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Pequeno manifesto sobre o atual estado de coisas para quem vive de produzir conteúdo

Adriano Silva - 29 jun 2016
O lugar da curadoria em sua vida. E o valor que você dá aos curadores. Essa é a grande questão de fundo para definirmos como será o futuro para publishers e produtores de conteúdo. (Na foto, a sede do New York Times, um ícone do jornalismo que está reinventando seu modelo de negócios.)
Adriano Silva - 29 jun 2016
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O lugar da curadoria em sua vida, pessoal e profissional, e o valor que você dá aos curadores. Essa é a grande questão de fundo para entendermos e definirmos o que será da indústria da mídia – e, em particular, como será o futuro para publishers e produtores de conteúdo.

Parece claro que a crise dos veículos de comunicação é uma crise de modelo de negócios – não é uma crise de demanda. (Tenho dito isso em minha aula O Futuro da Indústria da Mídia.)

A demanda por boa edição, por bom conteúdo, continua existindo. As pessoas não abriram mão de ler notícias, de se informar sobre os fatos, de se atualizar com as novidades, de buscar análises que lhes ajudem a entender melhor a realidade e a formar suas próprias opiniões a respeito do que está acontecendo.

Ao contrário. Quanto mais conteúdo nós temos disponível no mundo, e quanto mais rápido as coisas acontecem, e quanto mais os eventos nos afetam, e se afetam entre si, por vivermos cada vez mais conectados e em rede, maior é a procura por bons produtores de conteúdo – jornalistas, repórteres, editores, redatores – que produzam informação confiável, bem apurada, bem checada, ponderada, justa, equilibrada, inteligente, relevante, fidedigna sobre o que está acontecendo.

E maior também é a necessidade de bons curadores que nos ajudem a encontrar rapidamente as informações que buscamos, que nos ofereçam atalhos para chegarmos com menos gasto de tempo e energia ao conhecimento que queremos conectar.

A questão, para publishers e produtores de conteúdo, portanto, não é que as pessoas não tenham mais interesse pelo que fazemos. (Fosse assim, teríamos realmente que mudar de profissão.) A questão é como pagar a conta daquilo que fazemos.

O paradigma de negócios tradicional para um veículo – produzir conteúdo, angariar audiência e vender o acesso a essa audiência para marcas anunciantes –, que fundou e sustentou a indústria da mídia ao longo do século 20, já deu mostras de que precisa ser reinventado. Só que nenhum novo paradigma se provou até aqui. Então não sabemos que modelo garantirá a existência dos publishers no século 21.

O certo é que essa posição de gatekeepers, de mídia (no sentido da mediação, de atuar como um intermediário), que os veículos ocuparam historicamente, se tornou muito frágil em um ambiente cada vez mais desintermediado, em um mundo crescentemente medialess.

Essa questão não é fundamental apenas para os publishers – que produzem o conteúdo que você consome. Mas também para você, que corre o risco de ficar sem o seu conteúdo predileto. Bem como para as marcas, que correm o risco de ficar sem os ambientes editoriais que reúnem as comunidades de consumidores e influenciadores diante as quais buscam adquirir visibilidade, reconhecimento, estima, consideração, reputação – e vendas.

A viabilidade econômica dos publishers é uma questão fundamental também para a sociedade, que corre o risco de perder boa parte da multiplicidade de vozes, de visões e de olhares, e de análises críticas e narrativas independentes que, afinal, sustentam a livre circulação de ideias, a produção de informação confiável e a profusão de inteligência em uma democracia.

É tudo isso que está em xeque com a crise dos veículos de comunicação.

 

NÃO EXISTE BOM CONTEÚDO GRÁTIS

Bons conteúdos têm custo. E tudo que tem custo precisa ter preço. Uma oferta, para se manter viva no mercado, precisa encontrar compradores.

A produção de conteúdo é um serviço como qualquer outro, que precisa achar clientes pagantes – ou não se sustentará.

A sustentabilidade econômica é a mais básica para um empreendimento – é preciso cobrir as despesas, os investimentos precisam ter retorno. Ou seja: é preciso haver uma cadeia de valor bem equalizada, com funcionamento regular, na qual todos os elos se sintam satisfeitos em relações de troca que considerem justas. Ou há isso ou não há, de fato, uma cadeia de valor.

