A biotecnologia traz enormes benefícios à agricultura, desde o aumento de produtividade nas lavouras, redução de perdas e custos na produção, otimização do uso de agroquímicos, até a possibilidade de ganhos nutricionais nos alimentos. Mas seu impacto positivo não se restringe ao setor alimentício. A manipulação de organismos ocorre, por exemplo, em atividades como a produção de biocombustíveis e o tratamento de rejeitos de minérios (no caso da técnica chamada de bio lixiviação bacteriana), e até para fabricar produtos aparentemente triviais, como o sabão-em-pó, em que bactérias geneticamente modificadas são usadas para produzir enzimas que removem manchas de gordura.
É na área da saúde que a biotecnologia encontra algumas de suas aplicações mais benéficas e abrangentes. Por meio da engenharia genética, também conhecida como tecnologia do DNA recombinante, medicamentos dependem diretamente do desenvolvimento e da atuação de organismos geneticamente modificados. Hoje, o tema está ainda mais em evidência por conta de uma nova solução desenvolvida no laboratório: a produção de mosquitos transgênicos.
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil registrou 1 milhão e 600 mil casos prováveis de dengue em 2015 – o número mais alto desde que a incidência começou a ser computada, em 1990. Recentemente, o mosquito Aedes aegypti, que também transmite a chikungunya, passou a ter mais atenção dos órgãos de saúde por conta da doença causada pelo vírus zika, que deixa sobretudo as gestantes alarmadas devido à associação (ainda não esclarecida) com a microcefalia.
Mosquitos de laboratório
Para combater o inseto, a empresa britânica Oxitec começou a pesquisar, em 2002, uma solução baseada em biotecnologia. Ovos do Aedes aegypti foram modificados com a inclusão de dois genes. Um deles funciona como um gene indicador da transgenia e deixa os mosquitos fluorescentes ao microscópio sob determinada luz. O segundo gene impede que os descendentes dos mosquitos geneticamente modificados (GM) cheguem à idade adulta: a prole morre em até oito dias após a eclosão dos ovos, impedindo que o ciclo de vida de trinta dias do mosquito seja completado.
Com uma empresa subsidiária em Campinas, a Oxitec dá apoio técnico a um projeto liderado pela Universidade de São Paulo e pela organização Moscamed. As liberações controladas dos mosquitos em território brasileiro começaram em 2011 em Juazeiro, seguido de Jacobina, ambos municípios na Bahia, e mais recentemente em Piracicaba, no interior de São Paulo. O número de insetos soltos depende da infestação original de Aedes aegypti. “Um número típico seria entre 100 e 200 mosquitos por pessoa, por semana”, diz Glen Slade, diretor da Oxitec do Brasil. “Dividido em três liberações, fica por volta de 50 mosquitos por pessoa em cada liberação.”
A linhagem transgênica utilizada é composta apenas por machos. As fêmeas são descartadas. São elas que picam e transmitem doenças, já que precisam de sangue para produzir ovos. Os números são promissores. De acordo com a Oxitec, a população de Aedes aegypti selvagem pode ser reduzida em mais de 90% onde há introdução de mosquito transgênico.
“Os resultados são monitorados por armadilhas de ovos distribuídas por toda a área tratada”, diz Cecilia Kosmann, supervisora de produção e ensaios de campo da empresa. Essas armadilhas são trocadas semanalmente, e os ovos coletados são analisados em laboratório e eclodidos para identificar a porcentagem de larvas do mosquito GM.
Edição de genoma
O genoma de todos os seres vivos, inclusive o humano, é composto pelo ácido desoxirribonucleico (DNA) que por sua vez é composto pelas bases nitrogenadas adenina (A), timina (T), guanina (G) e citosina (C). Daí o termo edição de genoma. “A gente modifica essas letras e produz uma nova proteína. Editamos o genoma para que ele possa funcionar de maneira adequada”, diz Rodrigo Ribeiro Resende, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma vez editado, ou corrigido, esse material genético pode ser introduzido em um organismo por meio de um vetor desenvolvido em laboratório. A técnica está em fase de testes. “Em menos de dez anos, é possível que doenças degenerativas como a do Stephen Hawking, físico inglês que sofre de esclerose lateral amiotrófica, em que a pessoa vai perdendo os movimentos, tenham solução.”
Em 2015, Resende e seu grupo de pesquisadores venceram uma das modalidades do 7º Prêmio Inovação Medical Services – um reconhecimento a iniciativas inovadoras na saúde pública. A pesquisa propõe o uso de metabólitos (produto residual do metabolismo das células) e de moléculas de micro-RNA, bem menores do que uma cadeia de RNA habitual, como biomarcadores para detectar o risco de hipertensão arterial sistêmica, acidente vascular cerebral e pré-eclâmpsia (disfunção dos vasos sanguíneos que pode afetar as gestantes). “Associando a nanotecnolologia com os metabólitos e os micro-RNAs, conseguimos prever se uma pessoa sedentária terá um AVC daqui a seis meses ou um ano.” A pesquisa abre caminho para a confecção de kits de diagnósticos mais baratos e eficientes do que os atuais.
Um caso clássico de impacto positivo em larga escala é o da insulina. Até os anos 1980, quem sofria de diabetes (doença decorrente de defeitos na secreção ou ação da insulina, resultando em episódios prolongados de hiperglicemia) dependia da insulina extraída do pâncreas bovino ou suíno, o que podia provocar reações alérgicas. Isso mudou em 1982. Após anos de pesquisa, a empresa californiana Genentech conseguiu isolar o gene da insulina humana e transferi-lo para bactérias da espécie E. Coli. Foi baseando-se nesse processo que a empresa Eli Lilly and Company obteve uma solução injetável de insulina purificada que permitia aos diabéticos manter a glicemia sob controle sem risco de rejeição imunológica.
Também por meio da tecnologia do DNA recombinante, pesquisadores do Instituto Butantan, em São Paulo, chegaram, ao fim dos anos 1990, a uma vacina contra o vírus da Hepatite B, doença que ataca o fígado e que pode provocar cirrose e câncer. Hoje em dia, a vacina é produzida em escala industrial, salvando milhões de vidas. Remédios para o combate à Aids e o hormônio do crescimento usado em crianças no tratamento do nanismo também são produtos oriundos dessa tecnologia.
Uma coisa é certa: a biotecnologia tem potencial para melhorar – e muito – a vida das pessoas. Seja qual for a doença, a cura pode estar a apenas alguns anos de pesquisa, a partir do estudo em laboratório das defesas e propriedades dos organismos.