Por Henry Alfred Bugalho
Era um sequestro-relâmpago.
Eu e dois criminosos aguardávamos o retorno do terceiro que havia ido até o caixa eletrônico com o meu cartão.
Tive medo de morrer, mesmo assim estava estranhamente calmo. Conversei com eles na maior naturalidade e, quando perguntaram o que eu fazia da vida, hesitei.
Eu estava desempregado, mas respondi que era escritor.
“Agora você vai ter sobre o que escrever” — um deles disse. E nós três rimos.
Isso me aconteceu em 2005.
Adoraria dizer que fui embora do Brasil por causa da violência, e não deixaria de ser verdade.
Nasci e cresci em Curitiba: a cidade-modelo brasileira, um pedacinho da Europa no Brasil.
Minha cidade mudou muito em pouquíssimo tempo. Em menos de quinze anos, ficou irreconhecível. No Centro, onde eu morava, era impossível não esbarrar nos mendigos e meninos de rua. Em frente de casa, havia um beco, e todos os dias víamos os jovens entrando e saindo de lá para fumar crack. À noite, a marquise do restaurante bacana do outro lado da rua virava abrigo para os sem-teto. No restaurante chinês abandonado ao lado, a polícia desmantelou uma boca de fumo; nunca vi tanta gente sendo presa de uma única vez. Em dias de partida de futebol, as torcidas organizadas aterrorizavam, quebrando ônibus e estações. Num domingo de manhã, havia um homem esfaqueado na frente do meu prédio.
Mas não foi por isso que, em 2006, eu e Denise, minha esposa, deixamos o Brasil. Não foi só por isso.
Penso que a moléstia que dá base a todas as outras no país é a corrupção. E corrupção não é só roubar bilhões da Petrobras; ela está presente também nos pequenos atos desonestos cotidianos, perpetrados por (quase) todos nós, pequenas propinas que acabamos pagando para que as coisas funcionem, pequenas vantagens que vamos amealhando nessa cultura de cada-um-por-si. A grande corrupção do político e a pequena corrupção da pessoa comum, do tal “cidadão de bem”, são a mesma coisa. É isso que sempre nos atrasou. E é isso que está destruindo o país.
Foi a corrupção que deu o golpe de misericórdia na empresa em que minha mulher trabalhava, acabando com o emprego dela e de outras milhares de pessoas.
Um dia nos percebemos trancados dentro de casa, com medo de morrer, de sermos assaltado, baleados, esfaqueados, agredidos. E nos vimos também com medo de morrer de fome. Insegurança física e insegurança econômica. Fiquei cinco anos desempregado após acabar a faculdade; portanto, sabíamos que ela não encontraria uma nova ocupação do dia para a noite.
Juntamos o pouco dinheiro que tínhamos, vendemos algumas coisas, e demos no pé. Eu, formado em Filosofia e há dois anos esperando a convocação para assumir uma vaga de professor na rede estadual, tinha 25 anos. E ela, comissária de bordo há 6 anos, tinha 24.
Em Nova York, foram quatro anos. E, por lá, comemos o pão que o diabo amassou. Fizemos de tudo, vendemos água, fomos garçons, fizemos bicos e, por fim, nós nos tornamos passeadores de cães.
Um trabalho dos sonhos, devo dizer, se você não se importar de recolher cocô de cachorro. Ganhávamos relativamente bem — 25 dólares por hora por cada cachorro! Frequentemente, caminhávamos com dez ou mais cães de uma só vez —, trabalhávamos ao ar livre, sem ter de ficar olhando para a cara de um patrão, passeando por uma das cidades mais lindas do mundo.
E eu ainda escrevia. Decidimos escrever um guia de viagens para pobretões como nós, e esse livro, lançado independentemente em 2008, se tornou um sucesso. O Guia Nova York para Mãos de Vaca vendeu vários milhares de exemplares e atraiu a atenção da imprensa brasileira.
Em 2010, demos o passo mais ousado — alguns provavelmente diriam “irresponsável” — de nossas vidas: viramos nômades.
