O catalão Neil Harbinson é um dos primeiros ciborgues do mundo. Tem 34 anos e nasceu com acromatopsia, uma condição rara que lhe impede de ver cores. Ele, porém, não topou a ditadura do preto e branco e desenvolveu uma alternativa. Tornou-se um ciborque que ouve as cores (isso mesmo, siga comigo). Para tanto, implantou uma antena em seu crânio, uma câmera que transforma ondas eletromagnéticas (as cores) em sinais sonoros dentro de sua cabeça. Demorou cinco semanas para Neil superar as dores e entender que havia descoberto um novo sentido: sonocromatismo, a habilidade de ouvir cores.
A antena fica atarrachada à sua cabeça e se comunica com um chip instalado dentro do osso ocipital, que é a base do crânio. O chip vibra uma nota específica para cada cor que a antena capta. Vermelho tem um som, amarelo, outro som, e assim por diante. Neil deu um passo além quando sonhou em cores-tons, a ficha caiu e ele entendeu que seu cérebro tinha, enfim, se adaptado ao aparelho. Dali para frente, passou a de fato ouvir cores. Podemos apenas imaginar essa trajetória: ter uma condição que o limita, buscar uma solução, inserir aparatos tecnológicos em seu corpo, sofrer o impacto neurológico da experiência, adaptar-se, seguir em frente.
E Neil reagiu como o artista que é. Ele e Moon Ribas, sua parceira de infância, criaram uma nova forma de expressão: ciborguismo, o design de si. Também criaram uma startup para oferecer a pessoas que queiram experimentar o que é ser um ciborgue, mesmo que não tenham nenhuma condição limitante. Afinal, ciborguismo é sobre expandir sentidos, e isso é para qualquer um. Que queira. É o caso de Moon.
Ela é uma dançarina catalã, cresceu junto com Neil em Barcelona. Tem 31 anos e instalou chips em seus antebraços, dispositivos que vibram junto com a atividade sísmica – os terremotos – de todo o planeta Terra. Sua principal performance, Waiting for Earthquakes, é baseada em seu sentido sísmico. Há uma música meio hipnotizante, Moon vibra de maneira imprevisível. Quando a terra se move, ela também o faz. Se não, não, e a performance será silêncio.
Os dois estiveram no Brasil para liderar a Mesa Ciborgue, um desafio que reuniu também 15 brasileiros com diferentes habilidades, de engenharia mecânica a arte de dados, para desenvolver o protótipo de uma nova parte da boca (!) que amplie os sentidos humanos. A Mesa & Cadeira propôs e recebeu o evento.
Nesse contexto, conversei com os Neil e Moon. Entendi que eles não são os primeiros ciborgues, mas sim os primeiros a utilizar a linguagem da arte para decodificar as possibilidades de ser um ciborgue. Há outros por aí, outras fronteiras físiológico-tecnológicas sendo abertas, mas este ainda é um campo em formação, suas principais aplicações são apenas promessas do que serão em algumas décadas.
Neil se mexe devagar e calcula suas frases, diz coisas como: “Olhe para a natureza e veja quantos sentidos disponíveis. Vamos aprender com eles e ampliar nossas possibilidades de percepção”.
Deste encontro — transformador e inquietante —, foi possível extrair cinco reflexões, aprendizados, possibilidades, provocações. São elas:
1) É possível adquirir novos sentidos além dos 5 que aprendemos na escola
Parece abstrato, mas eles estão disponíveis. Pense nas possibilidades: que tal perceber quando os raios infravermelhos ficaram forte demais ou um sensor no dedo que te diga se a comida está boa ou não. Também poderia saber para que lado fica o norte ou perceber a umidade do ar. Parece meio inútil? Sim. Alguma coisa legal pode sair daí? Com certeza. Que tal um sinal luminoso que dispara no dia da ovulação? Ou uma tatuagem que te diz quando a insulina baixou?
2) Para isso, talvez você precise de um “grinder”, como é chamado o cirurgião maker
Hoje, a ética na medicina ocidental não permite que se realizem as operações necessárias para implantar máquinas em corpos humanos. Mas isso nunca impediu os realmente interessados. Foi assim que a cultura grinder nasceu, abrindo espaço para o biohacker: aquele que modifica o desempenho do corpo com tecnologia. Dê uma olhada em biohack.me para entender o alcance desse trabalho.
3) Os ciborgues dos nossos tempos também são ativistas
Até aqui, a barreira médico burocrática tem sido o principal obstáculo político para esse tipo de modificação corporal, mas existem outros. Para se posicionar politicamente pelo direito à transformação do próprio corpo, Neil e Moon criaram a Cyborg Foundation. O lema é “Design Yourself”, e prega, numa tradução livre: “Acreditamos que todos têm o direito de perceber o mundo como bem quiserem, esta plataforma existe para lhe dar as ferramentas que você precisar para se tornar quem você deseja, expandindo os seus sentidos e habilidades como quiser”. Vai por aí.
4) Também dá para ganhar dinheiro com isso
Neil e Moon também empreendem. São cofundadores da Cyborg Nest, startup que está preparando seu primeiro produto comercialmente viável, o North Sense, que vem a ser um implante capaz de vibrar sempre que apontado para o Norte, aumentando a percepção espacial de seus usuários. A empresa ainda não está operando, mas já recebeu centenas de pedidos para o aparelho. Além deles, outros grupos começam a pipocar pelo mundo afora, como a Grindhouse Wetware, que nasceu do biohack.me e hoje pesquisa traquitanas como os leds subcutâneos, para diagnóstico médico em tempo real, e a possibilidade de adquirirmos o sentido de sonar (aquele que morcegos usam para “sentir” objetos no escuro, evitando colisões).
5) Tudo isso é possível, está perto, mas não é para exatamente já
Então, é hora de abrir uma Grindhouse no Brasil? Calma. Apesar de promissor, o campo do biohacking ainda está engatinhando e hoje tem apelo junto a uma parcela pequena da população, a vanguarda que topa experimentar modificações paralegais (à margem da lei), faça-você-mesmo, no próprio corpo. As aplicações, também, ainda estão sendo testadas e suas funcionalidades desenvolvidas. Em uma ou duas décadas, possivelmente, elas serão lugar comum. Hoje são, principalmente, pesquisa de artistas e outros seres na fronteira das possibilidades humanas.