Bom conteúdo não aparece do nada, não surge no éter. O conteúdo curado, bem apurado e bem escrito, demanda trabalho duro de repórteres, editores e redatores bem treinados. Esse conteúdo profissional, que é único por sua disciplina de apuração e de checagem (sim, jornalismo), jamais poderá ser substituído pelos conteúdos UGC (User Generated Content) – que inclusive reproduzem, requentam, diluem, copiam e muitas vezes desvirtuam os conteúdos profissionais.

O conteúdo independente também nunca poderá ser substituído pelos conteúdos de marca (Brand Content), embora essa indústria esteja atraindo um bocado de jornalistas para uma nova carreira: “conteudismo”, conforme temos estudado na Academia Draft. Afinal, o compromisso último de um brand content será sempre com os interesses da marca, e não com os interesses do usuário.

As marcas estão se tornando produtoras de conteúdo, mas nunca serão um veículo autônomo, nem farão jornalismo investigativo. Suas vozes editoriais estarão sempre calcadas em uma lógica de Content Marketing. (E é ótimo que seja assim, apenas não podemos confundir isso com “jornalismo”.)

Bom jornalismo dá muito trabalho. E trabalho precisa ser remunerado. Não para gerar grandes margens de lucro (a produção de conteúdo não é um negócio escalável, portanto jamais será um negócio muito lucrativo), mas pelo simples fato de que produtores de conteúdo precisam tomar café da manhã ao acordar, comer alguma coisa ao meio-dia, e, se possível, fazer um lanche à noite. Precisam pagar aluguel e condomínio, e também a conta do celular e da internet, que são ferramentas de trabalho, sem falar no colégio dos filhos e no plano de saúde.

É isso que está por trás do conteúdo que nós nos acostumamos a consumir de graça nas últimas duas décadas – profissionais que precisam receber pelo serviço que prestam. Nenhum desses talentos consegue de graça, na outra ponta de suas vidas, as coisas essenciais de que precisam para sobreviver. Quem tem contas a pagar precisa poder cobrar pelo que faz. Quem traz ao mercado uma oferta de valor precisa poder receber algum valor por essa oferta.

Não é sustentável imaginar que possa ser diferente. Embora muitos consumidores de conteúdo – e também algumas marcas – imaginem que seja possível almoçar todo dia no seu restaurante predileto sem jamais pagar a conta.

 

O PAPEL DOS CONSUMIDORES DE CONTEÚDO

Do ponto de vista do usuário, é preciso começar a perceber que não há almoço grátis. Gosta do restaurante, a comida é boa? Então frequente. Consuma. E pague pelo seu prato. A era do conteúdo profissional, de qualidade, oferecido gratuitamente aos usuários, está com os dias contados.

Isso vale para o hard news da Folha de S.Paulo e de O Globo, por exemplo, que estão fechando partes relevantes dos seus conteúdos para assinantes – a Folha cobra 29,90 por mês, o Globo, 19,90 reais. (O New York Times, um case bem-sucedido desse sistema, conhecido como paywall, cobra 8,75 dólares por semana.)

Essa mesma lógica vale também para a sua revista preferida – Superinteressante, Mundo Estranho, Capricho, Vida Simples. E para sites independentes, como o Draft, o Update or Die e o Brainstorm 9, o Diário do Centro do Mundo e O Antagonista, o Hypeness e o Catraca Livre. Tantos outros. Todos os outros.

Em algum momento, seu veículo preferido precisará que você o ajude a sustentar a operação que produz o conteúdo de qualidade que você consome.

Se todo mundo comer na padoca que você adora, e sair de lá sem pagar a conta, em menos de uma semana você não terá mais a padoca que você adora – ela fechará as portas. É exatamente isso que acontecerá com o seu veículo do coração se os usuários imaginarem que é indevido pagar pelo misto quente e que é usura cobrar pelo café com leite.

Mais um pouco de realidade: a maioria dos veículos independentes, hoje, não paga seus colaboradores. (Esse não tem sido até aqui, felizmente, o caso do Draft.) Os veículos não faturam com o que produzem, e, portanto, não conseguem remunerar os talentos envolvidos nessa produção. Essas relações, baseadas na boa vontade, não são profissionais – o que arrasta os sites necessariamente para o amadorismo.

Isso é muito perigoso: quando as pessoas escrevem para os veículos por outros interesses que não os estritamente profissionais, o conteúdo que você consome sofre muito. O único interesse que pode ser considerado na produção de conteúdo jornalístico é o do usuário. Qualquer outra intenção afeta o veículo em termos éticos, em sua correção editorial, em sua isenção e, portanto, na confiabilidade das informações geradas.

