Conheci Julia Cameron há exatos cinco anos quando, grávida da Carolina, no finzinho da gestação, fui provocada pelo Marcello Lacroix para ir a um evento num café novo aqui em São Paulo. O Marcello tinha, no ano anterior, conduzido um curso, em Porto Alegre, chamado “Art of Hosting”. Foi lá que conheci muitos dos makers, inquietos e amorosos que transformaram minha vida nos últimos tempos. E foi também lá que resgatei alguns conceitos da tal “arte de anfitriar” que tinha aprendido desde cedo com a minha mãe. Não dava para recusar um convite vindo de uma fonte como a do Marcello. Além disto, para uma pessoa ativa como eu, os últimos dias de gestação eram desconfortáveis. Uma entrega ao descontrole do tempo que eu não estava acostumada. Seria uma delícia circular em um outro ambiente e, por tabela, conhecer novas pessoas.
Convidei a Maria Diva, amiga querida e corajosa, e fomos. Lá eu conheci a Florentine, uma holandesa forte que sorri com os olhos. Ela é casada com um gaúcho de nome Henrique e estava, há algum tempo, tocada por um livro chamado The Artist’s Way. Queria nos contar, naquela noite, algumas das coisas que a tinham tocado na leitura e jornada do livro. Foi, aos poucos, fazendo exercícios conosco, desenhando perguntas e tirando, de cada um de nós, histórias. Éramos umas dez pessoas. Com exceção da Maria Diva, eu não conhecia ninguém. Tinha uma atriz bonita, ativa e falante no grupo. Dela eu lembro bem. No fim do encontro, numa mesa colorida, com canetinhas e papeis de muitas formas, saí com uma espécie de autobiografia nas mãos. Eu a tenho até hoje.
Parecia tudo tão lúdico e simples. Como tinha se tornado tão profundo? O tal livro era de uma autora chamada Julia Cameron
Tempos depois, Carolina já entre nós, e eu com uma vontade enorme de fazer algo diferente e provocativo, a Flor desenhou de próprio punho uma jornada de doze semanas, baseada no livro da Julia. A proposta era a de resgatar o artista em cada um de nós. Anos antes, a minha segunda terapeuta mais holística, ainda em Porto Alegre, a Evanir, falava no resgate da criança interna. O que o The Artist’s Way propunha era algo muito parecido. Só que ela, a autora, fala e falava que o artista é, de certa forma, a criança criativa que vive em cada um de nós e que cresce abafada pelo adulto e suas rotinas. Baseada no livro, que propõe 12 semanas de autoconhecimento, a Flor criou, na mesa da sala da própria casa, uma jornada para um pequeno grupo. Foram doze semanas intensas de autodescoberta. Quando fez o curso, ela estava grávida e sedenta por gestar algo novo e criativo. Entendo bem o que estes hormônios fazem com as mulheres nesta fase da vida.
Para uma estudiosa como eu, acostumada a buscar respostas racionais para as leis da vida, a jornada que a Julia propunha era algo inesperado, curioso e sedutor. Tive uma infância cercada pela natureza e por estímulos criativos. Fazer aquele trabalho todo na casa da Flor, com bolo feito por ela, chazinho, cercada por canetas coloridas e mimos estava deixando minha menina interna inebriada. Ao mesmo tempo, em meio a esta euforia toda, fui acessando, dia a dia, sombras e dores infantis.
A Julia usa metáforas, nos conta histórias, faz perguntas “bobas” e, quando a gente vê, acessa algo do fundo do baú
A trajetória do curso foi uma das experiências mais marcantes que vivi na minha vida, não por acaso logo depois da Carolina ter chegado ao mundo. O livro me abriu caminhos e possibilidades. E uma vontadezinha de entender mais a jornada dela, autora, como pessoa, até chegar nesta teoria toda.
Quando desenhei a aula para a Academia Draft, em meados de 2016, resolvi revisitar algumas das formações que tinha feito logo depois da minha gestação. “Re-descobrir” e dar colo para minha criança artista interna através da jornada do livro da Julia Cameron tinha sido, sem sombra de dúvidas, uma das experiências mais marcantes deste período todo. Fiz então uma aula, em julho, baseada no livro e ainda tocada pela experiência que tinha vivido com a Flor uns anos antes. Revisitar os papeis e o livro foi um alento.
