Quando Eraldo Guerra foi convidado para ministrar Empreendedorismo no curso de Edificações da Faculdade de Ciências Humanas ESUDA, no Recife, ser CEO de startup não estava nos seus planos. O curso não tinha relação com a sua formação acadêmica (ele é mestre em Software e Aplicativos de Mídia) e achava a matéria uma “encheção de linguiça”. “Os alunos sentiam falta de prática, então decidi fazer um projeto que impactasse a comunidade e a vida deles”, conta. Este acabou sendo o embrião da Life Up, empresa que hoje desenvolve produtos tecnológicos de impacto social, como o Cangame, um pacote de serviços para o tratamento de crianças autistas.
A startup recifense marca presença em eventos e premiações de tecnologia e empreendedorismo no Brasil todo. Mas, como muitos exemplos de negócios sociais, ainda não lucra a ponto de chamar atenção de grandes investidores. Até agora, tudo foi realizado via bootstrapping (ou seja, Eraldo e os sócios Gabriel Lourenço, Nicollas Freitas, Asaffe Carneiro, José Fernando e Renato Araújo arcaram com grandes parte dos custos operacionais), mas algumas premiações foram fundamentais para fazer a Life Up crescer. Da Imagine Cup, famosa competição de tecnologia da Microsfot, levaram 4 mil dólares. Mais 4,5 mil reais vieram do Prêmio Brasil Criativo, e o Pernambuco da Sorte rendeu outros 14 mil reais.
O responsável por todo o reconhecimento é o carro-chefe da startup, o pacote de serviços chamado Cangame, batizado assim por somar o verbo “can” (poder, em português) e o conceito de game, de aprender se divertindo. Ele tem dentro de si cinco subprodutos: Cangame Maker, um aplicativo que cria de rotinas de aprendizados de forma específica e personalizada; Learn, uma plataforma educacional; Health, um suporte para profissionais e famílias que necessitam obter informações sobre tratamento, locais específicos, escolas, centros sociais etc; Moove, que usa o Microsoft Kinect para promover tratamento e aprendizado por meio de movimentos, sons e vídeos; e Telemedicine, uma plataforma para acompanhamento de erros e acertos de profissionais que acompanham o tratamento do autismo.
Tanto para o Cangame – quanto para as demais criações da startup – StepBox (rede de transporte compartilhado), HupDay (evento de empreendedorismo social) e SpeakUp (app para ajudar no tratamento de fobia social) – o objetivo é ter ferramentas com finalidade comercial. Mas Eraldo diz que não tem pressa para lucrar, já que a Life Up opera com reservas:
“A nossa projeção é a longo prazo. Hoje, nosso momento é de escala, ganhar confiança, investir. O retorno vem depois”
Para ele, manter o produto e a equipe são as prioridades. “Outras startups do mesmo segmento de demoraram 10 anos para começar a ter monetização real. E o nosso time tem essa consciência.”
UM PRODUTO DE IMPACTO SOCIAL PRECISA SER ACESSÍVEL
O que levou Eraldo a descobrir sua veia empreendedora foi a experiência acadêmica. O primeiro projeto criado em parceria com seus alunos surgiu lá atrás, em 2011: o Construcopo. A ideia era produzir um tijolo feito à base da fibra do coco, que reduziria o descarte no ambiente e problemas como o aedes aegypti. “Isso começou com uma turma e no outro semestre eu tinha cinco turmas e outros alunos queriam participar também. Foi aí que a Life Up surgiu, como célula empreendedora”, ele conta.
Dessas turmas começaram a nascer outro projetos, todos voltado para o impacto social, desde do agronegócios até tecnologias. Na época, Eraldo também trabalhava na sua tese de mestrado. “Eu não queria escolher algo virasse um documento numa biblioteca, mas algo que tivesse um fim que pudesse inspirar outras pessoas e ajudar a sociedade”, diz.
A primeira pesquisa foi a respeito de possíveis soluções para crianças com câncer, mas uma história comoveu Eraldo, e o direcionou a estudar o autismo.