Quem não remunera, não pode exigir. Quem não paga, não tem. Essa é a situação da maioria dos publishers independentes hoje, em relação a sua cadeia de produtores de conteúdo. E, portanto, é a sua situação também, como usuário desses veículos e consumidor desses conteúdos.

Trago duas notícias fresquinhas desse front. Um veículo independente acaba de trocar de ramo, deixando de oferecer conteúdo diário. E outro está considerando passar o negócio adiante. (Estou falando de dois grandes sites, duas curadorias da pesada, que reuniram na sua órbita, ao longo de anos, uma comunidade importante de formadores de opinião.)

Mesmo os publishers tradicionais, da chamada old media, têm encolhido suas equipes e reduzido a sua oferta de conteúdo.

Tudo isso é muito ruim – para os consumidores de conteúdo, sobretudo.

 

O PAPEL DAS MARCAS

Do ponto de vista da marca, vale o mesmo raciocínio. Um veículo criou um ambiente editorial afeito às suas causas e crenças, gerou ao redor de si uma comunidade de influenciadores que lhe interessa? Então o apoie. Ajude-o a crescer, a ficar ainda melhor.

Não adianta olhar de fora e nunca entrar. Não resolve apenas elogiar e aplaudir e tecer loas à importância da existência daquele veículo no mercado – é preciso fechar contratos com ele, ajudá-lo, comercialmente, a sobreviver.

As marcas se tornaram publishers. Se antes eram apenas anunciantes, operando com paid media, hoje passaram a operar também com owned media – produzindo seu próprio conteúdo, gerando sua própria audiência, em seus próprios domínios.

Nesse processo, elas se tornaram curadoras. Mas a curadoria das marcas vai muito além da edição que fazem dos seus próprios conteúdos –por meio dos seus investimentos publicitários, das escolhas que fazem dos veículos onde vão anunciar, as marcas são também curadoras, indiretamente, de todos os conteúdos existentes no mercado.

As marcas têm grande poder para influenciar, de modo decisivo, as plataformas editoriais que vão vicejar e aquelas vão fenecer.

A concentração dos investimentos em mídia no Brasil sempre foi letal aos projetos independentes. A TV aberta fica historicamente com mais de 60% do bolo publicitário – e a TV Globo fica, sozinha, com mais de 70% dessa fatia.

Google e o Facebook entraram no jogo meia dúzia de anos atrás e não trouxeram inovação alguma a esse modelo. Ao contrário: eles o reproduzem à risca. Estima-se que o Google fique com 60% dos investimentos publicitários digitais no país, e que o Facebook fique com outros 10%. Ou seja: juntos, eles teriam a mesma fatia do bolo digital que a TV Globo tem no bolo da TV aberta.

E Google e Facebook entraram nesse jogo de forças e de concentração de dinheiro e poder com uma novidade duplamente letal para os publishers: ambos atraem a verba de marketing dos anunciantes utilizando a custo zero os conteúdos produzidos pelos mesmos veículos que os anunciantes deixaram de apoiar exatamente para poderem investir mais nos dois gigantes.

Ou seja: os publishers ficaram com o custo da produção do conteúdo que Google e Facebook usam como combustível gratuito para as suas operações – nas quais não precisam investir um centavo para produzir uma linha dos textos que publicam nem para editar um minuto dos vídeos que veiculam.

Essa não parece ser uma equação justa. Don’t be evil? Tá bom… Do ponto de vista de um publisher, os dois gigantes operam com uma lógica extrativista, daquele mesmo tipo que dizimou os bisões e os Apaches. Fair trade? Be nice to people? Sei… Na prática, são dois ícones da economia pós-industrial que mantêm, no mercado de mídia, onde decidiram se instalar, práticas de mercado predatórias, de um capitalismo pré-industrial que não faz reféns.

Felizmente, essa também é uma equação que não parece ser sustentável. Ou seja: ela é tão desequilibrada que em algum momento precisará ser revista. A menos que acreditemos que seja possível manter plataformas tecnológicas que se alimentam de conteúdos de terceiros, investindo tudo na plataforma – e nada nos terceiros.

Nenhuma concentração desse nível é saudável. E não só para os veículos, que estão à míngua. Mas também para os usuários e para as marcas, que ficam com cada vez menos opções de qualidade, em termos de ambientes editoriais curados e de oferta de conteúdo profissional.

