A cozinheira paulista Tanea Romão, 51, viveu o sonho de muita gente: ir morar nas montanhas de Minas Gerais, em uma cidade pequena e pacata, ter seu próprio restaurante e viver no meio rural, longe da confusão das grandes cidades. Em 2000, ela se mudou pra Gonçalves, cidade turística de quatro mil habitantes, onde abriu, primeiro, uma fábrica e de geleias, a Senhora das Especiarias, e, depois, o restaurante Kitanda Brasil, onde servia comida brasileira para turistas. Ficou lá por 12 anos, quando resolveu levar o restaurante para Tiradentes, também em Minas. Foram quatro anos na cidade histórica, até que ela decidiu que era hora de voltar à cidade grande.
Em 2016, vendeu tudo e voltou para São Paulo, com a certeza de que nunca mais teria um restaurante. Hoje, dois anos depois, o Kitanda Brasil está de portas abertas na Vila Romana, zona oeste. Não é mais um restaurante de cidade turística, mas uma casa que atende os moradores e pessoas que trabalham no bairro (embora a fama que Tanea conquistou ao longo dos anos leve críticos e outros clientes ao local). “Entendi que durante todo esse tempo, não trabalhei com comida, mas com turismo. Em São Paulo é diferente porque atendo as pessoas que circulam pelo bairro”, diz. A chef conta que isso mexeu com a forma como a comida é servida e até com o tempero: “Tenho clientes que almoçam aqui todos os dias. Comem e voltam para o trabalho, não vão dormir ou passear. Então, os condimentos precisam ser pensados para isso”. Ela continua:
“Não sou mais um restaurante de comida brasileira para turistas. Agora, sou um restaurante de comida brasileira caseira. Simples assim”
O Kitanda Brasil serve dois pratos por dia. Um muda a cada três meses e o outro varia diariamente, de acordo com o que Tanea encontra de mais fresco no mercado. O preço da refeição é de 24 reais por pessoa, incluindo salada, prato principal e sobremesa. Durante a semana, são vendidas de 15 a 20 refeições por dia e, aos finais de semana, de 60 a 70. A estrutura é pequena. São 36 lugares e apenas dois funcionários fixos e mais dois no fim de semana, quando o movimento é maior.
UMA RELAÇÃO COM A COZINHA QUE TEM HISTÓRIAS
A história de Tanea se mistura com a cozinha desde sempre. Sua avó, ela conta, morava em uma casa com quintal, onde tinha plantação, fogão à lenha e a linguiça era preparada de forma caseira e pendurava no varal. “Aos sábados, a gente descia para o mercado da Lapa e voltávamos, eu e meus irmãos, com as galinhas vivas embaixo do braço, embrulhadas no jornal. A minha avó matava, tirava o sangue e ia cozinhar. Só fui conhecer galinha de granja com 13 anos, quando ela morreu.”
Um pouco por influência da avó e da mãe, mas também por precisar ajudar a família nas tarefas de casa, ela sempre cozinhou. “Adorava assistir TV Mulher (programa feminino de TV dos anos 1980) e anotava todas as receitas. Aí, falava para minha mãe quais os ingredientes que precisava, ela comprava e eu fazia em casa. E ainda montava a mesa. Minha mãe chegava do trabalho e estava a mesa posta, como na televisão”, diz orgulhosa.
Mas o caminho até a cozinha profissional não foi imediato. Com 14 anos, Tanea começou a trabalhar em uma metalúrgica do bairro em que morava. Passou pela área administrativa e comercial até se tornar sócia da empresa. “Quando eu tinha 25 anos, a empresa foi vendida e uma das condições para a assinatura do contrato é que eu ficasse lá. Eles me deram 10% da empresa e, depois, comprei mais 20%.” Junto com o sócio da metalúrgica, ela montou uma empresa que fabricava embalagens plásticas para guardar frios e temperos, o que acabou trazendo muitos contatos na área gastronômica que, lá na frente, se mostrariam importantes.
APÓS CONHECER MINAS, SEU FOCO PASSOU A SER GELEIAS
Paralelamente a este trabalho, Tanea seguia cozinhando em casa, principalmente geleias e conservas, que fazia para consumo próprio e para presentear amigos. Ela também gostava de viajar e, um dia, conheceu Gonçalves. Chegou de madrugada, depois de horas no trânsito para conseguir sair de São Paulo na véspera de um feriadão. À noite, sem ninguém nas ruas e nenhum lugar para comer, achou que tinha se metido em uma roubada e que voltaria para a capital paulista no dia seguinte logo cedo. Isso até abrir a janela da pousada de manhã e ver a paisagem. “Eu estava literalmente em cima das nuvens. Na hora, pensei: ou eu morri, ou estou em um lugar lindo”, conta.
