por Adriano Silva
Um dos trunfos que tem sustentado a exuberância comercial da TV [aberta no Brasil] é um instrumento conhecido como “bonificação de volume”, o BV. (É curioso que na abreviatura se use o artigo masculino “o” e não o feminino “a”, como seria correto.) A remuneração das agências de publicidade no Brasil, no papel, é de 20% sobre o valor da compra de espaços publicitários que fazem, em nome de seus clientes, junto aos veículos. (E de 15% sobre o custo de produção daquilo que será veiculado.) Ou seja: o veículo fatura 100 reais contra o anunciante e recebe 80 – os outros 20 ficam na agência. Esse é o modelo clássico – que praticamente não ocorre mais.
Desde há muitos anos, por pressão dos anunciantes e pelo acirramento da competição entre as próprias agências, outros modelos de remuneração emergiram. Algumas agências passaram a receber a comissão a que tem direito – hoje, entre os grandes anunciantes, pratica-se de 3% a 5% sobre a verba a ser investida – em doze prestações, na forma de um fee fixo mensal. Outras trocaram a comissão por um fee (ou “honorário”, em português) calculado em cima de outros critérios (como planilha de custos com horas-homem etc), de forma não-vinculada à compra de mídia. Outras, ainda, operam numa combinação de fee com comissão reduzida.
Os fees vieram também coibir uma ineficiência, do ponto de vista econômico, contida na fórmula da comissão: quanto mais a agência gasta o dinheiro do cliente, mais ela ganha. Não há incentivo para que ela economize a verba, já que o seu próprio ganho advém de uma porcentagem do gasto que ela realizar.
Outra faceta dessa ineficiência é o incentivo ao uso da verba do cliente em mídia, onde a comissão da agência é maior (e mais rentável) do que em produção, por exemplo.
Então, mesmo que uma solução de comunicação que passe pela produção seja a mais indicada ao cliente em determinada situação, a agência tenderá a recomendar o investimento em mídia, de modo a ser melhor comissionada.
Enquanto a comissão de 20% das agências é uma definição fundante do mercado publicitário brasileiro, tendo sido estabelecida com a própria regulamentação da profissão de publicitário, pela Lei n° 4 680, de 1965 (embora, por ser descumprida universalmente no mercado, essa lei esteja caducando), o BV é uma liberalidade, uma prática comercial que somente há pouco foi oficializada – na Lei nº 12 232, de 2010. Apesar da letra jurídica finalmente instituída, o assunto ainda é um tabu que suscita polêmica – e silêncios.
O BV também é chamado de “plano de incentivo” – dos veículos em relação às agências, por meio da devolução de parte do dinheiro investido na compra de mídia. (Em teoria, o BV deveria ser utilizado para o aprimoramento das agências, para o investimento em treinamento e em pesquisa.) Quanto mais uma agência investir o dinheiro de seus clientes num veículo, maior será o BV pago a ela por esse veículo. Normalmente, o BV gira entre 5% e 12% da verba investida. Mas ele pode começar antes e terminar depois dessa faixa, dependendo da negociação. E a agência pode subir ou descer de porcentual na medida em que aumentar ou diminuir seus investimentos no veículo ao longo do ano.
O BV é uma transação entre o veículo e a agência – com o dinheiro do anunciante.
Costuma ocorrer assim: a agência negocia, no começo do ano, uma meta anual de crescimento dos investimentos a serem realizados no veículo pelo conjunto de seus clientes. O percentual de BV a ser pago pelo veículo à agência é definido a partir desse montante. A negociação, portanto, gera um valor “devido” pela agência ao veículo – estabelecido num instrumento chamado “Carta de BV”.
A partir daí, segundo o diretor comercial de um grande veículo, todo final de mês, o veículo liga para a agência e a atualiza quanto aos investimentos programados para aquele período. O veículo vai recebendo os pagamentos dos clientes, no mês a mês, e vai repassando para a agência o BV combinado. O risco para a agência, ao chegar ao final do ano sem gerar a receita acertada com o veículo, sobre a qual ela negociou o seu BV, é ter de rever a porcentagem a que tem direito e, em consequência, devolver ao veículo parte do dinheiro já recebido, caso caia de patamar.
