Entrar em um café, pedir um chope e escrever cartões-postais para parentes e amigos era um dos hábitos de viagem do gaúcho Ricardo Freire, 54 — muito antes de fundar o blog Viaje na Viagem, uma das maiores referências sobre turismo da internet brasileira. Com o surgimento da web – e a percepção de que o último cartão que escrevia sempre ficava mais divertido que o primeiro – ele trocou o papel por um e-mail coletivo, enviado no terceiro dia de viagem. O que hoje seria feito sem dramas usando o wifi do hotel, há vinte anos carecia de um cybercafé (lugares que ofereciam acesso à internet, algo raro na maioria dos lugares), ou, como já aconteceu em Istambul, do computador de uma loja de tapetes.
Formado aos 19 anos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o publicitário foi para São Paulo trabalhar na agência W/Brasil, de Washington Olivetto, e criou slogans célebres como “Não é uma Brastemp” e “Folha, não dá pra não ler”. Hoje, ele conta que é reconhecido na rua (e no aeroporto) com alguma frequência, mesmo sem nunca ter trabalhado na TV – algo notável para quem é anterior às gerações Y e millennial. Os óculos redondos, a careca, a barba branca e a indefectível camiseta preta são familiares a parte das pessoas que já pesquisou roteiros na internet além do site das operadoras de viagem. Em julho passado (mês de férias, quando a procura aumenta), o Viaje na Viagem teve mais de 1,3 milhão de visitantes únicos e cerca de 3,6 milhões de page views. No Instagram, são 232 mil seguidores.
COMO SE TORNAR TURISTA PROFISSIONAL — ANTES DE TODOS OS OUTROS
Para entender a trajetória do publicitário que deixou um dos empregos mais desejados de sua área para empreender como turista profissional, é preciso voltar algumas dezenas de bilhetes de embarque, ao fim dos anos 1990. O salário na W/Brasil e algumas regalias, como uma licença não-remunerada de dois meses por ano para viajar, permitiram que Ricardo rodasse o mundo dormindo em hotéis confortáveis e comendo em restaurantes estrelados.
Mesmo assim, ele estava inquieto. De 1998 a 2004, pediu demissão três vezes, mas sempre voltava atrás depois de ganhar concessões de Olivetto para conciliar o trabalho e as viagens, cada vez mais frequentes e que começavam a tomar um espaço maior do que apenas “lazer” pessoal. Àquela altura, Ricardo havia publicado dois livros (um deles o guia de praias Freire’s, que vendeu seis mil exemplares e virou site) e criara o primeiro portal Viaje na Viagem (atualizado até 1999, hoje fora do ar), além de colaborar com as revistas VIP e Viagem & Turismo, da Editora Abril. Dentro dele, o jornalista e o publicitário às vezes se chocavam:
“Meu conceito era aceito pelo público e eu sentia que não estava sendo honesto comigo se continuasse na publicidade”
Ele conta que nessa época a ideia do blog já estava na manga mas, de novo, ele ficou na W/Brasil.
“Se tudo desse muito certo, eu acabaria criando um canal próprio de comunicação, o meu broadcast pessoal. Se não desse tão certo assim, pelo menos eu teria uma área de lazer onde publicar minhas viagens sem depender de pauta, editor, limitação de espaço, deadline, diretor de arte, fotos melhores do que as minhas no arquivo, revisor pentelho, editora, gráfica, distribuição, livraria e o escambau.”
As aspas acima estão no post sobre os dez anos do Viaje na Viagem, publicado em dezembro de 2014. Como é de se imaginar, a saga de treze anos, período em que a internet atravessou muitas mudanças, foi longa. Antes do template atual, o blog foi hospedado no Zip.net e na área Blogs Legais, do Uol. Neste último, segundo Ricardo, depois de um algum tempo, a seção deixou de ser tão legal, com chamadas na home rareando a cada dia e dividindo espaço com conteúdo de turismo “bem inferior” às do Viaje na Viagem.
CONTEÚDO BOM É CONTEÚDO SALVADOR
No Uol, porém, nasceu o símbolo do blog: uma boia, a “salvadora” dos viajantes, fotografada no mar claríssimo de Los Roques, na Venezuela. A imagem, aliás, passou a ser relacionada com o mote que ancorou o site por anos: a interação com o usuário respondendo dúvidas de viagem. Nessa época, o que bancava a apuração do jornalista e blogueiro (como uma volta ao mundo que incluiu Sidney, Cidade do Cabo, Japão, Cingapura e Nova York) ainda era o salário do publicitário, na W/Brasil. Mas focar no trabalho estava cada dia mais difícil e, para Ricardo, a única saída para se profissionalizar como viajante profissional era sair da agência de vez. Mesmo sendo um executivo repleto de contatos na área, a transição não foi imediata, como conta:
“Ao contrário do que eu pensava, não foi natural que o blog se transformasse rápido em ganha-pão e business. Achei que no início seria procurado pelas marcas, o que não aconteceu”
Paralelamente, ele tinha uma loja de presentes importados que operou no vermelho até fechar definitivamente, em 2005, deixando algumas dívidas. Quase descapitalizado e com um apartamento à venda, Ricardo partiu para uma viagem de carro de quatro meses pelo Nordeste – e não foi abordado por nenhuma locadora de veículos ou companhia aérea interessada em patrocínio. Já não era possível olhar para trás, e ele dava, assim, o grande salto para a nova carreira.
