Bem no centro de São Paulo, uma das lojas da Galeria Metrópole abriga bem mais que uma simples confecção. A PanoSocial é uma marca e também um negócio social: pois usa sua produção para gerar impacto ambiental — suas camisetas, ecobags e aventais são feitos de algodão orgânico —, também impacto social — pois quase todos os funcionários vieram do sistema prisional. Sim, ali ex-detentos são especialmente bem-vindos. Desde o fim de 2015, quando a ideia saiu oficialmente do papel, os sócios Natacha Lopes Barros, 39, produtora executiva de moda, e o designer Gerfried Gaulhofer, 44, já empregaram seis ex detentos entre seus dez funcionários, e seguem na busca por aumentar a demanda de matérias primas orgânicas ainda não produzidas no Brasil. Hoje, a empresa tem também o compromisso em reinvestir todo o lucro para a expansão do negócio.
Tudo começou quando Gerfried, austríaco, resolveu conhecer o Brasil e, muito impactado pelas nossas questões sociais, há 15 anos decidiu fazer daqui o seu lar. “Ele veio de um o país de primeiro mundo, foi morar na baixo Augusta, onde precisava se desviar dos mendigos para atravessar a rua”, conta Natacha, sócia e parceira de vida. Foi um padre austríaco, que servia como mediador de conflitos na penitenciária do Carandiru, que apresentou o sistema prisional brasileiro a Gerfried. E ele sentiu que deveria, de alguma forma, contribuir para que ex-detentos pudessem trabalhar com dignidade. “A ideia inicial era fazer um upcycling, produzindo bolsas feitas de câmara de pneu, mas não virou”, diz o designer, que nunca havia trabalhado com moda, têxtil ou empreendido antes da PanoSocial.
Durante as pesquisas de desenvolvimento de produtos, o casal diz ter descoberto que a moda é setor que tem o segundo maior impacto ambiental, logo depois do petróleo. A solução foi encontrar matérias primas orgânicas para fazer camisetas e outros produtos a partir destes insumos. No caso da PanoSocial, o algodão 100% orgânico é o carro chefe, depois vem o algodão desfibrado e 100% de PET reciclado, e em ambos os casos eles usam corantes e pigmentos naturais.
Quando foi apresentada ao projeto, Natacha emprestava seu talento para campanhas de grandes marcas, editoriais de grandes revistas e já não estava satisfeita com este mercado. Ela conta:
“Percebi que meu trabalho gerava o desejo de consumo. Com o projeto, vi que dava para trabalhar com bases orgânicas e mão de obra justa”
E prossegue: “No ramo da confecção tem muita bagunça, pessoas trabalhando em regimes análogos à escravidão, um sistema muito injusto onde uma marca vende camiseta a 120 reais enquanto o costureiro está ganhando entre 70 centavos e dois reais por peça”.
Na PanoSocial os costureiros ganham um salário fixo e, segundo os sócios, é difícil dizer qual é a remuneração por camiseta. Mas é mais que o dobro do mercado. Quando eles precisam contratar costureiros terceirizados, estes ganham por volta de 5 reais, ou mais, por peça. Natacha conta que tudo depende do volume de produção e modelagem. “Produções maiores são negociadas com empresas que prestam serviço em parceria conosco e podem, até, absorver mão de obra indicada por nós”, diz.
COSTURANDO PARA FORA
A Pano trabalha, hoje, com a produção da própria grife e também confecciona produtos para marcas e instituições — como o Greenpeace, Korin e C&A. Para a atender a estes pedidos maiores, a empresa ainda contrata costureiros terceirizados.
As camisetas da Pano podem ser compradas online, no site da empresa, por preços que partem de 66 reais e vão até 150 reais. Os sócios sabem que o valor pode, à primeira vista, ser encarado como alto demais. “Nossa malha é mais cara que a convencional. E queremos uma opção na qual todos recebam de forma justa”, afirma Natacha. Gerfried completa e diz que a PanoSocial vende uma história que também serve para educar o cliente:
“Uma camiseta de 30 reais geralmente vem de um mercado informal, que envolve trabalho escravo. Qual é o impacto social e ambiental disso?”
O investimento inicial no negócio, cerca de 60 mil reais, veio do bolso de Gerfried. Com este montante eles se estruturaram e se sustentaram até janeiro deste ano, quando receberam um investimento da Bemtevi, empresa especializada no fomento de negócios sociais, no valor de 250 mil reais. Segundo o designer, a relação com o investidor é diferente da convencional: “Quanto maior for o impacto da nossa marca, menos juros a gente paga”. Esse valor já tem destino certo – falaremos daqui a pouco. Atualmente, a PanoSocial fatura 150 mil reais por mês e a previsão é fechar o ano de 2017 somando 1,5 milhão de reais.
É SOBRE ENXERGAR DESAFIOS EM VEZ DE PROBLEMAS
Para gerar volume e conseguir negociar melhores preços com fornecedores de matéria-prima, Gerfried e Natacha passaram a produzir também peças de outros designers, marcas pequenas ou grandes e instituições. Esta não era a ideia inicial, mas mostrou-se um caminho interessante para o negócio. “Assim fica mais fácil conseguir um preço menor com os fornecedores e fortalecer o mercado com produtos éticos. O que era um desafio no início virou um modelo de negócio”, conta Natacha.