Ele conheceu a trajetória da canadense Carly Fleischmann, que até os 11 anos não conseguiu se comunicar com os pais e hoje, aos 22, é autora de livros. “Assumi o desafio de mostrar que o autista pode fazer muito mais, e me empenhei em criar esse projeto com os alunos”, conta.
Eraldo diz que desenvolver algo como o Cangame requer muita cautela, por ele ser um produto ligado à saúde e educação voltados a um público bastante específico e sensível. Ele conta que algumas pessoas que não acreditam na solução que o Cangame oferece, pois temem que a construção de expectativa, de pais verem seus filhos terem mais oportunidades, possa não se cumprir. O empreendedor diz que, justamente por isso, o produto é customizado, levando em conta que o autista precisa aprender “no tempo dele, de acordo com a fase da vida dele, e suas especificidades”. Além disso, há uma questão financeira importante, segundo o empreendedor:
“O valor do tratamento do autista é muito alto, e isso exclui muito as pessoas, a nossa principal ideia é gerar inclusão”
Por isso, ele diz que receber uma proposta de valor muito alto de um investidor pode deixar o produto mais caro. “A monetização virá, é uma consequência de um trabalho bem feito. Mas a nossa proposta principal não é comercial, e sim ajudar quem precisa.”
PACIÊNCIA E SINTONIA PARA ESPERAR O RESULTADO FINANCEIRO
Apesar da Life Up ter crescido significativamente desde a sua fundação, em 2015, os sócios se desdobram para fazer o negócio se consolidar. Todos os sócios trabalham na startup e não há funcionários contratados. Todo o trabalho é feito remotamente. Gabriel Lourenço é chefe de Design, Nicollas cuida da Tecnologia, Asaffe é responsável pela parte de Programação, José Fernando se encarrega do Desenvolvimento e Renato Araújo é chefe de UX/UI. A equipe está em sua terceira formação e alguns integrantes foram trazidos da Campus Party Recife, da qual Eraldo participou dando mentoria para a criação de um aplicativo de alimentação saudável, de alunos da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Nenhum dos sócios se dedica exclusivamente à Life Up – pelo menos por enquanto. “Somos uma empresa fluida, no formato de complex, que foca em promover o empreendedorismo de alto impacto”, diz Eraldo. Esse formato implica em hibridismo. Em outras palavras, como alguns produtos não conseguem trazer uma renda para manter a operação, o CEO presta serviços como mentoria e consultoria. Ele conta que é difícil estipular o investimento inicial da empresa e o faturamento do produto, então faz a seguinte comparação: “Antes, eu não conseguia nem pagar o celular que eu precisava para fazer o produto rodar, um Windows Phone 7. Hoje, o Cangame funciona em sete países”.
Desde a sua criação, o projeto foi incentivado pelo programa InovAtiva Brasil. Lá, receberam mentoria, apresentaram o pitch em São Paulo, e entenderam mais sobre plano de negócio. No BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) também receberam orientação e atualmente estão sendo participante de um programa da aceleradora 1776, nos Estados Unidos. A internacionalização é um plano importante para Eraldo e seus sócios. “O maior mercado é o americano, porque lá uma em cada 65 crianças nascem com autismo. O número não é tão divergente do Brasil, mas aqui temos menos acesso a diagnóstico”, afirma. O primeiro passo, no entanto, é escalar no Brasil, coletar feedback, aperfeiçoar o produto, e só depois apresentá-lo ao mercado americano para, depois, escalar para o resto do mundo. Resumindo assim, parece fácil. Mas Eraldo diz que não é nada disso:
“Empreender no Brasil é complicado e burocrático. Além disso, os incentivos são poucos, e isso desestimula o time, porque muitas vezes as pessoas estão ali pela questão financeira”
O maior problema do ecossistema brasileiro, de acordo com Eraldo, é a falta de interesse de investidores em projetos de impacto social. “Se você acredita no projeto e tem cuidados, como saber a hora de procurar um investidor e ter o time certo, tem que persistir”.
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