por Brenda Fucuta
Como mãe de adolescente, o que me motivou a escrever o livro Hipnotizados, o que nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles foi a busca de respostas às dúvidas de vários pais sobre os reais efeitos do uso intenso da celular e da internet na saúde dos seus filhos.
Tentei separar a verdade do mito, o que tinha comprovação científica do que não tinha fundamento, e fui atrás da visão do próprio adolescente sobre o assunto. O livro não é um manual, mas uma reflexão sobre este momento que, espero, ajudará os pais a não entrar em pânico.
Em meio a fake news, roubo de dados, discursos de ódio e ciberviolência, a sensação que temos é que a rede se transformou numa terra sem lei.
O que parece apenas barbárie, para os adultos, pode ser a circunstância para os nativos digitais construírem e consolidarem um novo pacto de convivência para o século 21
A seguir, compartilho um trecho de Hipnotizados, especialmente selecionado para o Draft. Espero que apreciem a leitura:
Quase 1,5 milhão de crianças e adolescentes se sentiram discriminados na internet, e 9 milhões presenciaram outras pessoas sendo agredidas por comentários misóginos, racistas e homofóbicos. No dia 26 de novembro de 2016, dirigindo-se a educadores, assistentes sociais e promotores de justiça do Espírito Santo, o psicólogo Rodrigo Nejm estava citando esses dados, coletados na pesquisa Tic Kids Online Brasil 2015.
Era um dia abafado em Vitória, capital do estado, mas Rodrigo, um homem magro, com a cabeça raspada e de fala rápida, estava de terno no anfiteatro onde treinava futuros agentes multiplicadores do conceito de uso responsável da web. Até meados de 2017, ele e alguns colegas já tinham aplicado o treinamento em 62 cidades do país.
Rodrigo integrava a equipe de advogados, psicólogos e voluntários que combatiam a violência na internet em nome da ONG Safernet. Criada por um grupo de cientistas, acadêmicos e advogados baianos, a entidade recebia, por e-mail ou chat, denúncias de ciberviolência e violações na internet.
Em doze anos de funcionamento, este sistema registrou 4 milhões de queixas sobre intimidação, humilhação pública, discriminação, conteúdos de ódio, sexting e fraudes financeiras. Em sua palestra, Rodrigo sustentou três pontos que me chamaram a atenção:
1) O discurso de ódio e o ciberbullying aumentam à medida que crescem a intolerância, a discriminação e a dificuldade de lidar com a diversidade;
2) Para haver segurança na internet — “segurança das pessoas e não das máquinas” — é preciso que se adote a cidadania digital: um código de direitos e deveres básicos na rede.
3) Boas escolhas, ética e respeito na convivência podem ser aprendidos, especialmente por crianças e adolescentes.
No meio da terceira fila do auditório, ao meu lado, uma professora pediu a palavra. Levantou-se para dizer que, em relação ao uso de celular e redes sociais, não acreditava ser possível disciplinar adolescentes. Eles simplesmente faziam o que queriam. Muitos colegas concordaram.
Rodrigo insistiu na ideia de que o ambiente digital era um espaço com deveres e direitos. Como qualquer outro espaço de convivência, regrado por princípios e leis. Crianças e adolescentes precisam refletir sobre seus comportamentos dentro e fora da rede, e os educadores podem ajudar a provocar essa reflexão.
É raro pensar na rede como um espaço público — um local ao qual todo cidadão pode ter acesso. Mas ela é como uma biblioteca municipal: existe um código universal de comportamento para quem deseja ler, estudar ou pegar um livro emprestado
Trajes adequados, compromisso de devolução, silêncio. Em resumo, trata-se de um contrato de compartilhamento do espaço e de seus benefícios baseado no princípio do respeito ao outro e ao que é do outro.
Muitos estudiosos do assunto acreditam que o exercício da cidadania digital seja uma evolução, um passo além na prática da cidadania analógica. Os dois conceitos — analógico e digital — se fundamentam em crenças contidas em um dos documentos mais bonitos do mundo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovado em 1948 em assembleia da ONU em Paris. Produzido no ambiente do pós-guerra, em resposta aos “atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade”, o tratado surgiu como uma aposta em um mundo que assegurasse aos cidadãos a liberdade, a dignidade e a igualdade de direitos, inclusive entre homens e mulheres.
Setenta anos após a aprovação do documento, no entanto, questões como racismo, misoginia, homofobia e xenofobia estavam longe de ter sido superadas e já surgiam novos problemas derivados da convivência humana.
A adoção dos princípios da cidadania digital pode ser uma oportunidade de repensar e repactuar a convivência em sociedade
São inúmeras e complexas as questões que envolvem a convivência digital. Discursos de ódio transpiram crenças contra as quais os assinantes da Declaração Universal se levantaram — como o nazismo, que volta na forma de uma doença contagiosa não erradicada. Notícias falsas circulam e produzem um ambiente, chamado de pós-verdade, no qual boatos e mentiras superam a informação isenta. Sistemas tradicionais ruem, surgem novas ameaças. Hackers e crackers colocam em xeque a confiança que temos na segurança bancária e no sigilo das informações. Empresas, teóricos e uma nova geração questionam o valor da privacidade.
Seria muito otimismo acreditar que a tecnologia irá, sozinha, nos tornar melhores como seres humanos. Mas também não precisamos deixar que ela nos torne piores
A adoção dos princípios da cidadania digital pode ser uma oportunidade de repensar e repactuar a convivência em sociedade. Algo que nós e nossos filhos temos a oportunidade rara de ao menos tentar.
Brenda Fucuta, 56, é formada em jornalismo. Foi publisher das principais marcas jovens e femininas da Editora Abril, entre elas as revistas Capricho, Claudia, Elle e Saúde. Atualmente, escreve no Universa, do UOL, sobre a convivência em sociedade, no blog Nós.
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