Amarrada financeiramente, a agência se volta aos seus clientes oferecendo novas oportunidades de investimento que lhe permitam cumprir a sua cota junto aos veículos com os quais têm assinadas as “Cartas de BV”. O veículo, portanto, nesse cenário, não precisaria fazer muito esforço para vender seus projetos à agência – a agência já estaria comprada. O veículo ficaria numa posição muito mais receptiva, dedicado à administração financeira da parceria, do que propriamente de prospecção comercial ativa. A agência é que se encarregaria de vender os projetos do veículo aos clientes – que, como se vê, correm o risco de ficar bastante vendidos nessa história toda.
Quem critica a prática do BV alega que ele pode afetar a isenção das agências na hora de administrar a verba do cliente. Num primeiro aspecto, há a ênfase em mídia, em detrimento de outras possibilidades de investimento. E, dentro do espectro da compra de mídia, haveria um conflito de interesses na hora da agência exercer o seu papel, que é de sugerir investimentos aos anunciantes com base em critérios técnicos, de eficiência dos meios, de mérito dos veículos e de pertinência dos projetos.
Até que ponto os acordos de BV não estariam influenciando as agências a operar não a partir do que é melhor para o cliente, mas sim a partir do que é melhor para elas?
Imagine-se, por um instante, tentando apresentar a uma agência um projeto que não esteja ligado a um veículo que ofereça um “plano de incentivo” importante aos resultados financeiros da agência. Imagine que as metas de faturamento dessa agência, apontadas nas suas Cartas de BV, ainda não estejam cumpridas e que os profissionais ali estejam sendo cobrados por isso. As chances de você ser recebido por quem de fato decide serão pífias. As chances de o seu projeto chegar a ser apresentado ao cliente serão praticamente nulas. Por melhor que seja a sua oferta. Porque a agência está preocupada em garantir seus próprios resultados. E os profissionais da agência estão sendo pressionados para bater essas metas. Eis a distorção apontada por quem objeta esse modelo – o foco no BV obnubilaria a busca pela grande ideia e pelo melhor projeto, que é o que, em tese, deveria nortear as agências e o serviço que elas se propõem a prestar aos clientes.
A TV Globo é disparada a maior pagadora de BV do mercado brasileiro. “O BV da TV Globo é o maior vendedor do país”, me disse uma vez o presidente de outra grande empresa de mídia, que também oferece BV ao mercado. Isso ajuda a explicar por que um programa como o Fantástico, por exemplo, perdeu quase 40% de sua audiência na última década e meia e o preço das inserções em seus intervalos comerciais, lotados de anúncios, continua aumentando progressivamente.
Por que não há uma grita ante o fato de alguns veículos cobrarem cada vez mais e entregarem cada vez menos? Porque as agências estão intestinamente conectadas a alguns veículos nessa equação financeira. Elas dependem desse dinheiro para manter suas operações.
O fato de o cliente estar pagando duas ou três vezes mais para receber a metade ou um terço do que recebia há alguns anos é um tema inoportuno que quase nunca vem à tona.
Assim, no Brasil, a audiência migra celeremente para outros meios e para outros veículos e os investimentos publicitários continuam, de modo geral, parados no mesmo lugar. Temos um dos apetites digitais mais impressionantes do planeta – mas as verbas de mídia não têm acompanhado com a mesma velocidade esse movimento dos consumidores. Mesmo com a chegada ao país do Google e Facebook, gigantes digitais que têm atraído uma fatia importante das verbas publicitárias, a TV aberta ainda se mantém soberana. Graças, principalmente, a essa amarra comercial bem montada que tem prolongado o fôlego da mídia tradicional por aqui.
Há um efeito colateral nesse arranjamento de mercado: a cristalização das relações e das oportunidades sobre um chassi de 40 anos atrás. Essa chumbagem comercial faz com que o mercado brasileiro evolua mais devagar do que poderia no desenvolvimento de novas mídias e de inovações disruptivas. (Veículos independentes, e projetos especiais desconectados dos grandes grupos de comunicação, por exemplo, sobrevivem com muita dificuldade no país. Não porque lhes falte mérito, em boa parte dos casos, mas porque sua presença é incômoda nessa equação entre as grandes agências e os grandes veículos, balizada pelo BV.)
