Em 11 de setembro de 2001, Stéphanie Habrich trabalhava no Deutsche Bank, no quarto andar da Torre Sul, no World Trade Center, em Nova York, e teve apenas os saltos dos sapatos quebrados no mais grave atentado da história dos Estados Unidos. A derrubada de um dos principais cartões postais do mundo impactou de maneira decisiva para que ela deixasse a carreira no mercado financeiro e apostasse no projeto que sempre sonhou: a criação de conteúdo para o público infantojuvenil.
A mudança, claro, não aconteceu da noite para o dia. Foi complexa e continua sendo. Há dez anos, após tentativas frustradas de parcerias com publicações europeias, ela criou a editora Magia de Ler e colocou no mercado as revistas Toca e Peteca, de periodicidade bimestral. Durante nove anos, sofreu com as dificuldades de empreender no Brasil, chorou, faliu, se reergueu, e em 2016, tirou as duas publicações de circulação. A decisão foi tomada após um período de incubação na Quintessa. Todas as fichas agora estão depositadas no jornal Joca, criado em 2011, voltado para jovens entre 8 e 14 anos e que atualmente faz parte do material didático de mais de 150 escolas da rede pública e particular por todo o País.
Stéphanie, 47 anos, carrega um leve sotaque europeu. É filha de pai alemão e mãe francesa. Nasceu na Alemanha, mas veio para o Brasil quando tinha nove anos. O pai era diretor financeiro da Volkswagen e foi transferido para São Paulo. Ela conta que viveu até os 18 anos em uma bolha estrangeira dentro da capital paulista. Estudou em escola suíça e foi conhecer o primeiro brasileiro, o primeiro namorado, quando tinha 18 anos. Por ter pouco contato com a cultura local, precisou de um ano de cursinho para aprimorar o português, conhecer melhor a história do país e finalmente entrar na faculdade. Formou-se em administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas no início dos anos 90 e mudou-se para Nova York.
QUANDO TRABALHAR 20 HORAS POR DIA ERA O MÁXIMO
Nos Estados Unidos fez estágios no mercado financeiro até ser contratada pelo Deutsche Bank. Durante seus vinte e poucos anos achava linda a carreira que começara a trilhar. Ganhava rios de dinheiro, trabalhava 15h, 20h por dia e estava tudo bem:
“Minha roda de amigos era toda da área. Eu me sentia super powerfull. Só fazia isso da vida. Achava que quem trabalhava em banco de investimento era ‘o’ cara”
O passar do tempo e a rotina exaustiva fizeram com que Stéphanie, aos poucos, iniciasse uma busca paralela por novos caminhos. No ano 2000, ela contratou a consultoria da GV por um ano para analisar a viabilidade de lançar uma revista infantil no Brasil. A leitura sempre foi sua paixão. Durante a infância, devorava revistas francesas e alemãs voltadas para crianças que os pais assinavam. “Na França e na Alemanha, há quase cem revistas para esse público em cada país. E aqui tinha só a Recreio. Sempre achei isso um absurdo.”
A conclusão do estudo foi que o cenário era propício para investir na área. A então empresária do mercado financeiro passou a viajar esporadicamente à França para tentar trazer as revistas ao Brasil. O intuito era trabalhar como representante de publicações infantis e continuar a carreira no mercado financeiro. Só que veio o 11 de setembro.
O RELATO DE QUEM SOBREVIVEU AO MAIS GRAVE ATENTADO DOS EUA
Na terça-feira, às 8h48, o primeiro avião bateu na Torre Norte do World Trade Center. Stéphanie tinha 31 anos e relata os momentos de pânico: “Estava trabalhando. Ouvi um estrondo e todos saímos correndo. Deixei tudo, bolsa, celular e descemos as escadas. Nos avisaram inicialmente que era um avião de acrobacia que tinha batido. Fiquei sentada na calçada esperando que os bombeiros liberassem para a gente poder voltar. Aí ouvi o segundo estrondo (às 9h06, outro avião atingiu a Torre Sul). Deu um monte de explosões, mas estava em um local que não dava para ver.” Ela conta mais:
“Vi uma pessoa se jogar do alto do prédio e fui embora. Pensei que estivessem bombardeando Nova York. Muita gente morreu porque ficou lá embaixo olhando. Eu saí correndo”
E prossegue: “Precisava ligar para os meus pais de algum lugar. Os prédios em volta haviam fechado as portas. Fiquei desesperada. Não dava para ficar lá. Já estava sem sapato, porque meu salto havia quebrado nessa correria. Morava na Rua 82. Fui de metrô, o metrô estava de graça. Estava sem a chave de casa, então bati na porta dos vizinhos e pude ligar para os meus pais. Nisso já haviam se passado umas três horas. Ainda não sabia o que tinha acontecido. Meu pai estava no Brasil e minha mãe na França. Na França tem a capela Miraculosa. Minha mãe já estava sabendo de tudo e estava rezando lá. No caminho de casa, as torres caíram.”
