por André Melman
Há cerca de seis meses, segui para um retiro numa reserva florestal no interior da Bahia. O objetivo era permanecer sozinho, isolado no mato, sem comida por quatro dias e quatro noites. Um tipo de vision quest, ou busca da visão, uma experiência que indígenas de diferentes regiões na América encaram como um ritual de passagem, de um ciclo de vida para um novo.
Pouco tempo antes desta viagem, eu tinha decidido vender o Farofa.la, empresa que fundei e ajudei a construir nos últimos quatro anos – a venda se concretizou oficialmente algumas semanas antes de escrever esse texto.
E eu via este retiro como uma possibilidade de fluir naturalmente num momento de profundas mudanças.
Sonhei, por anos, que iria empreender com propósito, que faria a diferença no mundo e na vida de pessoas…
Que inspiraria muitos na construção de uma visão mais consciente, coerente e integrada sobre si mesmo e do mundo.
Sonhei que ajudaria a estabelecer vínculos verdadeiros entre consumidores, os alimentos e seus produtores. Que apoiaria um movimento de regeneração do solo e das relações por meio do incentivo aos ingredientes naturais e orgânicos, por meio do amor pelo que se cria, por meio de trocas justas e conectadas.
Morei em fazendas orgânicas, visitei negócios inspiradores pelo mundo, tive anos de experiência como executivo em bancos de investimento, já havia até mesmo empreendido com amigos um projeto inspirador da estaca zero que resultou no filme Eu Maior (do qual me orgulho muito).
Tudo isso para dizer que havia muita energia e expectativa antes de iniciar o Farofa.la: sonho, pesquisa, confiança, sócios iniciais e amigos investidores.
Praticamente, fundi quem eu era com a identidade sonhada pelo negócio.
Só não percebi, na época, que era eu quem estava em construção
Da mesma forma que o negócio não era o que sonhei, eu também não era aquele empreendedor e gestor idealizado, que iria liderar e semear uma transformação na sociedade moderna. Não era nem mesmo o gestor que traria estas sementes para o próprio time que eu fazia parte.
Mas eu não sabia.
Empreender foi muito mais duro para minha autoimagem do que eu poderia imaginar
Foi sofrido para um empreendedor que queria ser parte de um time cooperativo e engajado, trazer retornos financeiros multiplicadores para todos envolvidos, inspirar muita gente para uma vida com sentido, com vínculos saudáveis e nutridores.
Que bom isso tudo, do ponto de vista de quem vai para um retiro para mergulhar nas verdades mais profundas sobre si mesmo.
E tem também um pequeno detalhe, bem pequena, na verdade. Ao mesmo tempo em que eu vivia as decisões sobre a venda do negócio, soube que seria pai de uma menina, pela primeira vez. Seria pai da Flora — que faz um mês agora quando escrevo.
Sempre achei que seria pai em um momento de estabilidade e tranquilidade profissional. Estou aqui, rindo, enquanto escrevo isso
Minhas reservas financeiras já estão no fim, emoções, à flor da pele. “Ah, mas tem a venda da empresa, André!” Na verdade, a venda foi uma saída estratégica por uma participação na empresa compradora: boa para o momento, mas não o sonhado. Nada de caixa para a transição.
Mas, voltando ao retiro, havia muita expectativa minha com estes dias solo na floresta. Eu queria me conectar com a natureza em mim, encontrar o fluxo de vida.
Tantas des-idealizações, mas eu continuava idealizando que este retiro seria como um sonho bom.
E claro que não foi.
Depois de três dias no meio da floresta, sozinho em jejum, me sentia tão conectado com tudo quanto uma mosca presa na teia de uma aranha. Eu estava infestado por carrapatos e coceiras na pele.
Na terceira noite, cai uma chuva torrencial, absurda, daquela que faz árvores caírem por perto. A minha barraca foi invadida por água pelo teto.
Senti que aquele era o meu limite. Resolvi voltar antes do planejado. Saí pela trilha escura de chinelo (pois o tênis estava encharcado), com uma capa de chuva, uma pequena lanterna e um bastão de madeira para espantar cobras. Comecei a andar com muito cuidado, pois era difícil enxergar com aquela chuva toda no foco de luz.
O que eu ainda não sabia é que no meio da trilha minha lanterna iria apagar. Lá, no meio, eu já não tinha como voltar para barraca pela trilha fechada, e seguir em frente sem critério se mostrou um tanto desafiador quando pisei em um formigueiro.
À noite, no meio da floresta, eu não tinha alternativas. Precisei aceitar que permanecer no mesmo lugar era a melhor escolha
No escuro, na chuva. Rezei rezas que achei que nem lembrava mais, dancei como índio para afugentar bichos e medos internos. Segui em frente somente horas depois quando as nuvens foram se dissipando, com a luz da lua, e depois com os primeiros raios de sol.
Agora escrevendo na madrugada, entre trocas de fralda, mamadas e choros da Flora, entendo melhor a minha vivência no mato. Tem momentos em que a dor e o medo são muito intensos e você já não pode voltar para o que era antes, mas a clareza dos caminhos pela frente ainda não chegou. É o momento de aceitar, respirar, olhar para o que mais importa. Rezar e dançar também valem. Também é bom escrever e compartilhar. É o momento em que estou hoje.
Nesse momento, a beleza de uma recém-nascida é maior do que o medo de ainda não saber ser o pai generoso e aberto que quero ser.
Nesse momento, a riqueza dos aprendizados de um empreendedor sonhador é mais ampla que as dores das minhas frustrações e limitações.
Sigo em frente para mais um re-start sem volta, me observando para seguir novos caminhos, já não tão idealizados. E que sejam alinhados com quem sou hoje, com humildade, e com todos sonhos que continuam a brotar.
E a vida se abre, para eu poder me acolher. E, quem sabe, acolher outros que se percebem sem lanterna no meio da travessia, com verdade no coração.
André Melman, 43, é formado em engenharia civil. Trabalhou em bancos de investimento antes de empreender com propósito. Foi fundador do Farofa.la e co-produtor do documentário Eu Maior.
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