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Piraporiando – ou como Janine Rodrigues transforma livros sobre racismo e bullying em projetos educativos

Flávia Martinelli - 17 out 2018
Janine conta como "furou a bolha" do mercado ao transformar suas obras literárias em "projetos brincantes".
Flávia Martinelli - 17 out 2018
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Nuang era uma menina inteligente que vivia na distante terra do povo Uthando, conhecido por sua sabedoria, pela honra de suas palavras e pela beleza preta de sua pele. “As mulheres eram detentoras de conhecimentos milenares e tinham grandes cabelos crespos, tão belos que eram, na verdade, coroas.” Quem conta essa história é a carioca Janine Rodrigues, de 37 anos. “A criança vive em sociedade e não precisamos criar um mundo que não existe para ela”, diz a escritora de voz doce e acolhedora.

Gestora ambiental por 12 anos, há três Janine montou a própria editora e produtora cultural, a Piraporiando, para espalhar suas obras que tratam de valorização da diversidade, preservação dos direitos da criança e do brincar, combate a preconceitos, racismo e bullying na infância. “A capacidade intelectual da criança é muito maior do que a gente imagina”, diz.

Sua empresa, que teve investimento inicial de singelos 2 mil reais, comemora um faturamento de 100 mil reais nos últimos 12 meses. Em tempos de crise das editorias tradicionais, é um feito digno da protagonista de Nuang – Caminhos da liberdade, o quinto e último lançamento da Piraporiando. A heroína, que foi arrancada de sua terra natal para ser escravizada, sentiu muito medo do desconhecido, teve de recuperar na memória a força de suas origens para encontrar a liberdade em um mundo hostil.

“Todos nós somos Nuang”, diz Janine. Ela escreveu essa história quando tinha entre 10 e 12 anos de idade. Há três meses, a publicação recebeu a chancela da Fundação Cultural Palmares, instituição pública que é referência na valorização da cultura afrobrasileira. A escritora fala sobre como o negro é normalmente retratado e o que ela busca fazer para mudar isso:

“Nas aulas ou na literatura os negros sempre ‘surgem’ com a escravidão. Aparecem sem passado. A [personagem] Nuang não. Ela tinha uma vida, gostava de si e de seu cabelo crespo”

Quando fundou a Piraporiando, em 2015, Janine pouco sabia sobre o mercado editorial. “É uma área fechada, que ainda tem aquele ranço de glamour, da figura do mecenas que ‘cuida’ do autor que, por sua vez, aceita esse papel de dependência das editoras.” Ela viveu essa condição como escritora quando publicou sua primeira história, um livro para colorir chamado No Reino de Pirapora, em 2013, antes de decidir empreender no ramo.

Página do livro “Nuang – Caminhos da liberdade” (35,90 reais), que Janine escreveu quando tinha cerca de 10 anos.

Na época, nem imaginava sobreviver de literatura. Trabalhava em uma multinacional como gestora de licenciamentos de parques de energia eólica e tinha uma rotina de idas e vindas entre o Rio de Janeiro e estados do Nordeste. Enquanto isso, cada exemplar de livro vendido lhe rendiam 2,50 reais. “Era bem despretensioso. Escrever era um hobby desde a infância”, conta. Os pais de Janine, um oficial da marinha que já estava aposentado quando ela nasceu e uma costureira que vendia produtos por catálogo de porta em porta, moraram numa chácara no interior do Rio de Janeiro. Lá a menina cresceu entre pomares, cachoeira, cachorros e bicicletas no quintal. “Tive uma infância maravilhosa. E havia as festas da nossa família imensa e afetuosa que até hoje, no Natal, reúne mais de 70 pessoas.”

Adulta, Janine foi procurar uma editora de livros por insistência de quem já ouvia algumas das mais de 150 histórias que escreveu. “Entrei com uma grana e a editora com outra. Mas logo vi que aquele modelo de negócio era insustentável, uma tragédia anunciada.” No competitivo mercado de livros infantis, metade do valor da obra fica com as livrarias e a outra vai para a editora. “Ao escritor são repassados 5% a 10% de direitos autorais. Em alguns casos, esse pagamentos só chegam duas vezes por ano. Não dá, né?” Mas uma oportunidade surgiu no lançamento do primeiro livro.

