Quem não se interessa por temas como veganismo e alimentação vegetariana pode achar que a ideia é só uma nova modinha. Mas a proposta de criar negócios que desconstroem o conteúdo (tirando os de origem animal) enquanto mantêm o visual de produtos “carnívoros” já é bem disseminada em cidades como Amsterdam e Berlim, esta última considerada a capital vegana da Europa. Foi de lá, e também dos Estados Unidos, que o casal Marcella Izzo, 26, à frente da cozinha, e Brunno Barbosa, 28, responsável pela parte administrativa, trouxeram a inspiração para criar o No Bones, o primeiro açougue vegetariano e vegano da capital paulista — e o segundo do Brasil (o primeiro é o VegAninha, de Curitiba).
Depois da inauguração do No Bones, casas semelhantes despontam no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Distrito Federal. O público alvo são os veganos e vegetarianos, mas não somente: também qualquer um que queria experimentar algo diferente ou que esteja cogitando diminuir o consumo de carne e derivados animais, pelo motivo que for. Quem investe neste mercado, porém, aposta na tendência mundial de crescimento da alimentação saudável e, por consequência, na redução de consumo de produtos de origem animal, seja por razões de saúde, pela causa animal em si, ou pelo impacto ambiental que esta indústria gera (e que o documentário Cowspiracy, produzido por Leonardo di Caprio, aborda frontalmente).
Segundo a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), existem seis milhões de veganos no país. Já a última pesquisa Ibope sobre o tema, de 2012, indica que 8% dos brasileiros seguem uma dieta vegetariana. Aliás, é bom destacar a diferença entre veganismo e vegetarianismo. Vegetarianos essencialmente não consomem carne (nem de boi, nem de frango, nem peixe ou frutos do mar, não custa lembrar). Os vegetarianos estritos vão além: não comem nada de origem animal (nem leite, nem queijos, nem ovos, nem mel) e, quando também deixam de comprar produtos com couro e lã, ou testados em animais, são chamados de veganos.
Fora isso, vegetarianos e veganos podem comer de tudo. Parece pouco, mas o reino vegetal é vastíssimo e a criatividade humana, ora ora, também. A chef de cozinha do No Bones acredita que, hoje em dia, com a facilidade de acesso a receitas em sites e no próprio Youtube, é mais fácil seguir essa alimentação. Ela conta como fez a sua transição:
“Parei de comer carne pela causa animal. Quando entendi que eles são seres como nós, porém vítimas de crueldade e violência, comecei a diminuir o consumo”
Sobra muita coisa para consumir, mas é preciso ter criatividade para não se restringir à saladinha e à soja. É o que tem feito o sucesso das invencionices do No Bones, atraindo não só quem segue as restrições alimentares, como pessoas em fase de mudança e até mesmo os radicalmente carnívoros, que lá têm uma chance de se aproximar dessa corrente e aprender que pode ser gostoso comer uma salsicha feita de tomate seco (afinal, melhor saber que é tomate seco do que… bem, do que coisas que não sabemos o que é nem para que servem).
DE ARQUITETA À CHEF: EXPERIMENTAÇÕES GASTRONÔMICAS
Há pouco mais de um ano, os proprietários do estabelecimento se tornaram vegetarianos e, logo em seguida, veganos. No começo, se questionavam como seria essa transição. Marcella conta que sempre foi apaixonada por gastronomia, e que gosta de cozinhar desde pequena: “Quando parei de comer carne e vi que havia poucas opções no mercado, comecei a pesquisar, estudar e a preparar quase que diariamente novas receitas”.
É quando o empreendedorismo vai se apresentando na vida de muitas pessoas: começou com pedidos de encomenda dos amigos, inclusive os onívoros, e ela foi percebendo que poderia deixar a carreira de formação, como arquiteta e designer de interiores, para investir na área na qual já estava inovando por vontade e necessidade próprias. “Com a crise e com menos pessoas investindo em arquitetura, resolvi me arriscar profissionalmente na cozinha”, diz ela.
