“Uma imagem vale mais do que mil palavras”.
“Cada pessoa tem sua visão sobre a situação”.
“É preciso olhar por outro ângulo”.
O que as três frases têm em comum? O fato de compreenderem a ação de ver, enxergar, como sinônimo de experimentar a realidade. Vamos combinar: se o corpo humano conta com cinco sentidos, por que conhecer o mundo parece, para a maioria das pessoas, ser algo restrito à imagem que se forma diante dos olhos?
Como uma pessoa com deficiência visual, cega ou com baixa visão, pode conhecer uma pintura em seus detalhes se, por motivo de conservação, não pode tocá-la? Se você nunca parou para pensar nisso, a boa notícia é que a Casa Fiat de Cultura e a FCA já pensaram. Acabam de ser lançadas versões em 3D de pinturas criadas pelo FCA Design Center, que fazem parte da exposição “São Francisco na Arte de Mestres Italianos”. O objetivo é ampliar a acessibilidade. Com isso, três quadros consagrados – representativos dos movimentos artísticos presentes na exposição: Pré-Renascimento, Renascimento e Barroco – foram “traduzidos” para a apreciação tátil e se transformaram em peças para serem manuseadas por pessoas com deficiência visual.
Diretamente envolvido na iniciativa, Celso Morassi, supervisor de Modelagem do Design Center da FCA, explica que as peças foram feitas em uma resina semelhante à madeira, por uma máquina que vai desbastando um bloco do material para criar a forma tridimensional desenhada virtualmente. Esse desenho-guia é uma espécie de caminho programado para a máquina percorrer no bloco sólido, criado a partir de uma interpretação da equipe do que, no bidimensional, deveria ficar em cada plano na releitura, acrescentando ao quadro, então, camadas de profundidade. “A máquina trabalhou 26 horas na peça com mais detalhes, diminuindo o diâmetro da fresa a cada fase, começando com a de 10 mm até chegar na de 1 mm, para garantir contornos mais delicados”, conta Morassi. Depois, cada versão das pinturas foi lixada manualmente, para tornar o resultado mais refinado e deixar o toque ainda mais agradável a dedos com sensibilidade apurada.
“Foi um desafio transformar algo bidimensional em tridimensional, definir os contornos mais importantes para dar volume e a noção de planos, de profundidade”, diz Celso.
O presidente da Casa Fiat de Cultura, José Eduardo de Lima Pereira, concorda e afirma: “É um trabalho desafiador porque é muito difícil. Pensamos a todo o momento na experiência da pessoa com deficiência visual, levando em consideração os retornos que tivemos desse público em ações anteriores. Além disso, temos utilizado os conhecimentos orientados por profissionais da área que têm estudos teóricos e práticos sobre a melhor forma de prestar este serviço de acessibilidade”. A experiência do público com deficiência visual com as obras em versão 3D agradou. “Fiquei muito feliz por poder tocar nas peças”, afirma Nívea de Paula Martins, estudante de Biblioteconomia que faz parte do Lar das Cegas, mantido pela Associação de Cegos Louis Braille e que trabalha na socialização e promoção da cidadania de pessoas com deficiência visual. “É outra imaginação, diferente de quando alguém descreve a imagem para a gente. É emocionante poder sentir as obras de arte, conhecer a história delas.” Nívea conta que ficou encantada com a cortina de grossas cordas que faz parte de uma das galerias da exposição e pendem do teto ao chão, oferecendo estímulo tátil. “Também adorei o painel com retalhos de tecido que lembram as roupas de São Francisco”, acrescenta.
A pedagoga e massoterapeuta Maria da Conceição Pires, que também integra o Lar das Cegas e tem baixa visão, se alegrou com a possibilidade de usar o que considera seu sentido mais aguçado para conhecer os quadros. “Muito boa a oportunidade de tocar as três peças, foi um toque suave. E também gostei das cores com texturas, pois ofereceram um bom entendimento de tudo”, narra, em referência a um sistema de cores táteis que está sendo testado pelo Núcleo de Acessibilidade do Programa Educativo da Casa Fiat de Cultura. Essa metodologia permite o reconhecimento das cores pelas formas geométricas. Por exemplo: se uma superfície azul é preenchida por círculos em alto relevo e a vermelha por triângulos, logo uma roxa é a junção desses dois desenhos.
