No primeiro dia, uma quinta feira, cheguei às 18h30 à loja 8 da Galeria Arouche, também conhecida como Preto Café, no centro de São Paulo. O estabelecimento já estava fechado há meia hora quando encontrei Lucas Pretti, jornalista, artista e amigo, que me concedeu a primeira entrevista que compõe este texto. Café fechado, atravessamos o Largo do Arouche para conversar sobre a experiência do Preto, encontramos uma mesa na rua e umas cervejas no boteco copo sujo. Ali ofereci a Lucas um tablet com o texto que o Draft publicou em setembro de 2014, mais de dez meses antes da abertura do café.
Lucas começa a ler, seus dedos correm a barba enquanto revisita um instântaneo de seu projeto, tirado quando o Preto Café ainda era apenas uma ideia com ímpeto. “Ou o Draft é muito legal, porque cobriu uma coisa que ainda não existe, ou a gente é muito louco de prometer uma coisa que nunca vai existir”, disse depois.
Agora Lucas franze o cenho enquanto lê, enrolando barba entre polegar e indicador. “Que doido. Nessa matéria tem dois passos dos 50 que foram dados desde então”, diz.
Volta a ler em silêncio, ri para dentro. Logo diz: “Esse tipo de texto é um compromisso, ele joga a ideia e você corre atrás. ‘Agora vai ter que ser, mais ainda’, sabe?”
Lucas aponta um processo que nasceu baseado em um feeling, como diz, “muito mais latino do que anglo-saxão”. As primeiras decisões se baseavam no que o grupo sentia e não em pesquisas de mercado.
Afinal, qual teoria econômica embasaria o modelo do Preto? Um café pague-quanto-acha-que-deve que, no lugar de tabela de preços, apresenta apenas sua tabela de custos. Quem consome ali é convidado a avaliar toda a cadeia produtiva para, assim, concluir o preço adequado de seu cafezinho.
Latinamente, abriram as portas em julho de 2015 e logo perceberam o impacto, a avalanche que é, uma empresa entrar em operação. Vida real. O terceiro mês teve música tema: Não me agrada dinheiro não, só louça suja. Lucas aponta o dia a dia manual, físico, o cheiro do café que fica na mão, o cheiro do material de limpeza que impregna. Tudo isso é muito mais cansativo do que ele imaginava:
“Para o brasileiro, o intelectual é sempre patrão, enquanto os empregados fazem o trabalho braçal. Ter um café rompeu com isso para nós”
A empresa funcionou durante os oito primeiros meses na Vila Madalena, bairro descolado da zona oeste de São Paulo. Abriram uma casa em parceria com oGangorra, empresa social que propõe experiências de mobilidade, e que ocupou o segundo andar do imóvel. Desde a inauguração o Preto fez barulho. Como assim um café sem preço? A imprensa fez dezenas de matérias a respeito, Ana Maria Braga inclusive, e o café achou um público. Mas não muito, também.
UMA XÍCARA DE UTOPIA, SEM AÇÚCAR, POR FAVOR
Durante os meses em que ficaram na Vila, eles tiveram arrecadaram em média 65% do que precisavam para cobrir os custos. A diferença saiu do salário do grupo, que inexistiu. O café pagava tudo, menos os fundadores. Até aqui, cada um dos cinco mantenedores ganhou zero dinheiros e investiu algo como 300 horas. Lucas diz que isso se justifica: a proposta é política.
A ideia do Preto parte de uma utopia de anticonsumo, que não te dê uma comanda, “está aqui seu registro de consumidor, pague ou você não é gente aqui dentro”, diz Lucas.
Sem comanda, nem comando, há duas maneiras de pagar pelo que se consome: um aquário de vidro transparente para receber dinheiro e uma máquina de cartão, operada pelo próprio público.
Quem está trabalhando no balcão, diz Lucas, faz questão de não cobrar — e de olhar para o outro lado quando alguém vai digitar os números na maquininha.
“Quanto custa o Preto Café”, diz o quadro com letras de plástico. Ali estão: Custos Fixos 17% – aluguel, internet, limpeza; Custos de Cardápio 26% – cafés, bolos, tortas; Custos Administrativos 9% – impostos, comunicação, burocracias e tretas; Remuneração 39% – Carol, Du, Fran, Lucas, Mau; Reforma e Mudança 9% – parcela 2 de 10. Total: 23 915 reais no mês de setembro.
O público, quando entende o modelo, muitas vezes expressa um medo comum: mas e daí, vão sair sem pagar? O dia a dia provou que isso é absolutamente infundado. Lucas afirma que um total de zero seres humanos foram pegos saindo sem pagar em quase dois anos de Preto Café, deixando em xeque o que diz o senso comum sobre a honestidade do brasileiro.
No entanto, ao longo do primeiro semestre de operação uma questão ficou clara: o ponto da Vila Madalena não era bom. No meio de um quarteirão residencial, o café conseguia pouco público espontâneo. E, assim, a proposta política alcançou seu limite. Servir café a preço livre para os mesmos amigos de sempre, na Vila Madalena, era algo como assar brownies para convertidos.