Após pesquisar referências fora do Brasil e descobrir que já existia um açougue vegano no país, o casal, que sempre sonhou em ter um comércio, resolveu apostar no empreendimento. A primeira atitude para concretizar o projeto foi mudar do apartamento para uma casa em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. “Foram quatro meses montando a loja aqui na garagem do imóvel”, lembra Brunno, sócio de Marcella e publicitário de formação. Mesmo com a rotina dividida entre uma agência, o próprio jornal (o The São Paulo Times) e a coordenação de uma ONG, ainda arranjou tempo para instalar sozinho as câmeras, o sistema de caixa e montar as prateleiras na área de 28 m² que o negócio ocupa. O investimento na transformação do espaço foi feito pelo próprio casal, que desembolsou 60 mil reais de economias próprias.
Enquanto o noivo cuidava da parte administrativa, Marcella criava e preparava as peças a serem vendidas, na cozinha do No Bones, localizada primeiramente no bairro do Brooklin e hoje transferida para outro espaço, em Perdizes, junto com o estoque. Nesta toada, a dupla preparou o açougue para abrir as portas em dezembro passado. A estreia surpreendeu. Em menos de duas horas, as prateleiras ficaram vazias. Foram vendidos todos os 2 mil itens preparados para a inauguração. A grande divulgação na mídia garantiu o sucesso de vendas e permitiu que, em dois meses, os parceiros recuperassem o aporte feito no negócio. Hoje, o faturamento da casa gira em torno de 30 mil reais mensais.
VARIEDADES DE SABORES E CORTES
Quem visita o espaço encontra boa diversidade de opções de carne vegetal. Só produtos fabricados artesanalmente são 20, fora queijos vegetais e até o bacon vegano (juro, existe isso) que são terceirizados e revendidos ali. Na modalidade hambúrguer há seis variedades: lentilha, grão-de-bico com especiarias, feijão preto e azeitona, quinoa com ervas finas, ervilha com cenoura e lentilha com gengibre (com preços entre 6,90 e 9,90 reais). Ainda dá para experimentar a coxinha de jaca, que é o item mais pedido e custa 6,90 reais, além da salsicha de tomate seco (18,90 reais o pacote). Este último, congelado, é o queridinho de Brunno. Ele fala:
“Não parei de comer carne por não gostar. Mas, sinceramente, nossa salsicha é melhor que qualquer outra que já comi”
E engana-se quem pensa que no No Bones (“sem ossos”, em inglês) não há ossos. Existe no menu uma invenção preparada por Brunno, o Caveman Meat (29,90 reais), que imita um osso. “É uma criação nossa. Uma carne baseada na dos homens da caverna, que consiste em uma mistura de três tipos de feijão envolvidos em um ‘ossinho’ feito de mandioca. No final, dá para comer o osso e tudo!”, conta.
Entre as ofertas também há nuggets e linguiça. E, como em todo açougue, é possível achar espetinhos, acessórios para churrasco e até carvão. Mas o que mais chama atenção são pratos como a costelinha e a picanha, tamanha a similaridade na aparência com a versão tradicional (ambas a 39,90 reais). A ribs é feita de cogumelo e coberta com molho barbecue. Já a picanha vem até com a ‘gordura’ acompanhando. “Fizemos muitas pesquisas até chegarmos no corte certo. Bolamos equipamentos para fazer isso. A ‘gordura’ é um queijo vegetal que na churrasqueira fica com essa aparência dourada. A parte da carne é arroz vermelho, fumaça em pó, beterraba e outras especiarias”, diz Brunno. A busca por produtos que se assemelhem à carne é constante.
Embora, a cozinheira não revele o segredo das receitas, dá algumas dicas: “Dependendo do prato, olhamos qual é o melhor ingrediente e textura. A jaca, por exemplo, se assemelha muito ao frango desfiado ou à carne louca”. O casal conta que pensou nessas questões e que seus hambúrgueres são necessariamente mais baratos que os de soja, encontrados no mercado, além de serem artesanais, livres de conservantes e levarem temperos especiais.