Uma série de guias para a revista Viagem & Turismo foi praticamente a única renda entre 2006 e 2007. Foi nesse período que seu público deixou de ser um “clubinho”, como define o blogueiro, para se tornar uma grande sala de chat. “Deixei de ser um viajante de luxo para atender a demandas práticas dos viajantes com tempo de orçamento limitados”, diz. Depois da saída do Uol, a plataforma de publicação passou a ser o WordPress, bastante adequada no quesito interação. “A facilidade de comentar promoveu os comentaristas a verdadeiros co-autores do blog”, definiu, no balanço de dez anos do Viaje na Viagem.
IDAS E VINDAS ANTES DE O NEGÓCIO SE FIRMAR
Em 2007, o blogueiro se viu diante de uma proposta irrecusável, mas que acabou se mostrando um retrocesso no sistema de comentários: a migração do blog para o portal viajeaqui, da Editora Abril, que implicaria em usar outra plataforma de publicação. Ele receberia um salário fixo para levantar a editoria de blogs (o que realmente aconteceu: seus posts eram responsáveis por mais da metade da audiência da seção). Mas na nova plataforma a gestão de interações era antiquada, com captcha (aquela caixa que obriga a digitação de letras para destravar a área de comentários), o que gerou um levante dos leitores fiéis – além de ter ficado mais difícil comentar, muitos não quiseram interagir sob a chancela de uma grande corporação como a Abril, diz.
Catorze meses depois da migração para a Abril, em 2008, o apartamento finalmente foi vendido e “libertou” o viajante profissional da vida de blogueiro assalariado, um ponto de virada determinante. Com parte do dinheiro, cerca de duzentos mil reais, ele pagou dívidas e bancou uma viagem de três meses pela Europa e por Nova York. O primeiro layout dessa nova fase do blog ele ganhou de presente de um leitor e, como a equipe faz home office, o Viaje na Viagem nunca teve sede. O break even do negócio aconteceu finalmente em 2010, com a chegada dos dois primeiros patrocinadores, Hoteis.com e Gol, hoje já fora. A entrada de uma sócia e diretora comercial, a jornalista Elisa Araújo, em 2011, formalizou a empresa e trouxe novas estratégias. Além dela, Nick Santiago e Maria Clara Cacaia Jorge também integram a sociedade.
Atualmente, o blog se dá o luxo de bancar as próprias viagens (poucos convites são aceitos) e de não se pautar por releases de destinos e hotéis e nem por press trips (como são chamadas as viagens com grupos de jornalistas, patrocinadas pelo anfitrião). E talvez Ricardo nunca tenha tido tanto tempo para se dedicar exclusivamente ao Viaje na Viagem: ele deixou de ser colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da Revista da Gol, mantendo apenas seu programete semanal na rádio Band News FM. “Meu único deadline”, diz, aliviado.
A receita do blog vem do e-commerce de produtos de viagem (como diárias de hotel e locação de carros), com links alocados em banners ou no meio dos textos, esses últimos bem mais eficientes. Funciona assim: o blog é comissionado a cada compra efetivada a partir dos cliques originados nele. Na política do booking.com, por exemplo, são repassados 25% da porcentagem do site de reserva ao comissionado. Além do site de reservas de hotéis, a seguradora Mondial Allianz, a locadora Rentcars e os sites de venda de ingressos Viajanet, Viator, Ticketbar, RCA, TourOn e Compra de Ingressos são as parcerias comerciais atuais.
Outra sacada: ao atrelar links de e-commerce ao conteúdo, o blog não se compromete anunciando produtos que não recomendaria. “Eu não faria uma parceria com a empresa que promove o passeio de um dia entre Maceió e Maragogi, em que o turista passa metade do dia no ônibus e não chega no melhor horário para ver as piscinas naturais”, afirma Ricardo.
Ao longo de 2017, algumas ações publicitárias ajudaram a engordar o faturamento, como banners dos cartões de crédito Santander, de hotéis no Chile e o do escritório de turismo de Bariloche. Eventualmente, também há posts patrocinados, como os feitos para os bureaus de Orlando e de Genebra. Para este ano, a ideia é trazer patrocínio para uma série no canal do YouTube, que tem 22 000 inscritos.
Já totalmente convertido em blogueiro, ficou para trás, também, o salário de publicitário. Ricardo conta que sua retirada mensal hoje (incluindo a Band News) é, nominalmente em reais, igual à do seu último salário em publicidade em 2005.
