Na rua, quando alguém chama “ei, curioso!”, Marcelo Duarte, 51, se vira logo para olhar, pois sabe que é com ele. Criador da série de livros O Guia dos Curiosos, o jornalista empreendeu ainda antes da crise, em uma época em que ser diretor de redação em uma grande editora era o emprego dos sonhos na área. Ele também é sócio da editora Panda Books, que hoje distribui toda a coleção de nove almanaques temáticos e, em breve, lançará o título O Guia dos Curiosos – Datas e Festas.
O título de “curioso” rendeu ao jornalista mais do que a carreira de escritor e dono de editora. Ele fez — e ainda faz — trabalhos para TV, rádio e conteúdos para empresas, sendo uma de suas empreitadas mais recentes o programa “Tresloucados”, que apresenta no Youtube sobre curiosidades do universo do futebol, acompanhado dos jornalistas Paulo Vinicius Coelho e Celso Unzelte, seus ex-companheiros de trabalho na ESPN.
A carreira de Marcelo começou do jeito tradicional, como repórter na revista Placar, da editora Abril, o que desejava desde que era estudante de Jornalismo na USP. Ele entrou para cobrir férias e saiu como diretor. Nesse tempo, ele passou também por Playboy e Veja São Paulo. Nessa última, ele começou a reunir os fatos que seriam a semente do primeiro almanaque O Guia dos Curiosos. “Eu cobria histórias mais gerais e comecei a guardar na gaveta informações curiosas, como ‘quanto se gasta de calorias em meia hora de natação’ ou ‘quantos metros tem um raia olímpica’, pensando que poderiam ser úteis”, diz.
QUE TAL FAZER UM ALMANAQUE SEM USAR O GOOGLE?
Durante uma viagem ao interior, na casa de uma tia, ele teve a ideia de reunir essas informações e criar o primeiro “O Guia dos Curiosos”. “Na casa da minha tia encontrei uma coleção de livros chamada Enciclopédia Curiosa, dos anos 1960, e aquilo me deu a ideia de criar algo parecido. Inicialmente, achei que poderia ser um almanaque útil para jornalistas”. Em paralelo ao seu trabalho na editora Abril, começou a apurar o primeiro livro sozinho, se valendo da experiência de trabalhar em uma época pré-internet. Foi um sem-fim de busca de contatos em lista telefônica, recado enviado por fax, entrevistas pessoais ou por telefone. “Levei exatamente um ano. Pesquisava de manhã, antes de ir para o trabalho, e escrevia à noite, antes de dormir, depois que meu filho mais velho, o Rodrigo (na época, com 3 anos), dormia. Nos dias de fechamento era impossível seguir essa rotina, então, eu usava também os finais de semana”, conta.
O livro, distribuído inicialmente pela Companhia das Letras, foi um sucesso logo de cara e Marcelo ganhou visibilidade. “Enviei uma carta para o Luiz Schwarcz (dono da editora) com a minha ideia. Era uma carta simples, com alguns exemplos de curiosidades. Ele entrou em contato comigo, marcou uma reunião e pediu uma semana para pensar. Foi aí que ouvi o ‘sim’”, fala.
No livro de capa laranja, os leitores encontraram respostas para perguntas como “o bocejo é contagioso?” ou “quantas velas seriam necessárias para copiar a claridade do sol”?. O almanaque se tornou um clássico nas pesquisas de crianças e adolescentes nas escolas. Como diz Marcelo, a cultura de almanaque, na época, estava um pouco esquecida, mas é algo que sempre chamou muito a atenção de crianças e adultos. “Eu sentia que as crianças ficavam poderosas com o livro, aprendendo curiosidades que os pais não sabiam. O resgate do gênero foi feito na hora certa. Quando lancei o primeiro guia, as livrarias não tinham estantes para almanaques. Fui parar na prateleira do humor, veja só. Hoje o espaço para esse tipo de livro é enorme.”
No ano do seu lançamento, 1995, O Guia dos Curiosos foi o livro de não ficção mais vendido – no total, até hoje, 230 mil exemplares foram vendidos. No site da Panda Books, o guia é encontrado por 59,90 reais.
QUANDO A DEMISSÃO FAZ O EMPREENDEDOR
Mesmo com a visibilidade que ganhou com o primeiro guia, Marcelo continuou na Abril. Mas, em 1998, depois da Copa do Mundo, foi demitido. “Eu não imaginava a demissão, meu projeto era ficar por lá muitos anos. Eu era paparicado ao extremo, tinha muitas regalias”, diz. Procurar um novo emprego não foi tarefa fácil, já que a maioria (se não todos) os seus colegas eram da editora Abril. Foi então a hora de assumir um novo cartão de visitas.