De cara, ficou apaixonada e resolveu alugar um sítio para passar os finais de semana. Lá, fazia as geleias, compotas e conservas. Foi descobrindo alguns produtores orgânicos locais, ganhando coisas dos vizinhos, recebendo elogios dos amigos pelo que produzia.
Ao mesmo tempo, via o negócio da metalúrgica ser engolido pelos chineses. “Uma máquina que a gente vendia a 20 mil dólares, eles vendiam a 2 mil. Não tinha como competir. Resolvemos passar a empresa para um dos funcionários, que está com o negócio até hoje”, afirma.
A essa altura, ela já produzia muitos sabores de geleias e conservas, fez os cálculos de por quanto poderia vender os produtos e, usando a rede de contatos e amigos que criou na cidade, começou a entrar no mercado. O trabalho de mais uma década na parte comercial da metalúrgica fez com que Tanea conhecesse a importância das feiras para quem trabalha com vendas.
A convite de uma amiga nutricionista, expôs suas geleias em um estande da Equipotel (uma das principais feiras de hotelaria e gastronomia da América Latina). “No último dia, um professor resolveu testar o pH das geleias, que para segurança alimentar deve estar entre 2.8 e 3.6, sendo que a excelência é 3.2. Todas as minhas deram 3.2. Isso me deu certa tranquilidade e tive a certeza que esse era o meu caminho”, conta.
Ela resolveu, então, montar uma fábrica de geleias em uma casa que sua mãe tinha na Grande São Paulo. Vender não foi um grande problema porque Tanea tinha experiência na área. Ela bateu na porta de lojas especializadas, como a Casa Santa Luzia, falou com chefs importantes, como Laurent Suaudeau, além de participar de feiras e ganhar visibilidade no mercado.
Quando surgiu uma proposta para a compra da casa onde estava instalada a fábrica, ela decidiu se mudar de mala, cuia e negócio pra Gonçalves. Alugou um casarão na entrada da cidade, que batizou de Senhora das Especiarias, para fabricar as geleias e foi morar no sítio. “Nunca achei que fosse morar no interior. Sou super urbana e achava que meu destino seria Tókio ou Nova York”, diz.
UM ACIDENTE E A FALTA DE GRANA DESANDARAM A RECEITA. ELA DEU UM JEITO
Enquanto fazia as geleias, Tanea também passou a cozinhar com elas para agregar valor ao produto. “Logo pensei que se a gente fizesse geleia só para passar no pão, íamos morrer de fome. Então, comecei a cozinhar com as geleias.” Com fábrica e loja instaladas em Gonçalves, ela também fornecia os produtos para chefs e lojas de grandes cidades, além de cozinhar em feiras e eventos.
Até que, em 2008, decidiu que deixaria a Senhora das Especiarias para trabalhar com restaurante. O que ela não esperava é que uma reportagem no programa Globo Rural daria enorme visibilidade à sua empresa e ao seu nome. Decidiu, então, continuar no negócio, mas um mês depois, em janeiro de 2009, sofreu um acidente de carro. A fatalidade fez com que repensasse o rumo de sua vida e decidisse que sim, era hora de abrir um restaurante.
A saída da Senhora das Especiarias, ela conta, foi um dos momentos mais difíceis de sua vida como empreendedora. Como já tinha a metalúrgica, quando começou o negócio, Tanea não colocou seu nome no contrato social. E por causa de desavenças pessoais, sobre as quais ela prefere não entrar em detalhes, deixou a Senhora das Especiarias com 5 reais no bolso. “Foi muito triste, entrei em depressão, mas foi um grande aprendizado.”
Alguns meses depois, com dinheiro emprestado, ela abriu, ainda em Gonçalves, o Kitanda Brasil. A ideia inicial era ser um lugar pra vender as “quitandas” mineiras (pão de queijo, rosca, bolos e biscoitos), além de um prato do dia. “Abri em 9 de julho de 2009, com rabada e dobradinha.” E conta mais: “Foi um sucesso inesperado. As pessoas chegavam, queriam comer e eu não tinha estrutura. Então, comecei a servir um menu degustação, que era o que dava para fazer”.
Funcionou. Em um mês, ela pagou o investimento inicial de 20 mil reais. Mesmo assim, depois de três anos em Gonçalves, Tanea colocou toda a estrutura do Kitanda Brasil em dois caminhões e foi embora pra Tiradentes. Queria ficar mais perto da capital, Belo Horizonte, e também mudar de ares. Na cidade histórica, o restaurante ganhou sofisticação, passou a servir jantar à La Carte, ficou entre os 50 melhores do Brasil pelo Guia 4 Rodas e Tanea começou a dar mais atenção ao salão do que à cozinha.