HORA DE PARAR DE VENDER PARA OS AMIGOS
No texto de 2014, o Draft listava quatro sócios: Lucas Pretti, Francele Cocco, Renato Guimarães e Fabio Issao. A informação precisa ser atualizada. O Preto tem quatro associados: Lucas, Fran, Maurício Alcântara (publicitário, cientista social e barista) e Carol Gutierrez. E, agora, se prepara para receber novos associados, que topem construir juntos o projeto.
O primeiro desta nova geração, ainda em fase de testes, é Eduardo Ferreira, o Du mencionado no quadro com letras de plástico. Dos cinco, três moram no Arouche. Então, além da operação, levavam mais meia hora para ir e meia hora para voltar no ponto, na Vila Madalena. E sem receber salário. Nessas, o problema acabou virando solução:
“Não vou receber nada? Legal, então vamos para um bairro em que seja realmente disruptivo um café não ter preço”
Não era a Vila Madalena. E então, Arouche. Com mais reflexão e consciência do mercado onde atuam, decidiram se mudar para um ponto com um fluxo muito maior. A decisão anglo-saxã se mostrou acertada, fecharam na Vila em março e abriram no Centro em julho deste ano.
No primeiro mês, o ponto novo arrecadou o mesmo que o último mês na Vila, 60% dos custos. O horário mudou, passou de 12h às 19h para 9h às 18h. Horário mais comercial, saem muito mais cafés. Na Vila, em geral o público chegava para ficar um tempo, sentava para tomar dois cafés e comer duas tortas. No centro, o negócio é café, café, café. O rush acontece às 9h30 da manhã, entrada para o trabalho, e às 14h, logo após o almoço.
No segundo dia, uma sexta feira, cheguei por lá 11h, no período entre rushs. Pedi um espresso e uma torta de banana para o Mau, um dos cinco associados que divide a rubrica “Remunerações 39%”, apresentada no quadro de custos.
Carol Gutierrez passa pelo café às 12h30. Limpa algumas mesas, lava pratos e serve bolo de banana enquanto se prepara para a aula de dança brasileiras e africanas, que começa às 13h no Teatro Municipal, ali ao lado.
Eu lhe pergunto o que mudou de um ponto para outro, e ela diz: “Aqui é mais claro o machismo. Lá também existe, mas velado. Aqui é na lata. Estamos assumindo também o não deixar passar, cortar na hora. Foi bom organizar essa força, ter o que responder”. E sei correndo para dançar.
DISRUPÇÃO CUSTA CARO
Na calçada do boteco em que estivemos, Lucas pede uma cachaça e diz: “Tá bom, quer saber uma coisa? A verdadeira disrupção do café é o modelo, a gente precisa falar mais disso. Para além do gogó da cultura livre, porque não existe na economia você ter produto sem preço”, diz. O modelo pague-quanto-acha-que-deve do Preto é a variadade mais radical: opera sem um preço mínimo exigido. No Brasil, conhecemos apenas o Curto Café como contra exemplo, primo mais velho e inspiração.
Se fosse uma empresa, o Preto deveria ter uma caixa registradora com os produtos café 1, café 2, café 3, cada um com um preço, então para a burocracia quem deixou seis reais na verdade comprou o café 6. Mas o preto é uma Associação sem Fins Lucrativos e não empresa. Assim, oferece todos os seus produtos de graça e recebe doaçãos dos mantenedores que frequentam o espaço. Lucas brinca:
“É como o Rotary. A gente faz o pão de queijo do baile, todos podem vir dançar e financiar a causa”
A sacada foi do KLA, escritório de direito tributário na avenida Faria Lima. O Instituto Pro Bono, que organiza o trabalho jurídico gratuito de diversos escritórios, recebeu o Preto os encaminhou para eles. O KLA gostou do desafio e aceitou prestar assessoria jurídica ao empreendimento. “É uma delícia ver os advogados engravatados da Faria Lima tentando resolver esse problema”, diz Lucas.
Oficialmente, o Preto Café é uma “associção promotora da cultura livre”. Não vendem comida. Assim, evitam os impostos elevados e as demandas de vigilância sanitária. Oficialmente, é um lugar privado, aberto para os seus associados. Não há comércio, então o imposto pago é o Itcmd, 4% sobre cada doação recebida — e só. Os cinco associados seguem trabalhando sem receber, para bancar a proposta política. Quando conseguirem se pagar, querem abrir para que um grupo mais amplo de associados possa trabalhar e receber por isso, criando assim uma comunidade de pessoas que mantenham o Preto existindo, mudando a relação patrão-empregado.
Na verdade, é mais radical do que isso. Radical vem de raiz. Hoje, caiu a ficha. O que fazem é ativismo. O primeiro texto tem uma aspas que arranhou Lucas. “Não é para ser antimercado”. Agora, retifico: é antimercado sim. Enquanto lava pratos do bolo de banana, Maurício diz:
“Estar aqui é nossa atuação política na cidade”
Ele segue: “Não é empreender, não é novos negócios. A gente quer atuar politicamente em uma comunidade que não coloca preço. Meu ativismo é conversar com as pessoas aqui”. Elizabeth, que não havia entrado na história, esteve por lá essa tarde, ouviu tudo, e pagou 25 reais por duas tortas de berinjela e um espresso. “Foi pouco, será?” Só o tempo vai dizer se a conta fecha. Até lá, não faltará café.
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