Marcelo aproveitou o período pós-demissão para finalizar o quarto livro da série, O Guia dos Curiosos – Brasil (antes, vieram as versões “Esportes” e “Invenções”), e dar andamento a uma nova ideia: lançar um livro chamado Endereços Curiosos de São Paulo, também resultado de informações que reuniu durante seu trabalho como jornalista. Ele levou o projeto a algumas editoras, mas nenhuma topou.
Sem outra alternativa, e sem pensar muito, ele decidiu lançar a livro por conta própria. Assim nascia, em 1999, a Panda Books:
“Fui impelido a empreender. Eu não era um empreendedor nato. Tive uma ideia, acreditei nela e resolvi eu mesmo fazer”
Com o projeto debaixo do braço, ele saiu a campo para conversar com donos de livrarias, com o objetivo de sondar como eles receberiam uma nova editora no mercado. Com o Guia dos Curiosos no auge, o jornalista recém transformado em empreendedor foi bem recebido.
Para abrir a Panda Books, Marcelo usou 100 mil reais de seu fundo de garantia. A primeira sede foram duas salas em um sobrado compartilhado e, além de lançar pela Panda o Endereços Curiosos de São Paulo, ele aproveitou sua experiência em revistas e criou uma publicação digital gratuita voltada para médicos, que viu como uma oportunidade rentável na bolha da internet.
“Foi justamente na época em que os médicos estavam começando a se digitalizar e a comprar computadores. Vendi publicidade para laboratórios farmacêuticos e tive um resultado muito bom”, conta. Nesse momento inicial, ajudou muito ter contado com a Companhia das Letras (que distribuiu O Guia dos Curiosos por 10 anos) como escola. “O primeiro modelo de contrato da Panda Books foi inteiramente inspirado no que eu tinha com a Companhia das Letras. Aos poucos, claro, fomos adaptando”, fala. Hoje em dia, como conta, Marcelo tem uma relação de troca com sua ex-editora: “O Luiz costuma até me dar dicas de autores”.
Marcelo abriu a Panda com um sócio, que ficou apenas dois meses no negócio. E ele logo percebeu que precisava de uma nova parceria. “Eu tinha dificuldade de lidar com a parte financeira do negócio. Falei com a Patty Pachas, uma amiga que tinha largado o jornalismo para trabalhar na área comercial, e a convidei para assumir essa parte na Panda. Encontrar alguém para me completar em assuntos dos quais eu não entendia foi a decisão mais acertada para o negócio”, diz.
Um pouco depois, a nova dupla chamou Tatiana Fulas para cuidar dos editais para escolas. Hoje, é Tatiana quem também cuida dos livros na etapa em que vão para a gráfica. Com essa configuração, Marcelo ficou livre para fazer o que mais gosta: convidar autores, ter ideias para títulos e buscar oportunidades de temas a serem cobertos. Os três continuam juntos e, atualmente, coordenam um time de 13 pessoas na sede da editora, em um andar de um prédio no bairro de Pinheiros, em São Paulo.
EMPREENDER SEM MORDOMIA
Mas, voltando ao início da Panda. Com uma equipe inicial reduzida, a rotina de Marcelo envolvia um pouco de tudo: atender a porta, subir escada com caixa de livros, carregar o porta-malas. “Eu costumava deixar uma camiseta extra no escritório por que eu acabava o dia todo suado.” Para quem era diretor de redação em uma grande editora, foi uma grande alteração de rotina. Marcelo conta que a dinâmica mudou tanto que, no primeiro ano empreendendo, ele simplesmente esqueceu de pagar o IPVA. “Eu brincava dizendo que, na Abril, nem apontar os lápis eu precisava. Era muito mal acostumado”, fala.
Ele ainda teria muitas dificuldades com o novo negócio, mas a mudança de vida também trouxe vantagens: “Eu morava perto da editora, organizava meus horários e não tinha ninguém no meu pé me pressionando a conseguir milhões. Eu trabalhava mais, mas me cansava menos”.
Depois de um ano, a revista digital para médicos, que era o produto mais rentável, começou a dar sinais de que não seria mais um bom investimento. A decisão dos sócios, então, foi focar nos livros. “Os primeiros títulos foram bons de venda, o que fez a gente se capitalizar. Depois, erramos com alguns, que esgotavam na primeira edição”, conta ele, que se questionava sobre o que estava fazendo:
“Eu me perguntava: ‘o que estou fazendo aqui? Quero voltar para o meu emprego e ver meu salário cair na conta’. Por pouco não desisti”
O que o fez continuar foi o compromisso com os autores que publicava. “Convenci o cara a publicar um livro, como falar para ele desistir?” Para pagar as despesas, Marcelo contava com as vendas do Guia e, pelo menos inicialmente, decidiu manter a distribuição com a Companhia das Letras — até que a Panda Books estivesse mais estruturada.
