Tem gente que se descobre empreendedor cedo. Aos 19 anos, em 2001, enquanto a maioria dos amigos se dividia entre as festas de faculdade, intercâmbios e primeiros estágios, Raul Garré e Rodrigo Elste quiseram fazer diferente. Viraram designers por conta própria e montaram a Cubo, uma pequena agência de criação publicitária em Pelotas (RS), cidade natal da dupla. Era um tiro no escuro, mas deu certo. Em poucos anos, o negócio cresceu, ganhou grandes clientes importantes (como a Unilever), se estabeleceu em São Paulo e recebeu uma proposta de venda. Final feliz? Calma, essa nem é a nossa história principal.
Os mesmos amigos, hoje aos 35, estão por trás de um negócio com muita personalidade. O Madre Mia!: um bar, restaurante, galeria de arte e coletivo de eventos. Com quatro anos de casa, ele já virou ponto obrigatório para turistas e respira o movimento maker. No salão, há pinturas, lambe-lambes, luminárias feitas pelos próprios donos. Na cozinha, o cardápio flutua entre raízes rio grandenses, latinas, cozinha de bar e alta gastronomia. Mas o que faz do Madre um lugar único é uma linha invisível, que une a cultura de fronteira de Pelotas a uma experiência que desperta vários sentidos, da visão ao paladar.
E pensar que tudo começou quando parecia que jornada empreendedora da vida de Raul e Rodrigo já tinha atingido o seu auge… Depois que um grande percentual da Cubo foi vendido, lá em 2009, para a Interpublic, os sócios decidiram correr atrás do tempo perdido. A empresa, que na época tinha 120 funcionários, estava tinindo. Mas ambos sentiam que era hora de explorar, sair do escritório e “colocar a cara no vento”. “Saímos do negócio e voltamos para Pelotas com o espírito de ficar próximo da família, curtir um pouco o que a gente não curtiu dos 19”, conta Raul.
Nesse período “sabático” (mas não muito) eles fizeram duas viagens a Europa e deram um pulo no Uruguai e Argentina. O descanso também foi pesquisa. Os bares de Palermo, as coffee shops de Amsterdam, Barcelona. Tudo isso seria inspiração para o Madre Mia!. Raul conta:
“O insight mais importante foi ver que os lugares mais legais tinham muita identidade. A gente vê tanto projeto comprado pronto, mas a ideia era produzir as nossas próprias coisas, colocar a nossa energia”
O conceito do lugar que Raul e Rodrigo queriam criar foi tomando forma. Os amigos decidiram que ele seria um lugar de experiências gastronômicas que também respirasse arte, e pudesse promover eventos de rua. Quase dois anos depois de deixar São Paulo, a ideia se consolidou e eles passaram a buscar a casa perfeita. O portão da Rua Santa Cruz 2200, no Centro de Pelotas, acabou saltando aos olhos. A fachada não era nada, um portão de garagem. O local, que tinha sido uma oficina, foi desenhado na cabeça dos sócios antes de fecharem o negócio. A venda da agência Cubo mantinha os planos correndo em dia, mas sem pressa. Desse dinheiro, 800 mil reais foram destinados à criação do Madre Mia!.
O passo seguinte foi encontrar alguém que tivesse conhecimento na área de gastronomia, para dar conta de tudo aquilo que Raul, Rodrigo e Ana Klug – 34 anos e esposa de Raul, que também virou sócia na empreitada – não sabiam. O chef Jorge Curi, 26 anos, foi a peça-chave. “Ele foi nosso salvador. Começou a trabalhar com a gente com 23 anos. Tinha passado por restaurantes em Londres, naquele esquema clássico de começar lavando louça e ir subindo. Era um cara novo, mas com bagagem”, diz Raul.
Foi Jorge que ajudou a transformar as referências das viagens em um conceito de cozinha de fusão, pegando uma receita que é de um lugar, aplicar um ingrediente diferente, preparar com a técnica de outro país. Gerando versões de clássicos e fazendo mistura internacional. O Panza llena, por exemplo, é um bife de chorizo grelhado acompanhado de papas assadas, característicos da Argentina, mas o molho chipotle traz o México para a equação. Ele sai por 36 reais.