A aproximação com os ex-presidiários também foi difícil no início. Porém a solução, neste caso, veio até que rápido, quando Gerfried percebeu que a internet poderia ser uma grande aliada neste trabalho: ele anunciou no Facebook o que procurava (ex-detentos para trabalhar na confecção) e, para sua surpresa, o post teve mais um milhão de visualizações. Em seguida, as pessoas começaram a chegar até eles, que não tiveram problemas nas contratações. “Eu os chamo de ‘desafio’, jamais de problema. Bom, a gente vive de desafios, né?”, diz o empreendedor.
Paulo Tadeu Silva, 64, foi o primeiro funcionário contratado pela PanoSocial, em agosto de 2016. Ex-detento, passou 29 anos em reclusão, somando seus dois períodos de prisão. Já experiente em corte e costura, encontrou na confecção “uma família”, como gosta de chamar a equipe. “A gente não se trata como empregado, patrão, nós somos iguais em todos os sentidos. Me sinto mais valorizado como pessoa”, diz. Com o emprego fixo, Paulo conseguiu se estruturar melhor (já tem casa própria e uma chácara, onde começou a plantar produtos orgânicos), além de ter a oportunidade diária de aperfeiçoar seu talento em modelagem e costura.
Com o investimento da Bemtevi, o horizonte da PanoSocial se ampliou. “Nossos planos vão longe, e o próximo passo é ir para um galpão”, conta Gerfried. Depois disso, a PanoSocial que expandir sua atuação pelo Brasil, abrindo novas unidades de produção nas periferias, valorizando esses lugares e melhorado a qualidade de vida do funcionário — que hoje gasta até quatro horas diárias no caminho de ida e volta do trabalho.
Hoje, 60% dos empregados são egressos do sistema prisional brasileiro. Alguns se preparam ainda na cadeia, em oficinas de corte e costura, outros recebem capacitação profissional na própria Pano. Começam como ajudante geral até se tornarem costureiros.
O tempo dos funcionários é dividido em 80% para trabalho, 10% para capacitação profissional (para isso, a PanoSocial tem parceria com oficineiros, que ensinam e trocam experiências com os funcionários, psicólogos e assistentes sociais) e 10% para desenvolvimento humano (que inclui técnicas de meditação “e tudo o que os ajuda a ampliar os horizontes”, dizem os sócios).
FAZER O BEM, COM RESPONSABILIDADE
O Brasil é a 4ª população carcerária do mundo, a que cresce mais rápido enquanto os índices de violência só aumentam. Só em São Paulo, de 70 a 80% dos crimes são cometidos por reincidência criminal. As estatísticas são alarmantes e levam Natacha a fazer um chamado:
“Só 9% dos ex-detentos conseguem emprego. É hora do empresariado olhar para isso. Contratar um egresso é promover também a paz social!”
Ela prossegue: “Uma pessoa, com trabalho digno, que tem orgulho de sair de manhã e voltar à noite empregado podendo mostrar isso por seus filhos é um grande avanço social”. A empreendedora conta que os egressos podem ser encontrados por diversos caminhos, como a Funap, que trabalha dentro dos presídios com oficinas, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), por meio da SERT, e o Afroreagge com o Segunda Chance, um programa de empregabilidade para ex-detentos.
“Temos conseguido grande resultado também em anúncios no Facebook. Muitas pessoas se aproximam e os interessados passam pela nossa equipe técnica antes da contratação. Há um filtro, para que cheguem pessoas comprometidas e para que a gente possa mostrar à sociedade que dá certo. Capacitação é o lema. Dentro das prisões, o que Funap consegue atender com seus programas não chega a 10% da população carcerária”, diz Natacha. Ela conta que há um diálogo com os monitores da Funap e a PanoSocial, visando estender os programas da instituição para os contratados da Pano. A ideia de Natacha é, mais adiante, trazer para a empresa também os egressos de perfil mais desafiador, tais como jovens infratores ou pessoas sem habilidades de costura.
OS ALGODÕES NÃO SÃO IGUAIS
Segundo os sócios, a produção de algodão convencional é a agricultura mais impactante do planeta, representa 3% da mundial, e leva 25% de todo o agrotóxico usado no mundo. “Em cinco anos, não é possível plantar mais nada onde foi plantado o algodão convencional, a terra está infértil e improdutiva, com o lençol freático contaminado. Além disso, 20 mil agricultores morrem por ano, no mundo, 70% de câncer. É uma agricultura muito brutal”, diz ele.
Por tudo isso, o compromisso da PanoSocial é só trabalhar com orgânicos. Os tecidos utilizados pela confecção são de 100% algodão orgânico ou 100% de PET reciclado. Corantes e pigmento são naturais. O algodão orgânico reduz o consumo de água em 91%, emissão de gases de efeito estufa em 46% e 62% no consumo de energia primária.
O PET reciclado são as garrafas transformadas em fibras de poliéster que contribuem para a redução do uso de água: de 11 mil litros por quilo usados na produção do algodão convencional para 3 litros por quilo no tecido de PET. Também é usado algodão desfibrado, que vem das sobras de tecidos descartadas por grandes marcas, como Hering, Marisol e outras.
O tecido plano de algodão orgânico usado pela PanoSocial vem da Paraíba, já a malha de fio orgânico indiano é feita em Santa Catarina. Os sócios dizem que a importação não é o melhor, pensando em sustentabilidade, mas que com o aumento da demanda esperam aumentar a oferta por aqui. Enquanto isso, além de boicotarem o algodão convencional, fazem parcerias com cooperativas e produtores para fomentar o cultivo nacional de algodão orgânico. A ideia é ter pano para manga.
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