Na maioria das grandes agências, que dependem do BV, os criativos são convidados a inovar na linguagem e no formato – desde que continuem, com a sua inventividade, permitindo às agências comprar mídia nos mesmos veículos de sempre. Se o criativo romper com as velhas opções de veiculação – filme comercial de 30 segundos, merchandising no programa, spot de rádio, página dupla, banner – ele pode até ganhar prêmio lá fora, mas sua agência perderá faturamento aqui dentro e ele ficará sem emprego.
Consta que o BV foi instituído no país ainda nos anos 60. Hoje, quase toda empresa de mídia no país oferece algum tipo de “incentivo” às agências – de emissoras de televisão a portais de internet, passando por revistas, rádios e jornais. A prática passou a ser utilizada também pelos fornecedores das agências em áreas que não envolvem compra de mídia – gráficas e produtoras de filmes comerciais, por exemplo, também costumam retornar às agências parte do valor que recebem pelo seu trabalho.
Algumas agências chegariam a abrir mão, não apenas da comissão, mas também do fee a que teriam direito, oferecendo seus serviços a custo zero para o cliente, somente pelo direito de poder receber a bonificação de volume correspondente à verba daquele anunciante.
“Sem o BV, as agências teriam que fechar suas portas e reabrir em outro endereço, com outra estrutura, com outros profissionais, num outro modelo de atuação”, me disse o diretor de mídia de uma das maiores agências do país.
Eis a questão que fica: o BV é uma ferramenta legítima de “estímulo a vendas” ou uma forma de “propina”?
É difícil precisar se os anunciantes começaram a minguar a remuneração paga diretamente às agências por conta da existência do BV ou se a bonificação de volume é que se tornou, com o tempo, um mecanismo de sobrevivência e compensação, criado entre agências e veículos, em decorrência da pressão financeira exercida pelos anunciantes sobre a comissão e o fee tradicionais pagos às agências.
Como as grandes multinacionais veem o BV? Para as matrizes, trata-se de uma idiossincrasia do mercado brasileiro, uma daquelas regras locais que é preciso seguir se você quiser entrar no jogo. (Google e Facebook também começaram a oferecer “programas de incentivo” às agências no Brasil – eis a força do BV como mecanismo sedimentado por aqui.)
Em outros países, as agências de publicidade, quase todas elas com presença no Brasil, nem compram mais mídia diretamente. O mercado lá fora se especializou e as agências se dividiram por competências centrais. Umas fazem só Planejamento – o estudo e a concepção de uma estratégia de comunicação. Outras, só Criação – a transformação daquela estratégia numa grande ideia criativa. Outras, só Produção – a tangibilização dessa ideia criativa em ações. E outras agências, ainda, só Mídia – o planejamento e a compra de espaços para veiculação das peças e das ações aos públicos da marca.
Aqui no Brasil, isso está longe de acontecer. Os grandes veículos e as grandes agências, unidos por interesses em comum, tentam como podem barrar a entrada no país das agências especializadas em comprar e vender espaços publicitários. Acredita-se que os preços de veiculação baixariam no país com a atuação dessas empresas – os chamados “bureaux de mídia”.
Há uma norma padrão de 2003, do CENP – o Conselho Executivo das Normas-Padrão –, entidade criada pelo mercado publicitário em 1998 para “zelar pelas regras da atividade publicitária no país”, que proíbe a atuação dessas empresas no Brasil. Somos o único país do mundo em que esse tipo de oferta está proibido de ser feito ao mercado – pelo próprio mercado.
A história tem demonstrado que a defesa de modelos menos eficazes, em desalinho com as melhores práticas internacionais, acabam caindo por terra. Os monopólios sempre conduzem a ineficiências que, com o tempo, acabam minando os próprios monopólios. A verdadeira capacidade de um mercado de se autorregular reside na premissa de que a eficiência, assim como a água ou a vida, sempre encontra um caminho para ultrapassar obstáculos e seguir adiante.
Adriano Silva é publisher do Projeto Draft e autor, entre outros, de Treze Meses Dentro da TV – Uma Aventura Corporativa Exemplar, recém-lançado pela Editora Rocco. O texto acima é um trecho do livro.
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