Era 2013. O pai de Marina Vaz, 31, enfrentava um câncer na língua e por causa da doença começava a perder a capacidade de falar. Ela não se conformava com a possibilidade de não poder mais ouvi-lo e começou a gravar suas frases mais marcantes. “Eu não queria perder aquilo porque meu pai era uma pessoa muito eloquente, tinha bordões incríveis. Ele falava acachapante, uma palavra que ninguém usa”, conta ela. Os áudios eram usados para que o pai pudesse se comunicar de forma personalizada, mantendo sua identidade (veja só) nos áudios de WhatsApp.
Ainda não era uma ideia para um negócio. No entanto, com o início da personalização das vozes do Waze (o aplicativo de orientação no trânsito já contratou humoristas para darem as instruções ao motorista), uma luzinha se acendeu na cabeça de Marina. Ela queria levar para outras pessoas na mesma condição do pai a possibilidade de se expressarem com mais identidade. Mas a SoulVox só se concretizou após Marina, que é arquiteta de formação, conhecer a fisioterapeuta Thais Romanelli, 36, que se tornaria sua sócia.
Lançada em julho do ano passado, a startup já possibilitou que 20 pessoas que perderam a capacidade de falar reencontrassem a própria voz a partir de um software de comunicação assistiva que utiliza gravações antigas do cliente.
Existem no mercado dispositivos que fazem a mesma coisa, mas nenhum usa a voz original do usuário. Talvez por isso, as empreendedoras tenham conquistado tantos prêmios. Quatro em menos de um ano: Startup Weekend Saúde, Desafio Pfizer 2016, Prêmio Mulheres Tech in Sampa e Big Hackathon da ONU. O próximo passo, agora, é permitir que pessoas que não tenham registros de áudio consigam se expressar por meio de vozes compatíveis com as suas, obtidas por doações. Isso mesmo: é possível doar sua voz para a Soulvox.
O ENCONTRO DAS SÓCIAS E A CONCRETIZAÇÃO DAS IDEIAS
Quando se conheceram, tanto Marina quanto Thaís estavam em uma fase de transição de carreira. Marina, arquiteta, se sentia descontente no emprego como cenógrafa em uma emissora de TV, em São Paulo. Não via possibilidades de crescimento e, menos ainda, de ter a autonomia que desejava para realizar os projetos. Depois que seu filho nasceu, ela combinou consigo mesma que só voltaria ao mercado de trabalho se fosse para fazer algo que o deixasse orgulhoso.
Com mais de 15 anos de experiência na área da reabilitação, Thais também não estava satisfeita. A fisioterapeuta fazia o que sempre sonhara: ajudava a amenizar o sofrimento de outras pessoas realizando atendimentos no Hospital das Clínicas. Mas ainda sentia a necessidade de arriscar e fazer mais.
Desde que pediu demissão, a arquiteta começou a colecionar passagens pelo Startup Weekend, evento no qual futuros empreendedores têm a chance de tirar uma ideia do papel e criar protótipos de empresas em apenas 54 horas, entre uma sexta-feira e um domingo. Antes de apresentar a ideia do software de comunicação assistiva no ano passado, ela chegou a prototipar, em uma edição anterior, um aplicativo que ajudava o usuário a reservar um motel.
Por sua vez, mesmo sem abandonar o emprego, a fisioterapeuta também passou a participar de eventos voltados para o desenvolvimento de um negócio. Diante das dificuldades enfrentadas por alguns de seus pacientes de outras cidades, que muitas vezes precisavam faltar às consultas por limitação de recursos para o transporte ou local para dormir, ela concebeu um projeto que conectava famílias de pessoas com deficiências a uma rede de caronas e hospedagens.
A ideia de Thais não passou no crivo do júri, ao contrário da de Marina (o embrião do que seria a SoulVox). Como é a praxe no evento, Thais e outras quatro pessoas na mesma situação se juntaram à Marina para, juntas, desenvolverem um protótipo da ideia vencedora — que deveria ser apresentando ainda no domingo.