“Saber que tem gente pensando nesse público com outras necessidades é muito satisfatório”, diz Conceição sobre a iniciativa.
Quem também tocou as peças no dia do lançamento foi o jornalista Renato Lara Júnior, que elegeu uma obra favorita: São Francisco de Assis e quatro flagelantes (1499), de Pietro Perugino e Giovan Francesco Ciambella. “Essa foi a que compreendi melhor. Consegui perceber a cabeça dele, a túnica, a forma da cruz fica bem fácil de distinguir”, narra Júnior, que diz ainda ter apreendido a composição triangular do quadro, com uma figura central que vai até o topo e menores mais abaixo, característica do período Gótico (Idade Média) que se desenvolve no Pré-Renascimento e se torna cânone do Renascimento. Clarita Gonzaga, coordenadora do Programa Educativo da Casa Fiat de Cultura, explica que os recursos da exposição foram desenvolvidos levando em conta as especificidades de cada corrente artística. “Construímos uma série de estratégias e ferramentas pensando, principalmente, em tornar acessíveis alguns conceitos básicos da iconografia de São Francisco ao longo da História da Arte”, comenta, citando como exemplo a preocupação em evidenciar a composição triangular percebida por Júnior.
O jornalista considera que as peças em 3D foram muito bem executadas:
“O mundo é todo muito visual, por isso é tão importante fazer exposições com recurso tátil para pessoas com deficiência visual”, completa, elogiando também a audiodescrição feita em tempo real nas galerias, em que tudo é narrado, até mesmo a disposição de objetos comuns, como os bancos da sala de vídeo da exposição.
O professor de História e escritor Flávio Oliveira, que também tem deficiência visual, experimentou as peças e elogiou o que chamou de protagonismo da Casa Fiat de Cultura em garantir essa experiência para pessoas com necessidades especiais. “O acesso ao patrimônio cultural, histórico, artístico da humanidade, o acesso à memória, é um direito humano, portanto universal”, defende, lembrando que a iniciativa do espaço pode incentivar outros museus e centros culturais a se preocuparem mais com a acessibilidade. “Em geral há uma ideia restritiva do que é a compreensão do mundo através de todos os sentidos. Quando estou tocando a peça, não estou vendo com os dedos, estou sentindo com os dedos”, ensina o professor. “É importante que as pessoas entendam que uma parcela do mundo, seja uma paisagem, um espaço interno, é possível de ser compreendida muito mais plenamente de maneira integral, holística, sinestésica, com todos os sentidos”, diz Flávio, que considera que cada sentido tem sua maneira própria de perceber e uma compreensão muito mais rica da arte é possível se esses sentidos são estimulados.
A lição de que a arte vai muito além do que se vê fica para as pessoas videntes — aquelas que enxergam sem deficiência. As três peças criadas podem ser tocadas também por essas pessoas como forma de aprofundar o conhecimento. “Acreditamos que as experiências estéticas abrem novas possibilidades de percepção e interação do e com o mundo, pois oferecem estímulos diversos que podem, inclusive, despertar novas perspectivas e canais para essa percepção. Vale tanto para o público com deficiência quanto para o público regular”, afirma Clarita.
E se a vida imita a arte e a arte imita a vida, Celso Morassi conta que o design da FCA, consagrado mundialmente, aprende muito a cada uma dessas trocas. “Para nós, fica o reforço da compreensão que sempre tivemos de que fazer um automóvel vai muito além da visão. O design deve levar a experiência em consideração como um todo: da textura do painel ao cheiro dos bancos, cada curva da estrutura”, comenta, feliz por ter participado de mais um projeto voltado para a inclusão. Confira detalhes da produção das obras no vídeo abaixo:
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