Durante o mês de junho, interrompemos a sequência de Verbetes Draft sobre termos da nova economia para apresentar uma série especial dedicada às “profissões” reveladas pela Operação Lava Jato (e, por favor, não se candidate a nenhuma delas). O Verbete Especial Lava Jato de hoje é:
MULA
O que a gente pensa que é: Um animal. Mais precisamente, a fêmea do cruzamento do jumento com a égua.
O que realmente é: Pessoa usada para transportar (ou carregar, daí o termo) ilegalmente algo a pedido (e para benefício) de alguém. A prática é mais comum no crime de tráfico de drogas — no qual as mulas levam substâncias químicas até dentro do próprio corpo.
Os mulas da Lava Jato são acusados (ou réus) de transportar dinheiro advindo de propina e pessoas de confiança de seus “contratadores”. Esta é uma característica própria do esquema já que, no tráfico de drogas, esse vínculo não é comum (pois são conhecidas como alguém “pago pra ser pego”, quase sempre têm baixíssimo poder aquisitivo e agem mediante pagamento ou mesmo coação).
Este texto do Estadão, publicado em 2014 (ano em que a Lava Jato foi deflagrada principalmente em função do monitoramento de conversas do doleiro Alberto Youssef), descreve o papel dos mulas “da lavanderia criada por Youssef” como aqueles que fazem o transporte dos “valores em espécie dentro de malas, maletas e no próprio corpo, para agilizar e dissuadir a lavagem de dinheiro e manter um ‘eficiente’ sistema de ‘delivery’ do caixa 2.”
O que é preciso para se tornar um: Na Lava Jato, ser pessoa de confiança de alguém envolvido diretamente no esquema, ou seja, cuja “profissão” na Operação seja doleiro, operador, gerente de caixa 2 ou tesoureiro de campanha.
Quanto dinheiro envolve: As cifras, de acordo com as delações, variam de 13 milhões de reais, 900 mil dólares e 365 mil euros (Careca); 1,3 milhão de reais (Ceará); e 400 mil reais (Lopez).
Quem são as referências na área: Adarico Negromonte Filho, Carlos Alexandre de Souza Rocha (o Ceará), Jayme Alves de Oliveira Filho (o Careca), João Henrique Worn e Rafael Angulo Lopez.
Em que esfera atua e como: Em esfera nacional. Careca e Lopez trabalhavam na GFD, uma das empresas criadas pelo doleiro Alberto Youssef para lavar dinheiro, com sede em São Paulo. Careca conciliava as funções de agente da Polícia Federal e office-boy de Youssef. É acusado de ser “entregador de malas de dinheiro” a políticos a mando do doleiro (teria realizado pelo menos 31 entregas em espécie). Seu esquema contábil era chamado de “Transcareca”. Lopez, que é espanhol, é considerado braço-direito de Youssef e acusado de controlar o cofre do doleiro, além de transportar dinheiro para ele. Em sua delação, explicou como o chefe entregava dados de contas e recebia os comprovantes de depósitos no exterior feitos pela empreiteira Odebrecht e pela petroquímica Braskem por meio ex-diretor da Odebrecht, Alexandrino Alencar, que também acusou de fazer parte do esquema de corrupção.
Ceará, que é (ou era) amigo de Youssef há 20 anos e Negromonte, motorista do doleiro, transportavam dinheiro a seu mando. Worn, “taxista de confiança” do ex-tesoureiro da campanha da presidente Dilma Rousseff (em 2010), José de Filippi Junior, fazia visitas à UTC Engenharia, empreiteira pagadora de propinas.
A quem serve: Quatro deles ao doleiro Alberto Youssef: Careca, Ceará, Lopez (seu braço direito) e Negromonte (seu motorista). Worn a José de Filippi Junior, ex-tesoureiro da campanha de Dilma Rousseff.
Com quem atua: Os mulas atuam basicamente a mando de quem servem, transportando propina para políticos e empreiteiras. Youssef atuava com políticos beneficiários do esquema da Petrobras (tinha negócios com um ex-diretor da estatal, Paulo Roberto Costa) e diversas empreiteiras, responsáveis pela divisão dos de desvios da Petrobras entre o PT, o PMDB e o PP.