UMA CORRIDA CONTRA O TEMPO E MUITA SINCRONICIDADE
Ainda no sábado, Thais entrou em contato com uma artista plástica e arte educadora que havia sido sua paciente. Ana Amália Barbosa, 51, sofreu um acidente vascular cerebral de tronco, em 2002, no momento em que apresentava sua dissertação de mestrado na USP. Em decorrência do AVC, ficou tetraplégica e passou a se comunicar apenas com o movimento dos olhos e da boca. Com a capacidade intelectual preservada, não desistiu de seguir em frente e continuar estudando.
Apesar das dificuldades, ela defendeu uma tese de doutorado, continuou dando aulas e até escreveu um livro. Hoje está cursando o pós-doutorado. Tudo com o auxílio de uma prancha de comunicação que emite sons eletrônicos pré-programados ou escreve o que ela deseja, após o ‘clique’ em letra por letra com o movimento do seu queixo. Quando recebeu a ligação da fisioterapeuta para participar de um teste que permitiria que ela passasse a se comunicar com a própria voz, aceitou na hora.
Ana entregou para o grupo um VHS (arquivo analógico de vídeo) com uma aula gravada, portanto um rico registro de sua voz. “Naquele final de semana aconteceram vários pequenos milagres. Primeiro, conseguimos achar a Ana e ela topou nos receber. Depois, por mais incrível que pareça, ela tinha uma gravação. E não só isso. Era uma aula em que sua voz se destacava em um ambiente silencioso. Nós não tínhamos um aparelho onde rodar o VHS, mas descobrimos que a cuidadora dela tinha o equipamento!”, contam emocionadas as parceiras ao lembrarem o episódio.
Os integrantes do projeto passaram a madrugada decupando três horas de fita, recortando e tratando os áudios. A ideia era disponibilizar as frases que conseguiram criar e que faziam parte do repertório da artista plástica em uma interface que ela pudesse acessar com um clique, do mesmo modo como usava o outro sistema. A chance de ouvir a própria voz foi única e descrita por Ana em seu blog em um texto emocionante e que terminava assim:
“A voz é realmente a impressão digital da alma”
No dia seguinte, o grupo foi aplaudido durante o pitch ao mostrar o protótipo do Eu Falo (nome que o projeto ganhou provisoriamente) e a maneira como conseguia devolver identidade e personalidade para quem está preso dentro do próprio corpo. A turma saiu vencedora do evento. Mas os integrantes foram se dispersando e apenas Marina e Thais decidiram tocar o projeto adiante, que passou a se chamar MinhaVoz. A sintonia entre as duas bateu forte. Tanto que Thais arriscou largar o hospital para se dedicar, assim como Marina, em tempo integral à startup que estava nascendo. Juntas, desembolsaram 20 mil reais para estruturar o empreendimento.
ENTENDENDO QUE O PRÓPRIO NEGÓCIO TAMBÉM TEM SUA LINGUAGEM
A cada dia, a arquiteta e a fisioterapeuta iam descobrindo um pouco mais sobre o próprio negócio. As mentorias que passaram a receber por causa dos prêmios conquistados foram essenciais neste processo, em especial para desenvolver o software, que hoje em dia roda em Windows. Marina fala dessa fase:
“Nosso maior problema, no início, foi entender que éramos uma empresa de tecnologia, mesmo sem ter ninguém que entendesse do assunto na equipe”
Ela conta que quem as ajudou foi o mentor nesta área, Flávio Camilo, diretor da Orion Digital. “Ele realmente pôs a mão na massa”. As assessorias também fizeram as duas entenderem melhor o mundo das startups, como diz Thais: “As mentorias ajudaram bastante para que nos posicionássemos e assimilássemos até o vocabulário que esse ecossistema de empreendedorismo usa e que a gente não conhecia”.
Em um desses encontros elas foram, inclusive, aconselhadas a colocar um nome mais impactante no negócio, de preferência em inglês. Inspiradas pelo depoimento da primeira cliente, que relacionava a voz com a alma, decidiram batizar a startup de SoulVox.