“Não faço contas de inflação nem especulo quanto eu estaria ganhando hoje se ainda fosse publicitário. Não tenho outras receitas. E mantenho a empresa capitalizada para ter fôlego em eventuais crises”
Ele e a sócia Elisa falam de como o faturamento oscilou nos últimos três anos. Houve um crescimento de 76% entre 2014 e 2015, seguido de uma retração de 15% em 2016 e de um crescimento de 11% em 2017. Além dos dois sócios, a equipe do Viaje na Viagem é formada por uma editora de conteúdo, uma editora de mídias sociais e duas repórteres (uma delas, a “boia”, responsável por responder as dúvidas dos viajantes). A equipe de TI é terceirizada.
COMO GERAR CONTEÚDO RELEVANTE NA ERA DAS REDES SOCIAIS?
Em tempos de Facebook, WhatsApp e Instagram, a caixa de comentários deixou de ser o principal canal de interação de um site com seu leitor. Hoje, bons números e engajamento dependem mais da audiência orgânica, que chega por meio de sites de busca como o Google – mas o conteúdo precisa ser bom e completo para reter e fidelizar o usuário. “Essa foi uma percepção mais instintiva do que antenada com as políticas de SEO do Google”, diz Ricardo.
Desde o início do Viaje na Viagem, os comentários eram todos respondidos, mesmo que com soluções na linha “não fazemos roteiros de viagem personalizados”. Ou, ainda, fazendo o trabalho do Google e do próprio usuário: selecionar links de matérias anteriores e indicar o trecho do texto onde está a resposta, já que muitos visitantes, sabendo que seriam guiados pela mão, não liam o post atentamente. “Mas isso deixou de fazer sentido por uma questão de volume.”
A decisão de moderar os comentários, em 2015, abriu caminho para guias de destinos turísticos mais completos e com links otimizados. Exatamente como o Google e o viajante querem ver: página de rolagem longa, com informações objetivas, completas e atualizadas. O papel dos comentários, embora não seja mais de protagonista, ainda tem muita importância, pois ajuda a balizar o conteúdo das páginas de destinos. “Dúvidas recorrentes são sinal de que aquilo deve ser explicado ou está mal explicado no texto”, diz Ricardo. Perguntas, relatos e opiniões, desde que coerentes ou inéditos, continuam sendo respondidos.
Ao entrevistar Ricardo Freire, é preciso resistir à tentação de pedir alguma dica de roteiro ou mesmo saber sobre suas últimas andanças. Quando perguntado sobre a relação entre as viagens da equipe, a produção do conteúdo e a audiência do blog, ele conta que nem sempre ela é diretamente proporcional, ou sequer existe:
“Para mim, o assunto viagem é mais importante que viajar. Em 2006 viajei pouco e foi um dos melhores anos do Viaje na Viagem. Também batemos um recorde de audiência depois de ficar quarenta dias sem publicar por causa de uma otimização”
No ano passado, a reportagem esteve em Gonçalves e Monte Verde, no Sul de Minas, Búzios (RJ), Lençóis Maranhenses (MA) e Fortaleza. Na América do Sul, teve Deserto do Atacama, Buenos Aires, Ushuaia e El Calafate. Há ainda uma colaboradora eventual em Nova York e, para este ano, está prevista uma jornada pela Europa.
A viagens duram, normalmente, uma semana, com cada noite em um hotel diferente. “Destrinchar destinos no Brasil é mais uma bandeira pessoal que uma demanda dos usuários, embora a alta do dólar e o fim do Guia Quatro Rodas, em 2014, tenham aberto nichos na busca pelos destinos nacionais”, conta o blogueiro. Outras tendências identificadas por ele são a queda na procura por “compras no exterior” e um aumento incomum da audiência do site nos meses do saque de contas inativas do FGTS, no primeiro semestre – normalmente, janeiro e julho, meses de férias, são os períodos de boom.
Para Ricardo, ainda assim, o brasileiro valoriza mais as idas ao exterior e tende a considerar as férias no Brasil como uma alternativa em tempos de crise. “Perdemos duas grandes chances com a Copa e as Olimpíadas, em termos de divulgação, principalmente entre os visitantes estrangeiros. Nem Paris e Nova York, que estão em duas nações riquíssimas, desdenham o turismo.”
Para quem ainda duvida de que Ricardo é defensor ferrenho do potencial turístico do Brasil, enquanto essa reportagem era escrita ele cobria alguns furos das apurações anteriores em Foz do Iguaçu, em sua quinta visita a cidade. Foi ao novo Marco das Três Fronteiras, a um restaurante indiano, a um templo budista, às ruínas jesuíticas de San Ignacio Miní, do lado argentino (“maravilhosas!”), e ao show latino-americano da churrascaria Rafain, com apresentações típicas de oito países. E não tirou nenhuma selfie.
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