Stéphanie não conhecia nenhuma das três mil vítimas do atentado. E passou os dias seguintes hipnotizada, assustada ao ouvir o barulho de qualquer avião. Mas a comoção que houve em Nova York após o acidente lhe acolheu. “É tão estranho falar isso, mas foi uma coisa grave e ao mesmo tempo gostosa. Porque você estava em um clima de conforto, com pessoas que você não conhece. As pessoas se juntam, dividem história, comida. Foi um sentimento diferente, estranho”, conta.
Outra coisa que espantou a empresária foi a rapidez com que o Deutsche Bank retomou as atividades. Nos Estados Unidos, as grandes empresas possuem galpões especiais para o caso de acontecer catástrofes como essa. A do banco alemão ficava em Nova Jersey. O atentado aconteceu na terça-feira e, na sexta-feira, Stéphanie estava de volta às atividades. “Eles tinham psicólogos e ofereceram de tudo. Imagina um campo de futebol cheio de computadores. E o meu computador era o L102. Sentei lá e tinha tudo, meus arquivos, meus e-mails. Amazing. Sentei lá e continuei trabalhando como se nada tivesse acontecido. Estava tudo pronto, inacreditável.”
A DEMISSÃO E O INÍCIO DE UMA VIDA NOVA
Mas os Estados Unidos haviam mudado completamente. O país passou a dificultar a entrada de estrangeiros e o mercado optou por dar preferência a pessoas nativas. Quatro meses depois do atentado, o Deutsche Bank voltou para Manhattan. Stéphanie trabalhava em uma área que tinha o intuito de montar o primeiro banco totalmente online no Brasil. Mas a ideia não foi para a frente e ela foi demitida em 2002. Nessa época, também recebeu por correio alguns documentos encontrados nos escombros. Ela conta que o acidente não afetou sua vida: “Foi zero trauma. Não sou uma pessoa traumática. Bola para frente”.
O problema foi que Stéphanie não conseguiu mais arrumar emprego na área e por isso aproveitou a oportunidade para fazer mestrado em relações internacionais na Columbia University. Era uma forma também de repensar a carreira. Durante os estudos, ela seguiu viajando para a França, na tentativa de trazer para o Brasil as revistas infantis. Ao mesmo tempo, conheceu o futuro marido, um brasileiro que trabalhava no mercado financeiro de Nova York e com quem teria três filhos: Luca, 13 anos, Matheu, 11, e Nico, 9.
O mestrado foi concluído em 2004, quando nasceu o primogênito. Dois anos depois veio o segundo filho e o marido foi transferido para o Brasil. Por consequência, ela desistiu dos editores franceses, que não consideravam o país tropical abençoado por Deus um local sério e seguro para fazer qualquer investimento. Foi quando Stéphanie tomou coragem para se tornar empreendedora. Em 2007, ao lado de uma sócia que deixaria o negócio pouco tempo depois, criou a editora Magia de Ler e lançou as revistas Toca, para crianças de 1 a 4 anos, e Peteca, de 5 a 8 anos.
NO PRIMEIRO EMPREENDIMENTO, ELA FALIU
O investimento inicial foi de cerca de 200 mil reais. As revistas, bimestrais, eram vendidas somente por assinatura ao custo de 120 reais por ano e tinham como modelo de negócio as publicações estrangeiras. Deu errado: “Foi um choque cultural muito grande. Achei que seria como na Europa, os pais assinariam que nem loucos, mas não. Os pais não assinam”. Para se manter, ela buscou parceria com livrarias, mas recebia como resposta que os pais atuais gostavam de coisas com barulho. Em 2008, faliu:
“Eu chorava muito. No Brasil, quem empreende não tem nenhuma ajuda. Pago os mesmos impostos que uma Coca-Cola. É impossível. Querem que eu empregue as pessoas ou não? É difícil para caramba”
Stéphanie não desistiu do negócio. Com a Toca e a Peteca paradas, passou a fazer revistas infantis para empresas. Produziu para a Livraria Cultura, para a Gol, a Tam… Em paralelo, fez uma projeção financeira para levantar capital e retomar seus projetos iniciais. Também mantinha contato com os antigos assinantes e informava todas as dificuldades que estava enfrentando para retomar as revistas. Em 2009, um pai ligou e disse que tinha interesse em investir. Colocou 150 mil dólares em ativo e outros 150 mil dólares em dívida.