COMO TRANSFORMAR O PRODUTO LIVRO NO PRODUTO EXPERIÊNCIA

Janine foi convidada por uma professora a contar a história de No Reino de Pirapora em em uma escola. A trajetória da pequena rainha triste, mandona e solitária, que só permitia a existência de objetos redondos em seu reinado, aborda as consequências do bullying na infância. A trama só muda de rumo quando um garoto chega com brinquedos quadrados e muito acolhimento.

As memórias da autora mais uma vez foram revisitadas. “Tive uma amiga de escola que sofria de uma doença rara que a impedia de tomar sol. Ela não podia brincar na hora do recreio, era caçoada e ficava agressiva.” Janine lembra que, então, que pediu à mãe uma festa de aniversário à noite para colega participar. “Foi inesquecível a felicidade da minha amiga só por estar ali, vivendo algo novo.” E o livro inspirado no episódio virou sucesso nas escolas.

Janine fala que bullying estava, e ainda está, em evidência e que é preciso usar abordagens diferentes para combatê-lo. “Quando dei por mim, de contação em contação de história, acabei criando projetos que transformam o livro em vivências completas”, diz. A cada atividade contratada pela escola, um pacote de venda de livros já era negociado. Dessa forma, a narrativa oral para crianças transformou-se também em oficina sobre bullying para professores, depois em atividade educacional e recreativa em centros culturais e, rapidamente, em eventos onde Janine passou a compartilhar suas histórias e paixão pela leitura.

A escritora sempre foi remunerada por esses projetos, mas pouco ou quase nada recebia pela venda dos livros. “Não dava nem para negociar descontos com clientes porque isso era assunto da editora. Não fazia sentido eu ganhar tão pouco pelo livro que eu mesma havia escrito, divulgado e distribuído”, conta. Era hora de fazer algo.

EDITORA PARA QUÊ?

A criação da Piraporiando, então, veio na raça, com Janine fazendo tudo sozinha. A estratégia de diversificar projetos a partir dos livros seguiu, com vendas fechadas diretamente para escolas públicas ou privadas e centros culturais. Nem todas as táticas, porém, eram acertadas: “Fiz muita burrada, como gastar dinheiro à toa em cadernos, canetas e material promocional dos personagens. Ficaram lindos. Mas eu ia vender para quem?”.

Ela lembra também das madrugadas passadas em claro buscando informação na internet sobre questões simples como, por exemplo, o registro de direitos autorais da obras na Biblioteca Nacional. “Ninguém no mercado de editores, que é quase um clubinho, me passava dicas, mesmo as mais banais. Com raras exceções, as pessoas deste meio e até as entidades do setor me ignoravam. O que penso disso? Que é segregação e manutenção de privilégios”, diz, e pede que divulguemos: para adquirir o registro de um livro, basta imprimir as páginas da obra, completar uns formulários básicos e pagar uma taxa de uns 30 reais. Pronto. Janine fala mais:

“Já há uma antipatia por autores que publicam os próprios livros e, apesar das mulheres estarem chegando como autoras, poucas estão nos negócios. E, antes de tudo, sou mulher negra”

Decidia a criar o próprio empreendimento, ela largou o emprego e usou aqueles 2 mil reais de investimento inicial para imprimir o material promocional e algumas dezenas de exemplares de seus livros. Também instalou-se no coworking do escritório de inovação Rio Criativo, iniciativa de apoio à economia criativa da Secretaria de Cultura do Estado. Lá, encontrou clientes e contatos e acabou sendo selecionada pela incubadora de negócios do local para um programa de mentoria em marketing da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. “Tenho facilidade e adoro me conectar a pessoas que não estariam no meu ciclo de convivência”, diz.

A premiada ilustradora Bruna Assis Brasil topou ser paga em “suaves prestações” no livro “As Duas Bonecas Azuis” (35,90), da Piraporiando.