A concentração dos investimentos em mídia da marca em poucos parceiros talvez torne a vida mais prática para quem administra essa verba – tanto no cliente quanto na agência.

O problema é que isso ignora as crescentes diversidade das pessoas e pulverização dos interesses. E descolar-se dos movimentos da audiência, e dos hábitos e interesses do consumidor, em nome de uma maior conveniência sua, ou de ganhos de curto prazo, é sempre uma má ideia.

Se a regra para uma marca é colocar a sua mensagem onde a audiência está, essa regra não está sendo bem cumprida. As pessoas estão cada vez mais espalhadas, organizadas em tribos, em nichos, em comunidades com interesses específicos – e as mensagens das marcas, de modo geral, continuam muitíssimo concentradas. Como se ainda fôssemos um enorme rebanho preso num mercado de massas indistinto.

O curioso é que isso não acontece porque as marcas não reconhecem o valor dos veículos independentes. Fosse assim, não seríamos bombardeados diariamente pelas assessorias de imprensa. Ou seja: publishers relevantes têm a sua relevância reconhecida pelas marcas – mas somente na esfera da comunicação, da earned media, e não na ponta do marketing, da paid media.

Isso quer dizer que, como mídia não-paga, não resta dúvida sobre nossa importância e nossa influência. Como mídia paga, no entanto, somos ignorados. Não faz sentido.

O correto seria haver equilíbrio e proporcionalidade entre esses dois olhares. A um veículo irrelevante, a completa indiferença da marca, tanto em seus esforços de comunicação quanto de marketing. A um veículo relevante, ao contrário, um contato próximo e interessado da marca, tanto na ponta da earned media quanto da paid media.

Esse desbalanço na relação das marcas com os publishers independentes é a versão do almoço grátis, em que a marca adora um restaurante, quer comer lá todo dia – desde que não precise pagar a conta.

Mas… como aquele veículo em que a marca adora figurar editorialmente vai continuar existindo se nenhuma marca fizer negócio com ele?

Restaurantes ruins têm mais é que fechar. É justo, é do livre mercado que seja assim. Mas inviabilizar, ou condenar à morte, um restaurante cuja comida você adora é irracional.

E não estou falando em caridade. Estou falando em fair share. Em equilíbrio e justiça nas relações comerciais no mercado de comunicação.

Na era da concentração da audiência, em que fazia sentido blocar os investimentos de mídia em veículos de massa, tomar um pedacinho da verba para “ajudar” veículos “menores”, em que a marca (ou o gestor) acreditava, era um ato de doação, de reconhecimento de mérito, por meio da área de apoio e de patrocínios, muito antes de ser uma escolha de marketing visando retorno.

Na época da pulverização da audiência, seguir os interesses de seus consumidores, onde quer que eles estejam, é um ato do mais puro interesse comercial da marca, que nada tem a ver com benemerência para com os publishers.

 

O PAPEL DOS PRÓPRIOS PUBLISHERS

Por fim, os veículos também precisam se mexer, reinventar seus modelos, correr o risco de testar novos formatos. Não podemos ficar parados, com saudade do passado. Nem imóveis, esperando o futuro chegar, que um milagre aconteça ou que alguém venha nos salvar.

Estamos imersos, nesse momento, na maior crise econômica da história do Brasil. O que torna tudo mais espinhoso. Mas estou falando aqui de uma crise estrutural, da indústria de comunicação, que não será resolvida, para os publishers, com o fim da atual recessão.

O diretor de mídia de uma grande agência de publicidade me disse esses dias que refletia às vezes sobre a morte da mídia impressa. E lhe parecia que as escolhas de mídia das grandes agências e dos clientes, nos últimos anos, concentradoras de mercado, e hostis aos publishers, para as quais ele próprio havia contribuído, tinham acelerado um processo de morte dos jornais e das revistas que poderia ter sido bem mais lento e negociado.

Não que a mídia tradicional tenha feito a sua lição de casa. Mas certamente a mídia impressa foi degolada, e está agonizando em praça pública, num rito de execução sumária que ocorre numa velocidade muito maior do que a do seu real processo de perda de relevância.

Não que os publishers independentes estejam todos fazendo as melhores escolhas. Mas se as portas não estiverem de verdade abertas, e se a torcida não se transformar em ação concreta, tanto entre os usuários quanto entre as marcas, não teremos alternativa – vamos todos morrer.

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