Aos poucos, a editora encontrou seu caminho. Hoje consolidada, a Panda Books tem um portfólio com quase 500 títulos nas categorias infantojuvenil, futebol, educação, jornalismo, gastronomia e saúde, entre outras. No ano passado, a editora faturou 5 milhões de reais. Alguns dos títulos de maior sucesso de vendas são Tudo Bem Ser Diferente, do californiano Todd Parr, o Doce Veneno do Escorpião, de Bruna Surfistinha, além do próprio almanaque, que hoje integra o portfólio da editora. Em 2015, ano em que completou 20 anos, o Guia ganhou uma edição comemorativa com capa dura (à venda por 65,90 reais na Panda Books).
ALÉM DA EDITORA, UM LEQUE DE ATUAÇÃO DA GRIFE CURIOSO
A curiosidade sempre rondou a vida de Marcelo. A inspiração para seguir o jornalismo veio de uma prima de seu pai, que viajava bastante por conta da profissão e enviava cartões postais dos lugares mais inusitados. Mas, conta ele, o início da carreira foi difícil. Tímido e quieto, Marcelo conta que precisou perder algumas “travas”, especialmente para ganhar confiança e mais “cara de pau”. Ele conta, aos risos, que uma vez foi convidado para o programa Roda Viva, da TV Cultura, e não conseguiu fazer sequer uma perguntinha que fosse ao entrevistado (Carlos Miguel Aidar, então presidente do São Paulo).
Hoje, fazer perguntas é o que move sua carreira e virou sua marca registrada. Um dos projetos de que Marcelo mais se orgulha de ter criado é a página Curiocidade, do Jornal da Tarde. “Foi um prazer enorme fazer a coluna, hoje em dia eu vou a alguns restaurantes e encontro a página emoldurada, de quando o local saiu no jornal”. Com o fim do JT, o material se transformou em uma coluna no Divirta-se, suplemento do jornal O Estado de S.Paulo e assim permaneceu até dois anos atrás.
Atualmente, Marcelo apresenta os programas “Você é Curioso?” e “Manhã Bandeirantes”, na rádio Bandeirantes, além do “É Brasil que não acaba mais”, na BandNews FM. Ele destaca ainda como projetos paralelos a série de figurinhas que fez para o chocolate Surpresa, da Nestlé, em 2000, e vários jogos de tabuleiro para a Grow, entre 1997 e 2002, como Perfil 3, Tira-Teima, Master Júnior, entre outros.
Marcelo tem um site, o Guia dos Curiosos, dois blogs — Blog do Curioso e São Paulo para Curiosos —, além de uma página no Facebook com mais de 260 mil curtidas. “Tem uma pessoa que cuida da página do Facebook e também conto com ajuda para os outros canais. Não atualizo tudo diariamente, mas recebo muita informação e fico naquele ‘formigamento’ quando vejo que é algo que ninguém ainda deu”.
O Google, hoje, é um aliado nas buscas, mas Marcelo não descarta entrevistas e outras pesquisas – até por que, como conta, seu objetivo é publicar o que ainda não está no Google ou procurar alguma novidade dentro de um tema já muito falado. “Eu me obrigo a ler de tudo, por que tudo é referência na hora em que estou criando uma sinopse, um trabalho. É um trabalho árduo”.
Para dar conta da jornada dupla (ou tripla), o trabalho costuma varar a madrugada, fins de semana e, muitas vezes, até as férias são desculpa para descobrir uma curiosidade local. Para dar conta de tudo, ele diz que é muito organizado com horário. Marcelo conta, também, que os filhos Rodrigo, 24, Beatriz, 20 e Antonio, 9, acabam sugerindo pautas, inspirando ideias ou apresentando novidades.
Hoje estabilizado como empreendedor de si mesmo, e tendo tornado a curiosidade uma “grife”, Marcelo está satisfeito com a virada na carreira, iniciada lá atrás, com a demissão e a obrigação de inventar novas formas de dar vazão ao seu talento — e ser remunerado por isso. “Se eu não fosse jornalista, seria uma pessoa triste. Queria gostar menos do que faço, porque ser assim o tempo todo cansa demais. Mas não posso reclamar, o jornalismo me fez viajar muito, cobrir Copa do Mundo e Olimpíadas. E digo que a Panda é uma editora com olhar jornalístico. A gente tem aqui pessoas de faixas etárias diferentes, ouvimos sugestões o tempo todo”, diz o eterno curioso.
Algoritmos, fake news, riscos à democracia. Nunca precisamos tanto de bom jornalismo. Conheça o coletivo independente Matinal Jornalismo, que equilibra o olhar para a realidade local e reportagens com denúncias de alcance nacional.
Denize Bacoccina e Clayton Melo contam como nasceu a plataforma de jornalismo focada em dicas do que fazer na região central da capital paulista. A ideia, agora, é replicar o modelo em outros lugares.