No Draft já falamos de maneiras inovadoras de empreender em gastronomia: desde jantares secretos, eventos gastronômicos inusitados até casas que se tornaram referência local para amantes da boa comida. O La Mesa Gastro Lar dialoga com essas iniciativas: lá, além de a comida não ser a única atração, o visitante pode descansar na rede, espiar os livros da estante e acompanhar a preparação dos pratos bem ao lado dos donos da casa – a comunicóloga e escritora Cissa Borges, de 33 anos, e o chef argentino Javy Larroquet, 32. As coordenadas para se chegar ao local, em Itaipava, na serra fluminense, só são dadas após se fazer a reserva, com pagamento antecipado.
“A proposta é que as pessoas venham passar um momento sem pressa”, conta Cissa sobre o empreendimento, lançado em novembro de 2015. Inspirados no movimento slow food (que estimula o consumo e preparo de alimentos com mais prazer e sustentabilidade), eles proporcionam “experiências gastronômicas”, dentro de um modelo parecido com iniciativas conhecidas como “anti-restaurantes” ou puertas cerradas (em português, portas fechadas). No entanto, Cissa prefere um termo mais positivo, então batizaram a iniciativa de “gastro lar”.
Ao confirmar a reserva, o visitante escolhe entre duas opções de cardápio. A primeira é a comida de fogueira: mais rústica, preparada na brasa e no espeto, servida em bandejões no jardim e cujo cardápio se altera bimestralmente. A segunda opção é o menu do mês, desenvolvido de acordo com a sazonalidade dos ingredientes e inspirado na cozinha latino-americana que Javy conhece bem, após anos viajando pelo continente.
Ao chegar na casa, os espaços podem ser conhecidos e ocupados livremente. Há vitrola na sala, gangorras para adultos no amplo jardim e obras de artistas locais pela casa toda. A cozinha — sem paredes — é um convite para que as pessoas se aproximem do chef. Cissa conta:
“É muito legal quando a pessoa entende a liberdade que pode ter nessa experiência gastronômica”
Uma experiência no La Mesa custa cerca de 175 reais por pessoa (o preço varia de acordo com o menu e os ingredientes da época) e inclui quatro etapas: welcome drink, entrada, prato principal e sobremesa. O café e a água são por conta da casa, que não cobra taxa de rolha e nem 10% sobre os serviços. Como opções adicionais, o La Mesa oferece vinhos, cerveja da região, chás gelados e sucos – para estas, o pagamento é no dia da experiência. Javy também prepara camponatas, geleias e conservas para os pratos.
O gastro lar comporta 15 pessoas sentadas (mas já recebeu 30 para um aniversário), e pode atender almoço e jantar em um mesmo dia. O La Mesa não exige número mínimo de visitantes – pode abrir para receber apenas um casal, por exemplo – e as experiências podem ser agendadas para qualquer dia.
Javy e Cissa contam que, desde junho de 2016, o negócio passou a se pagar, recebendo uma média de 150 pessoas por mês (ou um faturamento estimado de 25 mil reais mensais). Por receber o pagamento antecipado, o casal dispensa a logística de estoque e evita desperdício de ingredientes. Além disso, só aceitam depósito bancário, o que dispensa malabarismos com capital de giro e evita as taxas cobradas pelos cartões de crédito.
O pequeno negócio não tem funcionários contratados. Cissa fica com as reservas e divulgação, enquanto Javy se encarrega da cozinha e das compras de ingredientes. Também são eles que servem os visitantes durante as refeições – na maior parte das vezes, sozinhos, mas chamam conhecidos para ajudar quando a casa está cheia. Nestes casos, só trabalham com pessoas envolvidas com gastronomia. “Garçom, jamais”, diz Cissa.
A BUSCA QUE RESULTOU EM UM NEGÓCIO – E UMA FAMÍLIA
O casal se conheceu em Petrópolis, num momento em que ambos buscavam voltar ao convívio com a terra e resgatar a consciência alimentar. Depois de sete anos trabalhando como consultora de experiência de marca para clientes como Coca-Cola e Infraero, Cissa conta que estava “dando pane”:
“Eu trabalhava 13 horas por dia, tinha crises de ansiedade, não conseguia desacelerar”
O mal-estar foi complementado pela morte do avô, que era agricultor. Estas rupturas mexeram com ela, que resolveu mudar os rumos da própria vida. Como sempre gostou de cozinha, decidiu fazer deste prazer um projeto. Com o apoio de um edital e com economias próprias, Cissa foi ao Peru e a Minas Gerais registrar encontros de amigos em torno da comida – e depois transformou os registros na websérie Soul Kitchens Project. Nessas andanças, ouviu falar de um chef argentino que estava na serra fluminense participando de um projeto chamado CSA – Comunidade que Sustenta a Agricultura. Cissa se interessou pelo modelo e foi conferir de perto.
Javy chegou a Petrópolis depois de muitas viagens. Formou-se em gastronomia em Mar del Plata (Argentina), lá atrás, em 2005. “Assim que peguei o título e o chapeuzinho de chef, arrumei minha mochila. Queria fazer uma pesquisa cultural em torno da comida”, ele conta.
Em cinco anos de viagens, Javy trabalhou em um hotel cinco estrelas na Costa Rica, foi professor de gastronomia e cozinheiro voluntário para vítimas de um terremoto no Peru, e ainda passou por Bolívia, Chile, Equador, Paraguai e Uruguai. Todo o seu percurso ficou documentado no blog Cocinando por América Latina.