Esta ideia veio de uma soma de fatores. O trabalho com os cães era maravilhoso, mas nunca tínhamos folga. Simplesmente ficávamos 365 dias por ano à disposição dos nossos clientes. Queríamos novas experiências. Podíamos continuar em Nova York, e ter apenas essa cidade ao nosso alcance, ou abrir mão daquela vida estabelecida e conquistar o mundo.
Buscávamos um lugar ideal, para nos fixar e viver o resto dos nossos dias. E como ainda não descobrimos que lugar é esse, continuamos procurando.
Nesses últimos nove anos, moramos em oito países diferentes. Depois dos Estados Unidos, fomos para a Argentina, de lá para a Itália, depois para a Espanha, Portugal, de volta para Espanha e agora estamos na Inglaterra. Eu, minha esposa e nossa cachorrinha que está há quase quinze anos conosco, todos dentro de um carro, de um lado para o outro.
Em 26 de agosto de 2013, nosso filho nasceu na Espanha, e acabou entrando nessa nossa vida louca também.
Pensamos em mudar ou ficar, ano após ano. Se está bom, ficamos um pouco mais. Se está ruim, abortamos tudo e seguimos adiante, vendendo ou jogando fora todas as nossas coisas. Em nosso último apartamento, em Madri, praticamente não tínhamos móveis: apenas colchões e a minha mesa de trabalho.
Aprendemos a viver com o mínimo necessário, e somos felizes assim. O importante é estarmos juntos e bem. Todo o resto é supérfluo.
Queremos que o nosso filho entenda esse estilo de vida sem raízes. Ainda está cedo para pensarmos sobre escola, mas sabemos que existem alternativas. O homeschooling – crianças que estudam em casa, educados formalmente pelos pais – é aceito em vários países do mundo, e há métodos ainda mais radicais e revolucionários. O crucial é que ele compreenda que é livre, que todas as amarras impostas pela sociedade são ilusórias.
Utopia?
Talvez não.
A venda da nossa produção – os guias de viagem – e os anunciantes em nosso blog nos permitia esta mobilidade. Jamais pensei que fosse possível viver de escrever. De 2010 até 2014, esse foi o meu trabalho em tempo integral.
Ano passado, uma empresa de viagens pirateou o nosso trabalho e nossas vendas caíram significativamente. O dólar disparou e, como nossa renda era gerada em real, precisei começar a trabalhar como tradutor. Em parte, a decisão de vir para a Inglaterra teve motivos econômicos; minha esposa queria trabalhar também e na Espanha simplesmente não há emprego. Não sabemos até quando ficaremos por aqui. Nós nunca sabemos – e isso, que para a maioria das pessoas pode soar como um pesadelo, é parte importante do nosso sonho. O projeto inicial é sempre ficar uns três ou quatro anos.
Mas, de fato, nunca sabemos. Pode ser mais, pode ser bem menos tempo também.
A primeira coisa que você aprende ao viver em tantos países diferentes é que não existe um lugar perfeito. Mas alguns são mais imperfeitos do que outros.
Convivemos com a tensão racial nos guetos de Nova York; engolimos a grosseria e o sarcasmo dos portenhos, além da inflação galopante na Argentina; debatemo-nos com a enlouquecedora burocracia italiana; enfrentamos o racismo, a xenofobia e a crise espanhola; caímos em ciladas bem ao estilo “jeitinho brasileiro” em Portugal; e agora estamos criando limo no legendário mau tempo britânico.
Todos os lugares têm seus problemas, pequenos ou grandes. E tudo dependerá de como você lida com eles. Do tamanho que cada uma dessas dificuldades tem para você.
A segunda coisa que você aprende é que todas as pessoas são iguais. Os costumes, idiomas ou feições podem ser muito diferentes, mas, no fundo, todos querem ser felizes e respeitados. Todos querem segurança e conforto. Todos querem estar cercados pelas pessoas que amam.