Mas o principal desafio foi validar o valor da voz das pessoas. Marina enfatiza que tinham a preocupação de oferecer uma solução acessível, apesar de o mercado nesta área de comunicação assitiva no Brasil ser muito carente de recursos. “A defasagem tecnológica neste meio vai muito além da voz robotizada. As pranchas simples de comunicação, no geral, custam 1.000 reais. Mas se for uma tecnologia de ponta e importada pode chegar a 50 mil reais”, diz ela. Por fim, chegaram a um valor a ser cobrado pelo serviço: 500 reais pelo software e uma taxa extra por hora de áudio tratado.
UM BANCO DE VOZES
Como todo o serviço é feito de forma manual, as empreendedoras ainda não conseguiram atender a um número grande de pessoas. Já foram procuradas por instituições de saúde, mas querem dar passos maiores com cautela. Elas escolheram, por exemplo, abrir o serviço para dez clientes que estavam em uma fila de espera.
Além disso, para atender quem não possui um registro de áudio, começaram a criar um banco de vozes. Assim como há uma busca de compatibilidade na hora de um transplante de órgãos, quando alguém está prestes a perder a voz, ou já perdeu, a ideia é achar uma que seja parecida. A compatibilidade é baseada em características pessoais, físicas e regionais, pareadas entre doador e usuário. Em uma parceria com a rádio 89 FM, a SoulVox conseguiu coletar mais de 400 vozes diferentes para o seu acervo em apenas um final de semana.
A rádio bancou uma cabine para captar vozes doadas, que foi montada pela primeira vez no Festival Path, realizado no início de maio deste ano em São Paulo. Os interessados em contribuir eram orientados a gravar as cinco vogais do alfabeto e a dizer seis frases, cinco delas programadas por uma fonoaudióloga para capturar todos os fonemas da língua portuguesa.
A última era uma provocação: Que frase ou palavra você sentiria mais saudades de falar caso perdessem a voz? “A maioria dos doadores, assim como nossos cientes, escolhe, na mesma proporção, ‘eu te amo’ e um palavrão. Acho que palavrão até ganha um pouco, porque as pessoas estão em uma situação tão encarcerada que xingar é libertador”, diz Marina.
Após o sucesso da primeira campanha de doação de voz, a cabine também esteve presente na Virada Empreendedora e irá a pelo menos mais um evento. “Por mais que a cabine seja uma ação pontual, estamos começando a entender que ela também é um produto da SoulVox com uma forma de ajudarmos grandes empresas a se posicionarem mais próximas de propósito e captarmos recursos”, conta Thais.
Para agilizar o processo de match entre doadores e receptores de vozes, viabilizando a tecnologia fonética que permitirá que os áudios sejam editados e transformados nas frases desejadas pelo cliente de forma automática, Marina e Thais irão lançar ainda neste semestre um crowdfunding no qual pretendem arrecadar 100 mil reais. O valor também servirá para adaptar a programação do software para celulares e tablets.
Enquanto isso não acontece, a dupla, que conta com o apoio de apenas mais uma funcionária (a produtora Luciana Arantes), realiza o processo de edição do primeiro cliente que utilizará uma voz doada. “Depois que a gente divulgou o vídeo da cabine, a mãe de um menino veio nos procurar. Ela contou que o que mais sente falta é de escutar ‘eu te amo, mamãe’. Nós já encontramos um doador compatível que o próprio paciente escolheu e estamos gravando os áudios”, contam as sócias, vibrando com a possibilidade de mais uma vez realizarem o sonho de devolver a identidade sonora a uma pessoa, ajudando a alavancar sua recuperação. É tão legal que dá vontade de gritar.
Vencedora (na última quarta, 25) do Innovation Awards Latam, a startup mineira cria soluções que ajudam pessoas com paralisia cerebral e movimentos limitados a se comunicar – e aposta agora num modelo de acessibilidade por assinatura para impactar mais gente.