Esse talento logo estaria representado nas ilustrações do livro As Duas Bonecas Azuis. “Meu sonho era achar uma artista que representasse perfeitamente meu universo imaginário. Encontrei essa profissional mas sabia que não tinha dinheiro para pagá-la”, diz a autora. Mesmo assim, ela arriscou e convidou a ilustradora Bruna Assis Brasil, que coleciona Jabutis e tem obras renomadas da literatura infantil nacional e internacional. Bruna abraçou a ideia e topou ser paga em suaves prestações por um preço justo.

A história das bonecas sem boca que viviam numa casa de palha e convidavam a desconfiada Labele para brincar foi impressa com ilustrações “de grife” e requintes como o papel couché de 150 gramas (que é um pouco mais grosso que o comum). “Beijinho no ombro”, brinca Janice, lembrando que o livro também virou peça de teatro. A produção e a venda dos espetáculos de As Duas Bonecas Azuis tornou-se outra fonte de receitas da Piraporiando.

CRESCER, ERRAR, APRENDER

O crescimento da empresa foi acompanhado pela contratação de cinco funcionárias. Mas não veio sem perrengues. “Tomei um calote que quase comprometeu todo o futuro da Piraporiando.” Um projeto que envolvia uma grande remessa de livros não foi pago e a editora se viu diante de uma dívida de 32 mil reais. “Cometi o erro de imprimir os livros à vista antes de receber o pagamento do cliente. Nosso capital de giro era pouco e foi uma lição para sempre. Agora meus contratos são feitos com sinal e cláusulas de risco”, conta Janine.

O parcelamento da dívida e um processo judicial foram as saídas. A editora seguiu publicando. Histórias do Velho Nestor Contando seus Contos de Horror é sobre um senhor solitário que perambulava à noite nas ruas de uma cidade que queria expulsá-lo. Em seguida veio o livro Contos Piraporianos, com os casos de dois gatos que viviam em mundos diferentes, do menino Zebeleu que via tudo de cabeça pra baixo e da princesa Kauara que mostrou a beleza de sua aldeia a uma menina tristonha.

A diversificação de projetos e mídias continuou: Janine criou um canal próprio no YouTube, dirigiu e co-criou um curta-metragem experimental de animação que está rodando festivais, lançou jornadas literárias que circulam pelo Brasil. Escolas passaram a procurar a Piraporiando para promover oficinas de criação coletiva de livros infanto-juvenis, formação educadores em mediação de leitura e contação de histórias e até para uma oficina ambiental para criançada — esta, chamada “Esse lixo é meu”, trata da importância do meio ambiente em brincadeiras de jogar lixo no lixo.

Ao longo desses três anos, A Piraporiando vendeu cerca de 16 mil livros. Os mais de 70 projetos alcançaram 17 mil crianças e 6 mil educadores em 16 estados do Brasil, além de cidades da Colômbia e Chile. Janine ganhou prêmios na Áustria e na Argentina e tem planos de levar seus livros para escolas de brasileiros na Europa.

“O que preciso agora é de um projeto grande, de uns 100 mil reais, equivalente ao último faturamento anual da Piraporiando”, diz. Janine quer criar uma plataforma de atividades digitais, aumentar o estoque de livros com olhos em remessas maiores para programas nacionais de educação, investir em marketing e apostar ainda mais na transversalidade da arte na literatura, música, audiovisual ou o que mais sua imaginação permitir. Coragem a escritora e empreendedora sabe onde encontrar: basta lembrar de Nuang, a personagem que sabe da força de suas origens e preserva a ousadia que só as crianças têm.

DRAFT CARD

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  • Projeto: Editora e Produtora Cultural Piraporiando
  • O que faz: Livros, projetos culturais e ações de incentivo à leitura
  • Sócio(s): Janine Rodrigues
  • Funcionários: 5
  • Sede: Rio de Janeiro
  • Início das atividades: janeiro de 2015
  • Investimento inicial: R$ 2.000
  • Faturamento: R$ 100.000 (últimos 12 meses)
  • Contato: [email protected], (21) 99794-1344 e (11) 94959-9232
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