Ainda assim, a ideia de produtos que mimetizam a carne desagrada alguns vegetarianos e veganos mais conservadores. Para isso, os parceiros têm uma resposta, calcada na busca por empatia:
“A gente tenta usar o artifício do açougue para atrair quem está no processo de transição, abandonando a carne. Graças a isso, conseguimos chamar atenção e falar da causa animal a milhares de pessoas”
Segundo eles, é o appetite appeal dos produtos que tem feito muitos onívoros experimentarem, por exemplo, uma Segunda Sem Carne, uma campanha global criada pelo ex-Beatle Paul McCartney para convidar as pessoas a deixarem de comer carne um dia da semana, conscientizando-as dos impactos do uso de produtos de origem animal. “A missão do No Bones, além de oferecer produtos para veganos e vegetarianos, é fazer com que quem come carne também diminua o consumo no dia a dia e perceba que as outras opções podem ser muito gostosas. Por isso, a gente usa de cortes e formatos parecidos”, diz Brunno.
A proposta, em tempos de operação Carne Fraca, rendeu novos clientes. Muitos encontraram a No Bones ao pesquisar por um estabelecimento confiável para comprar carnes vegetais. A semelhança com os produtos tradicionais também rende histórias engraçadas. “Teve gente que veio aqui procurar carne desossada e candidatos que ligaram perguntando se havia vaga para açougueiros”, conta o sócio.
NOVAS ESTRATÉGIAS
O No Bones começou como um açougue, ou seja, tudo o que é vendido lá está congelado ou precisa ser assado para o consumo, com exceção das coxinhas de jaca, que além de congeladas podem ser provadas no balcão. Contudo, a demanda do público fez os empreendedores perceberem que precisavam de um ponto para vender algo que pudesse ser degustado na hora. Para isso, reinvestiram 15 mil reais em um espaço ao lado, o The Flavor, onde a clientela pode provar duas opções de hambúrgueres acompanhados de cerveja. No começo, o local revendia inclusive doces veganos. Mas resolveram se concentrar apenas nos lanches e bebidas.
Aos poucos, a ideia inicial da loja na garagem vai ganhando corpo. Recentemente, começou a realizar delivery dos congelados. Quem entrega é uma empresa terceirizada. Convites para a abertura de franquias também são estudados. Já há pedidos de cidades de todo o Brasil. Mas tudo é analisado com calma para evitar erros já cometidos no início do negócio. “O que mais nos quebrou foram parcerias que deram errado. Tem que tomar muito cuidado até para não tomar certos calotes, sempre fiscalizar estoque e fornecimento, principalmente quando você atua num mercado vegano, no qual há a necessidade de saber a procedência”, diz Brunno. O casal conta que hoje corre muito atrás e faz pesquisas para evitar problemas semelhantes. Conferir se os fornecedores da cerveja patrocinam rodeio, por exemplo, faz parte da rotina de quem expõe nas prateleiras produtos 100% cruelty free.
Os aprendizados são muitos e a mudança na rotina da dupla também. Para Brunno, uma das grandes diferenças, agora que possui um comércio, é trabalhar aos sábados. Mas ele não se importa. Faz questão de estar presente, conferir os pedidos, pedir opiniões. Marcella, sem querer, tornou-se uma referência na área gastronômica. “Quando você começa a ganhar uma visibilidade, vai ao mercado e os clientes te reconhecem, algumas pessoas falam que já te viram na TV!”, conta. Mas a principal transformação, para eles, está em terem deixado o antigo apartamento. “Fomos criados no interior e sentíamos falta de ter uma vizinhança mais próxima e conhecer as pessoas”, dizem os sócios que, após finalizarem o expediente, têm o privilégio de apenas subirem as escadas para chegar em casa. E com as roupas limpas.
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