E talvez aí esteja o segredo para que alguns países deem mais certo que outros. O que percebo é que nos países civilizados, onde as coisas funcionam melhor, onde as pessoas são mais respeitadas porque respeitam mais também, há uma consciência de que é você quem tem de fazer as coisas acontecerem. Não dá para ficar esperando o governo, o presidente ou o prefeito tomar alguma providência; é fundamental que você arregace as mangas e gere a transformação. Nós somos o primeiro elo desta cadeia. O cidadão é o gatilho. Se ele estiver quebrado, todo o resto também ficará inerte.
No auge do “milagre brasileiro” da década passada, conhecemos muita gente que regressou do exterior para o Brasil. Estas pessoas nos diziam:
“Voltem! Voltem que aqui está bom!”
Até fomos a turismo algumas vezes, mas nunca nos deslumbramos com a ideia do retorno.
Minha sensação é que o Brasil melhorou para pior. Os salários podem ter melhorado. Muitos conseguiram financiar carro e casa. Muitos conseguiram viajar. Mas essa é a terceira coisa que aprendemos em nossas mudanças: viver bem não é ter mais coisas.
É evidente que há ricos em todos os lugares do mundo, ostentando carrões e roupas de grife. Mas as pessoas comuns em muitos desses países que vivemos valorizam aspectos muito mais simples da vida.
As ruas de Nova York ficam lotadas à noite. Há um fascínio pelo espaço público e pela liberdade, e é possível desfrutar desses prazeres sem o medo constante da criminalidade.
Os italianos comem e bebem bem sem pagar tão caro. Uma ida a um mercado ou a uma feira de rua em qualquer vilarejo italiano é de encher os olhos. Eles têm orgulho de sua dieta, da altíssima qualidade do que consomem, da proveniência dos seus alimentos, do que produzem e exportam.
E o respeito aos idosos na Espanha? Os senhores e senhoras reunidos nas praças até tarde da noite, bebendo cerveja e conversando, com uma das maiores expectativas de vida do mundo, com uma saúde pública invejável como não encontramos em nenhum outro lugar.
Por fim, as oportunidades inacreditáveis que existem no Reino Unido, com verdadeiras histórias de ascensão social, de pessoas que chegaram com a roupa do corpo e que conseguiram ascender barbaramente.
No fundo é isso que compõe a felicidade das pessoas mundo afora, e não o patrimônio. Tem mais a ver com as condições gerais, de que todos desfrutam, de detalhes que fazem o dia-a-dia ser mais agradável ou não – do que com o acúmulo de bens, do que condições que só existem no âmbito individual. Gente remediada, em países mais equilibrados, tem uma qualidade de vida muito melhor do que pessoas de classe média alta em países muito desiguais, como o nosso.
Eu adoraria poder viver e ser feliz em meu próprio país, mas conquistei fora tudo aquilo que jamais conseguiria em minha própria terra, onde o básico se tornou um luxo, e o luxo, uma obrigação. Saber que você vale mais do que o carro que dirige ou do que a roupa que veste é inestimável. Dignidade não tem nada a ver com quanto você tem no banco, mas com como você é tratado diariamente pelas demais pessoas, pelos serviços públicos, pelas empresas. Não é querer muito ter seus direitos respeitados.
A princípio, emigrar pode parecer um baita ato de coragem. Hoje penso que não é nada disso. Emigrar é um ato de desespero. A decisão acontece naquele instante em que você não vê mais uma luz no fim do túnel, quando um destino longínquo, num lugar em que você não conhece ninguém, não tem família nem amigos, parece ser a única alternativa possível para autorrealização.
Às vezes, partir é a única solução.
Às vezes, a maior coragem de todas é ficar.
Henry Alfred Bugalho, 34, é curitibano, formado em Filosofia, e especialista em Literatura e História. Autor de romances, novelas e contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca” e do “Nova York, Bairro a Bairro”, e do “Curso de Introdução à Fotografia do Cala a Boca e Clica!”. Residiu em Buenos Aires, Itália, Portugal e Espanha; está baseado, atualmente, na Inglaterra, com sua esposa Denise, o filho Phillipe, e Bia, a cachorrinha da família.
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