No livro, durante a jornada, a Julia trabalha alguns sensos essenciais na nossa vida: senso de autonomia, poder, autoproteção, senso de integridade, compaixão, fé, conexão e abundância, entre outros. Ensina a fazermos, ao menos durante as doze semanas, as “Morning Pages”, três páginas matinais escritas necessariamente a mão assim que acordamos. Você escreve três folhas inteiras, sem pensar, e guarda. Coloca data e, tempos depois, relê o que o seu subconsciente contou. Garanto que surpreende. Eu tenho usado as Morning Pages com “liberdade poética”. Como nem sempre consigo escrever de manhã cedo, eu as uso, por exemplo, para abrir um workshop, quando percebo que as pessoas estão dispersas. Dou três folhas para cada um e peço que preencham todo o espaço até o fim, sem pensar. Quando terminam, “voltam” inteiros.
Um cliente meu (mais que um cliente, um coautor de inquietações na vida) tornou as Morning Pages um hábito. Escreve religiosamente todo dia, quase como um diário. Vez ou outra, compartilha comigo parte do que colocou no papel. A mesma Julia dos sensos e das Morning Pages nos convida a fazermos uma vez por semana um passeio com o nosso artista (The Artist Date). Uma vez na semana você se arruma para sair consigo mesmo. Ninguém mais, além de você e seu artista, está convidado. Parece loucura, mas é uma cura. Um resgate da vontade de estar consigo.
O que mais a Julia propõe? Que você escreva sobre:
– cinco vidas imaginárias;
– cinco dons que gostaria de ter;
– cinco cursos que adoraria fazer;
– quem foram inimigos da sua autoestima na infância;
– quem foram os heróis na sua vida;
E pede que escreva uma carta para você mesmo aos 8 anos e, outra, aos 80.
São tantas atividades e possibilidades que o livro e a jornada tornam-se um parque de diversões para a alma
Gostei tanto de relembrar os escritos do curso, de revisitar o livro através da aula, de testar as atividades com pessoas em quem eu confiava — e que se entregaram a um processo às cegas, que fiquei genuinamente curiosa para saber mais sobre a história da Julia. Como esta mulher chegou a esta teoria? Que caminho percorreu? Ela conseguiu resgatar o próprio artista? Como o fez?
Eu nunca a vi, mas, desde que “a conheci” através de sua obra, sempre a senti tão próxima! O que sei sobre a Julia? O seguinte: nasceu em 4 de março de 1948 (tem 69 anos hoje); é professora, escritora, artista, poeta, novelista, filmmaker, compositora e jornalista; nasceu no subúrbio de Chicago e começou sua carreira no Washington Post, indo, logo a seguir, para a Rolling Stones; foi a segunda esposa do Scorsese, com quem tem uma filha. Escreveu com ele três filmes; se envolveu com drogas e álcool até que, quase no fundo do poço, passou a ensinar desbloqueios criativos; e começou, então, um caminho de espiritualidade e criatividade.
Ela não teve uma biografia linear. Foram tantas coisas! Mexeu com tantas possibilidades! E foi quando chegou quase ao fundo do poço que ela desenhou esta teoria que hoje nos transforma. A raiz da jornada do The Artist’s Way foi a própria jornada de autoconhecimento e cura da Julia.
Ainda não estive com ela. Mal sei onde ela vive hoje. Mas sei que segue produzindo. Tem um livro para pais The Artist’s Way for Parents e um para “work”. Em outro, ainda, fala sobre recomeços de vida após os 50 anos.
A Julia mexeu comigo, com a minha vida. Sem saber, ela foi uma heroína na minha biografia
Pretendo um dia (muito em breve, espero) contar isto pessoalmente para ela. Nas cartas que a Julia propõe que escrevamos durante a jornada, ela pede que façamos uma para os inimigos da autoestima e que os perdoemos através delas, sem necessariamente mostrar a eles. Nas que escrevemos para os heróis, ela sugere que contemos às pessoas que foram importantes nas nossas vidas. – Julia, uma hora destas eu vou tomar um café contigo. Aí eu te agradeço e conto o quanto tu transformaste a minha vida e as minhas aulas. Obrigada.
Andréa Fortes é fundadora da Sarau. Este artigo é parte da série de artigos intitulada “Costuras de Vida”, todos disponíveis abaixo:
COMO TUDO SE CONECTA
JULIA CAMERON e o Caminho do Artista
BERT HELLINGER e as Constelações
RUDOLF STEINER e a Antroposofia
KEN WILBER e a Teoria Integral
Andréa Fortes, da Sarau, conta como o "resgate do artista", as Constelações Sistêmicas, a Antroposofia e a Teoria Integral transformaram sua vida - para melhor - nos últimos anos. Para ler e mergulhar.