faturamento mensal de Flore gira em torno de 120 mil reais por mês.
O carro chefe da casa é o Waffle de Bruxelas. E a cerveja belga que Flore importa diretamente de lá, da grife Alexandre Dumont. Ela já trouxe – para serem esvaziados por sua clientela – 2 600 garrafas de 750 ml e 48 barris de 30 litros.
O Belga Corner atrai muito estrangeiros – especialmente belgas e franceses. Algo como 15% da clientela são gringos. “Nossas receitas são da família, de amigos”, diz Flore, que tenta oferecer a experiência belga mais autêntica possível a seus frequentadores. Apesar do chef, Isidorio Assunção, ser brasileiríssimo. “Eu achei no www.seuchef.com.br, entre 80 currículos”, diz Flore, com o sorriso safo que dificilmente sai do seu rosto.
Outra especialidade da casa são os pittas – os hambúrgueres belgas, em pão libanês, uma influência das culinárias turca e grega. O steak tartar e os mexilhões também saem bastante. Muitos itens da casa – um lugar que realmente oferece uma atmosfera internacional e cosmopolita –, como as cadeiras, por exemplo, vieram da Bélgica.
Flore já tinha vindo ao Brasil, em 2009, com uma amiga. Passou um mês e meio conhecendo lugares em que a maioria dos brasileiros nunca pôs os pés: Manaus, Santarém, São Luís, Fortaleza, Paraty, Ouro Preto. Sozinha com sua amiga, viajou 60 horas dentro de um ônibus atravessando o sertão e outras 24 horas dentro de um barco na Amazônia. (Entendeu agora porque ela acha que abrir um restaurante em São Paulo não é uma iniciativa ousada o suficiente para ser considera “empreendimento”?)
Suas impressões daquela viagem? “Viajar no Brasil é caro. Mochilar na Ásia custa metade do preço. Os hotéis e o transporte são caros por aqui”, diz. De resto, achou o Rio feio, São Paulo divertido (sente apenas a falta da natureza) e não acha que o país seja um lugar perigoso.
Flore acha também que o jeitinho brasileiro é, em geral, uma coisa boa. Do que ela não gosta? “Quando um sujeito marca e não aparece, por exemplo. Ou quando falta profissionalismo e a pessoa não leva a sério aquilo que faz, como se a sua atividade não representasse a sua carreira. Aí uma entrega feita de qualquer jeito passa a ser admitida”, diz ela.
Um dia Flore e Gabriel irão embora. Para Istambul ou para Londres ou para Kuala Lumpur. Gabriel é um consultor globetrotter – e sua carreira provavelmente o levará para outros voos. Flore talvez tente retomar a sua carreira junto a projetos sociais – seu coração ainda pulsa nesse setor. Então é possível que outra simpática e acolhedora esquina belga surja, noutra cidade, em algum outro país, para alegrar outro povo. Mas é possível também que tenhamos a chance de desfrutar da hospitalidade de Flore em terras paulistanas por mais tempo. Por via das dúvidas, recomendo que você se agende logo para ir lá provar um waffle ou um pitta…
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