PERDER DINHEIRO, REINVESTIR, TENTAR ATÉ ACERTAR
Ana, que também havia trabalhado na Cubo, tinha experiência em comércio, passou por treinamentos e franquias, e ficou com a missão de ensinar a todos como atender bem. Com essa divisão (ela no salão, Jorge na cozinha e Raul e Rodrigo na gestão de projetos e da marca), o Madre Mia! abria as suas portas em junho de 2012 – e fez fila na porta. O início foi de êxtase, mas também confusão, conta Raul:
“A gente nem sabia onde se posicionar direito. Demorou para aprendermos a lidar com o negócio. Tomamos muito pau e tivemos que reinvestir bastante”
Naquele sonho de ter um bar ou um restaurante, eles acharam que seria fácil, mas não faltaram deslizes. Compraram a coifa errada, a geladeira, descobriram que a bancada de madeira deveria ser de inox. Mas eles não acharam que o Madre Mia! era um negócio feito para ser vendido, um projeto para entregar nas mãos de uma consultoria. “A gente vê tanto projeto comprado pronto, mas a ideia era produzir as nossas próprias coisas”, diz Raul. Por isso, os sócios optaram por aprender fazendo, mesmo que fosse na marra. “É muito detalhe, a margem é pequena e o teu controle de estoques é em cima de insumos de cozinha que são muito fáceis de perder e estragar.”
Em paralelo ao bar e restaurante, Raul e Rodrigo passaram a comandar um escritório de criação exclusivo do Madre, onde não só seriam produzidos artigos de decoração da casa como serviria de apoio aos projetos que começariam a pipocar. Mucha Arte (exposição coletiva de oito artistas, lojinha de quadros originais, brindes e camisetas), Taco y me voy (produção de um petisco tradicional da casa: dois tacos com camarão na manteiga, guacamole, cebola roxa e ervas), Cerveza o Muerte (festival de cervejas artesanais), Tattoos, Tacos e Tragos (evento que combina tatuagens e comida latina)…
Cada um tomou forma sob a luz do mesmo conceito: unir boa comida, cerveja e arte em um evento colaborativo. “Existem vários conceitos de trabalho que dão origem a projetos e podem se transformar em eventos, novos negócios, marcas. Mas isso só é possível quando a gente tem um escritório trabalhando para a marca, porque sem ele é difícil fechar essa conta”, Raul diz.
Para entender como essas iniciativas têm diversas facetas, um bom exemplo é o Hecho A Mano. O evento começou como uma noite em que artistas desenham em bolachas de copos em branco, durante uma noite de cardápio especial. Essas bolachas depois ficam expostas em um livro-maleta, e sua versão impressa agora será financiada por uma campanha de crowdfunding no Catarse. Raul conta que a maioria dessas ideias surgiu pensando em apoiadores, então levá-las por conta própria não é fácil: “O nosso plano sempre foi criar projetos e apresentar para marcas. Mas elas não reservam verba para Pelotas, então fazemos tudo muito independente”.
O fundador da casa sabe que um dos principais apoiadores é a indústria de bebidas, mas quer evitar a associação com algumas marcas, porque no seu entender a maioria não se aplica ao conceito do Madre Mia!. Por conta dessa autoconsciência, os sócios acabam se envolvendo com cervejarias menores, que produzem rótulos artesanais, como a Barco. Com elas, o Madre Mia estende seus limites para a rua e comanda festivais abertos, que até pouco anos não eram tão comuns na cidade.
Desde o projeto de ambientação, que o arquiteto acabou participando só com a parte mais técnica, quem fez o Madre Mia! acontecer foram os sócios. Raul conta: “Temos uma oficina, onde recuperamos móveis de antiquários, fazemos objetos de decoração, colocamos a nossa energia. O nosso envolvimento maker é tudo”. Mas não tem conto de fadas. Tudo isso só acontece graças à cozinha de Jorge e à batuta de Ana no atendimento:
“No fim das contas a gente ganha dinheiro vendendo comida e bebida, o resto é apoio conceitual e coisas em que a gente acredita”
Ainda este ano, o Madre Mia! deve viajar pelo Sul. Os sócios querem levar seus projetos menores a outras cidades. Os primeiros serão o Mucha Arte e a Taco y me voy. Depois, em 2017, a ideia é levar a experiência completa para Porto Alegre, com a abertura de uma nova casa. “Esses planos de expansão sempre existiram, mas a gente não tinha números que impressionassem alguém”, conta Raul. Agora ele pode dizer que, em 2016, o Madre Mia! espera fechar um faturamento de 2,5 milhões de reais.
Optar por usar o próprio quintal para botar em pé um negócio tão singular tem seus dois lados. Raul conta: “Escolhemos em Pelotas porque era a nossa cidade, o investimento era menor, e o tombo seria menor se desse errado. E se funcionasse aqui, funcionaria em qualquer lugar”.
Ele e Rodrigo concordam que a ligação deles com o empreendedorismo foi prematura. Mas nem por isso eles deixam de aprender – e ainda quebrar a cabeça – todos os dias com o seu negócio. “Não queremos que as pessoas venham porque é barato, ou só porque a comida é boa”, diz o fundador. “A gente tem essa noção de que está sendo transformador para a cidade, que é correspondido.” Lá se vão quatro anos “de la puta madre”, como se diz no Sul.
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