Apesar de festejar o reconhecimento, ela diz os detalhes na alta gastronomia a decepcionaram um pouco: “Há muita preocupação com a cerâmica, com o talher e a comida perde um pouco com isso”. A situação foi, inclusive, entristecendo o ato de cozinhar: “Eu não podia mais servir o lambari da horta simplesmente frito no fubá. Aquilo foi me dando um bode e quis voltar para casa”. Decisão tomada, leiloou tudo o que tinha e fez as malas para São Paulo.
QUANDO A PAIXÃO POR COZINHAR RENASCEU, O KITANDA GANHOU NOVOS ARES
Para a capital paulista, Tanea trouxe, no final de 2016, apenas as roupas, uma bicicleta, os livros e a certeza de que nunca mais teria um restaurante. A ideia era se dedicar a consultorias, oficinas e projetos. Mas o Kitanda Brasil acabou renascendo naturalmente pela paixão inegável de Tanea por cozinhar e também de sua vontade de se dedicar a uma proposta de cozinha mais caseira, flexível, sem sofisticação, mas com técnica e sabor. “Percebi que quer queria um restaurante onde pudesse servir o que eu como no dia a dia e do jeito que eu como no dia a dia.”
Por isso, o Kitanda Brasil de São Paulo funciona em um ambiente descontraído, com louças garimpadas e doadas pelos amigos, talheres com cabo de plástico, com a cozinheira ajudando a servir o salão e sem o dólmã, aquela roupa branca característica dos chefs. Chegar a esse formato exigiu muita reflexão sobre todo o passado empreendedor. “Quis deixar de lado o status, voltar pra origem, fazer a comida que gosto de comer, que é um resgate do que a minha mãe e a minha avó faziam.” Mas ela afirma que teve que tomar cuidado para não cair na total negação desse outro lado que envolve a cozinha:
“Cozinhar sem dólmã não é desrespeitar a cozinha porque faço questão de usar técnica e bons ingredientes”
A principal lição que Tanea trouxe de Minas para São Paulo, no entanto, é não misturar vida pessoal e profissional. Depois de 15 anos empreendendo na área de gastronomia, ela percebeu e aceitou que isso é muito prejudicial ao negócio. “Até agora, a Tanea Romão e o Kitanda foram uma coisa só. Agora, quero tudo separado. Não dá para associar a pessoa física com a jurídica. O que a aconteceu na Senhora das Especiarias é que eu usava a pessoa jurídica para tudo. Só que a conta era da empresa. Se eu não tinha meu nome na empresa, não tinha nada”, diz.
E essa mistura a que ela se refere não é apenas na conta bancária. No dia a dia, ela diz que é preciso ter disciplina e cuidado para não transformar a cozinha do restaurante na cozinha de casa. “Você pegar um vinho do restaurante e abrir com os amigos é misturar vida pessoal e profissional. E é nisso que você se dá mal porque a vida fica sempre linda, você pode tudo, tem tudo na geladeira”, completa.
EM SÃO PAULO, ELA ENCONTROU A TRANQUILIDADE QUE TANTO BUSCAVA
Sair de Minas e voltar para São Paulo foi uma necessidade que Tanea sentiu e que muita gente achou loucura. Afinal, como não amar viver no interior de Minas, no meio de belas paisagens? Ela conta que quando se trabalha em uma cidade turística, não se aproveita nada daquilo que ela oferece. Além disso, diz que adora a capital paulista e estava com saudade de sua vida cultural e também de estar mais próxima da família. “Minha qualidade de vida hoje é poder ir ao cinema às três da tarde, atravessar a Avenida Paulista, ler um livro inteiro dentro da livraria e ver meus sobrinhos todos os dias”, diz.
Ela afirma que São Paulo tem se mostrado uma cidade de vida tranquila. Sem carro, diz que faz muita coisa a pé perto de casa (inclusive as compras de insumos para o restaurante), está criando uma rede de fornecedores do próprio entorno e ainda reencontrou velhos conhecidos.
“Aos sábados e domingos, quem vem me ajudar na cozinha é a Fafá, uma mulher que foi faxineira da minha mãe quando eu tinha 17 anos e que reencontrei nessa minha volta. Isso é muito legal!”
Por enquanto, voltar para o interior não está nos planos. A ideia é, em 2020, transformar o Kitanda em um restaurante-escola, que ajude quem quer trabalhar com gastronomia. Antes, ela ainda quer tentar fazer com que o estabelecimento funcione no esquema “pague o quanto quiser”. “Acho que funciona, mas ainda não tive coragem de arriscar tanto. E também preciso ter capital para segurar a onda por um tempo”, diz a chef que pretende faturar 120 mil reais este ano. Enquanto o momento de novas mudanças não chega, ela segue preparando uma “comida conforto” bem no meio do burburinho de São Paulo.
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