Na base da raça e com o auxílio luxuoso do marido, a Toca e a Peteca continuaram vivas, fechando ano a ano no vermelho, mas vivas. Dois anos mais tarde, em 2011, com melhor conhecimento sobre o mercado brasileiro e sem muitos estudos técnicos, na cara e na coragem mesmo, ela teve a ideia de criar o Joca, um jornal quinzenal.
O JOCA NASCE PARA FAZER PARTE DO CURRÍCULO ESCOLAR
O detalhe para o lançamento da publicação — e que fez toda a diferença — foi a mudança de foco: em vez de vender somente para os pais (continuava também com essa opção), a publicação agora seria oferecida às escolas. “Tinha que dar certo. Na França tem mais de 10 jornais diários para crianças. Nos Estados Unidos, mais de 30. O Time For Kids, por exemplo, tem três milhões de assinantes.”
A assinatura do Joca, no valor de 119 reais à época (neste ano aumentou para 139 reais), entrava na lista de material escolar encaminhada aos pais. De início, teve família que reclamou do gasto a mais. Mas o passar do tempo serviu para validar o negócio e o Joca se tornou indispensável nas salas de aula de unidades de ensino tradicionais como Pentágono, Gracinha, Carandá, Colégio Pio XII, entre outros.
Há dois anos, Stéphanie passou por incubação na Quintessa. Em 2016, optou por tirar de circulação as revistas Toca e Peteca e focar os esforços apenas no Joca, que hoje conta com uma equipe de 15 pessoas. Além do impresso, existe o site, que é atualizado diariamente, há a criação de exercícios online supervisionados por uma pedagoga, e o próximo passo será consolidar a TV Joca, que terá canal de YouTube e um programa diário para falar em uma linguagem acessível sobre assuntos de atualidades.
FINALMENTE UM MODELO DE NEGÓCIO FINANCEIRAMENTE SUSTENTÁVEL
O ano de 2016 foi o primeiro que não deu prejuízo e a Magia de Ler atingiu o break-even, com faturamento de 400 mil reais – 90% desse dinheiro veio das parcerias com escolas e 10% de assinaturas individuais.
Hoje, portanto, mais de 100 escolas particulares pagam pelo jornal, que tem uma tiragem de 11 mil exemplares. A meta é quintuplicar esses números até o final de 2017. Por isso, as vendas nos meses de setembro e outubro são fundamentais. Pois é nesse período que as escolas fecham o orçamento para o ano seguinte.
Stéphanie investiu em marketing para tentar alcançar essa meta. Além disso, encomendou pesquisas de impacto para comprovar a contribuição do Joca na educação das crianças. A empresa francesa Planète d’Entrepreneurs entrevistou mil crianças que leem o jornal e outras mil que nunca tiveram acesso ao periódico. Entre os leitores, 30% disseram que as notícias que mais chamam sua atenção são relacionadas à ciência, tecnologia e finanças e 13% deram preferência à celebridades e entretenimento de massa. Entre os que não leem, 30% preferem notícias sobre celebridades e apenas 2% citou ciência, tecnologia e finanças. Além disso, 80% dos leitores do jornal comentam as notícias com amigos e parentes.
O Joca também é doado para as escolas públicas. Por volta de 50 instituições de ensino do governo recebem a publicação e os resultados desse esforço enchem os olhos de Stéphanie de alegria. A escola Henrique Dummont Vilares, no bairro do Jaguaré, em São Paulo, é um dos cases de maior destaque. Dois anos depois de receber o jornal, a escola aumentou em 20% a nota no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e virou manchete de diversos jornais adultos.
Outro exemplo que ela conta com orgulho é sobre o impacto que a resenha do livro sobre o diário de uma garota síria de 13 anos teve entre os estudantes. O livro, chamado O Diário de Miriam, relata os dias em que a cidade onde a menina morava, Aleppo, foi bombardeada por rebeldes. Até então, só havia sido traduzido para o francês. Stéphanie leu, gostou e fez uma reportagem a respeito para o Joca. Para seu espanto, recebeu 200 cartas — escritas à mão — pedindo a tradução do livro para o português. As solicitações foram feitas por alunos do 1º ao 5º ano da Escola Estadual Professor Dr. Laerte Ramos de Carvalho, em Cidade Dutra, periferia da zona Sul de São Paulo.
Stéphanie foi, então, bater na porta de todas as grandes editoras brasileiras, que recusaram o livro. A boa notícia é que uma editora menor, a Darkside, topou fazer a tradução. A data de lançamento ainda não está definida, mas o prefácio contará a história de como 200 leitores do Joca fizeram o livro existir. Outra notícia boa é que o Joca existe.
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