Em depoimentos ou delações, Careca disse ter entregado quantias ao senador Antonio Anastasia, o que Youssef desmentiu. Como não houve confirmação, o caso foi arquivado. Careca disse também ter transportado dinheiro para um local, no Rio de Janeiro, que lhe disseram ser a residência de Eduardo Cunha, mas, depois, apresentou à Justiça uma retificação mudando o endereço no qual disse ter entregue o dinheiro. Delator, Ceará contou que levou propina para o ex-presidente da República e atual senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL); a um diretor da UTC no Rio de Janeiro, que informou que o montante seria encaminhado ao senador Aécio Neves (cuja investigação foi arquivada por inconsistência) e levou propina à Maceió o que, mais tarde, soube que era para o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). Renan está sendo investigado pela denúncia.
Lopez, segundo Youssef, entregou propina a João Vaccari, ex-tesoureiro do PT e Worn é acusado de atuar com a UTC a mando de José de Filippi Júnior.
Efeitos de suas ações: Fazer com que o dinheiro derivado de propina transite sem levantar suspeitas pela polícia. Por mais que o papel do mula seja o de subordinado e, em alguns casos, ele não tenha ciência de estar praticando crime, em algumas partes do esquema (que não envolvem contas no exterior ou empresas de fachada) seu papel é fundamental. Em delação, por exemplo, Ceará disse que levou, para Renan Calheiros, propina que era parte de uma dívida da Camargo Correa para atrapalhar, no Congresso, a instalação de uma CPI para investigar a Petrobras. O caso está sendo investigado.
Como é denunciado: Por meio de investigações do Ministério Público e da Polícia Federal.
Como pode ser preso: Não necessariamente é preso. Em maio deste ano, o STF decidiu que o reconhecimento da condição de “mula” (ou “avião”), no crime de tráfico de drogas, não significa, necessariamente, que o agente integre organização criminosa. Na Lava Jato já houve entendimento semelhante em sentença do juiz Sérgio Moro que absolveu Adarico Negromonte Filho, por entender que, embora houvesse provas de que ele havia participado de grupo criminoso, ele tinha o papel de “subordinado, encarregando-se de transportar e distribuir dinheiro aos beneficiários dos pagamentos”. Delatores e réus em ação na Lava Jato, Carlos Alexandre de Souza Rocha e Rafael Angulo Lopez, são acusados de fazer entrega de dinheiro. Worn está sendo investigado.
Curiosidades:
— Adarico Negromonte Filho é irmão do ex-ministro das Cidades, Mário Negromonte, do PP.
— Careca disse ter “ouvido” que o ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, teria aterrado uma piscina para guardar dinheiro. Apesar de confirmar que a piscina foi mesmo aterrada (veja as fotos) e ter usado um equipamento capaz de identificar volumes a até dez metros de profundidade, os policiais não encontraram nada.
— Por motivos óbvios, os envolvidos na Lava Jato eram tratados por apelidos. Dentre os mulas, Rafael Angulo Lopez era o “Véio” (apelido escolhido por Youssef por Angulo ser seu funcionário mais antigo) e Adarico Negromonte era o “Olheiro” já que era considerado um “espião” do irmão ex-ministro Mario Negromonte. Há ainda, o “Mercedão”, o “Bebê Johnson”, a “Angelina Jolie” e outras pérolas (veja a lista aqui).
— Rafael Angulo Lopez contou, em delação, que viajava com dinheiro preso ao corpo até o Rio de Janeiro, onde era mais fácil embarcar sem sofrer revistas porque um agente da PF que trabalhava no aeroporto fazia parte da quadrilha de Youssef.
Para saber mais:
1) Veja, na Folha, o especial Luzes, câmeras, delação, uma série de vídeos de delações incluindo a de Ceará contra o senador Aécio Neves.
2) Leia, no Estadão, Condenações da Lava Jato somam 680 anos, que inclui as condenações de Rafael Angulo Lopez e Jayme Alves de Oliveira Filho (o texto é de dezembro de 2015 e as sentenças são de primeira instância, cabíveis de recurso).
3) Assista, no G1, ao vídeo Adarico Negromonte é absolvido na Lava Jato por falta de provas que mostra o momento da soltura do motorista de Youssef.