Nesse meio tempo, voltou à Argentina, onde gravou um programa de TV chamado “Cocina en Movimiento”, e também passou um ano e meio em Londres, onde estudou inglês e aprofundou sua pesquisa. Lá, aprendeu a fazer scones, tradicionais biscoitinhos ingleses. Até abriu uma marca do quitute, que ele mesmo assava e distribuía.
Em 2012, veio ao Brasil e ficou dois anos no Rio de Janeiro. Cansado da cidade grande, vendeu o que tinha e foi para Petrópolis, onde dava workshops de alimentação consciente e morava em um ashram (comunidade dedicada a práticas hindus, como meditação e yoga). Foi lá que Cissa e Javy se encontraram. Após alguns meses vivendo no ashram, eles sentiram que era hora de partir para novos projetos. De lá, eles fizeram as malas e foram morar juntos.
NEGÓCIO HIPPIE, FEITO NA INTUIÇÃO? NADA DISSO
A proposta amistosa e descontraída do La Mesa pode dar a falsa impressão de um empreendimento intuitivo, mas Cissa e Javy investiram um ano e meio só no planejamento do negócio. Pesquisadores de comida, ambos já conheciam bem o modelo “puerta cerrada”, que também é muito popular na terra natal de Javy (um dos pioneiros é o Adentro, em Buenos Aires). Ela conta:
“Sabíamos que era preciso ser sustentável. Então, fiz para nós o que eu já fazia para os clientes: um plano de negócio do zero”
O projeto piloto foi o “Open Sítio”, uma série de eventos com menu fixo, já na casa do casal. Nesta época, para pagar as contas, eles também participavam da feira Junta Local, no Rio de Janeiro, onde vendiam quitutes preparados por Javy, e faziam serviço de buffet para eventos.
Em novembro de 2015, eles lançaram oficialmente o La Mesa. Naquela altura, já tinham gastado todas as economias pessoais, então nem poderiam fazer um investimento inicial. O jeito foi começar o negócio com o que tinham em casa. Aos poucos, foram incrementando o gastro lar, que hoje soma investimentos de 40 mil reais em louças, equipamentos para cozinha industrial e mobiliário.
PLANEJAR AJUDA, MAS NÃO ELIMINA PROBLEMAS
Houve algumas ocasiões em que o La Mesa recebeu um público que não compartilhava da sua proposta. Cissa conta:
“Algumas pessoas já vieram só pela exclusividade, pensando que tinham um chef trabalhando para elas. Não foi bom para ninguém”
Para evitar esta noção errada, Cissa e Javy reforçaram a comunicação no momento da reserva, com explicação mais detalhada de como é uma experiência no gastro lar. Apesar de receberam em casa, eles têm cuidados com a privacidade. Além de não revelarem o endereço antecipadamente, evitam registros que mostrem a casa inteira – isso também ajuda a preservar a surpresa para o dia da experiência.
Outra preocupação constante é manter a informalidade, como quem recebe amigos em casa. “Se colocarmos protocolos, vamos ficar tímidos na nossa própria casa, vai ficar invasivo para nós”, diz Cissa. Até o pequeno Caetano, o filho de oito meses do casal, faz parte da experiência. Eles não isolam o bebê durante as refeições. “Às vezes, ele acorda no meio da experiência. Daqui a pouco ele vai andar pela casa, é normal”, conta o chef.
No começo, a divulgação era centrada em mídias sociais e no jornal local de Itaipava. Mas depois de alguns meses, as indicações – por boca a boca ou via Trip Advisor – se multiplicaram. A empreitada tem alguns desafios: a resistência em relação ao pagamento antecipado, e a insistência de alguns clientes em saber o endereço antes de confirmar a reserva. Até hoje, eles dizem, é complicado calcular o financeiro do La Mesa pois, como negócio e residência se misturam, é difícil separar as despesas.
UMA MESA QUE PODE ESTAR EM QUALQUER LUGAR
Para o futuro, além de conciliar os papeis de empreendedores e pais, Cissa e Javy pensam em lançar uma linha de produtos culinários, mas sem grandes ambições. “A gente não quer ser grande”, diz Cissa, que também quer organizar melhor seus horários para voltar a se dedicar à escrita. A comunicóloga publicou dois livros entre 2015 e 2016 e agora pensa em formas de incluir música, artes plásticas e poesia às experiências do La Mesa.
O primeiro ano do negócio também mostrou que o gastro lar não precisa ser fixo. O casal já fez um evento do La Mesa na Argentina e pensa em, daqui a alguns anos, com mais experiência, se mudar para a Itália. Cissa conta:
“Se conseguirmos entender o que faz o negócio dar certo e como comunicar a proposta, podemos fazer o La Mesa em qualquer lugar do mundo”
Para Javy, o negócio é um aprendizado diário. “Profissionalmente, é muito enriquecedor trocar com tanta gente suas memórias de infância, seus afetos em relação a comida.” Cissa comenta que sua maior conclusão nesta jornada é a urgência em resgatar um outro tempo para comer: “Está todo mundo com fome de comer em paz, com calma, sentir sabores”. É só observar o trabalho de Cissa e Javy para entender que, para eles, um jantar vai muito além de quatro pratos.
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