Logo pela manhã, uma carta de oráculo dá a palavra do dia. “Ordem” era a daquela manhã de outubro, mas “liderança”, “confiança” e “coragem” também já apareceram para os envolvidos neste empreendimento. Todas as pessoas que fazem parte do aFlora, que se denomina uma “comunidade de inovação e consciência”, recebem a palavra via WhatsApp. É aquela a virtude que irá reger a casa (que tem atividades e serviços como restaurante, meditação, coworking, terapias naturais e eventos) e que deverá ser trabalhada ao longo do dia. Em seguida, é tirado o oráculo das flores, que dita o floral que ficará disponível, diluído em uma jarra d’água, para as pessoas tomarem suas doses.
Quando o relógio bate meio-dia, é tocada uma concha — que faz um barulho semelhante a um berrante — chamando as pessoas para a sala de meditação, onde praticam por cerca de 20 minutos. Ao final, um momento de partilha. Quem quiser, pode dividir alguma questão individual, falar como está se sentindo no dia. O mesmo ritual acontece às seis da noite.
Não, não estamos falando de um ashram indiano, embora os ritos que seguem o nascer, o ápice e o pôr do sol tenham inspiração ali. A cidade é São Paulo. Em meio a lojas, escritórios, escolas e pessoas apressadas para seus compromissos, o centro de autocura urbano foi inaugurado em junho, no movimentado bairro de Pinheiros, na zona oeste da cidade.
Marcelle Martins, 40, saiu da Publicidade e do mundo corporativo, em 2008, para se dedicar às terapias naturais. Depois, uniu as duas coisas com o WorkMeditation, método de meditação que levou para diversas empresas na crença de que pessoas bem cuidadas por dentro também são melhores para os negócios. Fundadora do espaço, ela fala mais sobre seu propósito:
“Queremos inspirar um estilo de vida inovador e consciente, aflorando dentro de cada pessoa, empresa ou projeto, uma potência de energia positiva para transformar a cidade, o país e o planeta”
Para criar o aFlora, ela se uniu a Thiago de Carvalho, 35, que traz de família a veia empreendedora no ramo da alimentação, acumulando experiência em cafés, restaurantes e também em terapias naturais. Desde 2009, ele faz formações em áreas como naturologia, reiki e florais da Amazônia. “Acreditamos em outro tipo de tecnologia, as internas, que podem ser despertadas por meio de ferramentas como alimentação, florais e meditação, para construir outro mundo, de dentro para fora”, afirma ele.
UM NEGÓCIO BASEADO EM ESCOLHAS POSITIVAS TODOS OS DIAS
No aFlora, são cinco os principais pilares: restaurante plant based (ou seja, sem nada de origem animal), escritório compartilhado para empreendedores de impacto social e local para eventos (já abertos a todos os interessados), além de estúdio de meditação e oferta de terapias naturais e aulas de yoga (por enquanto restritos à comunidade de empreendedores do local).
O café e restaurante Purana é o cartão de visitas do espaço. Tem como sócia a ativista da alimentação consciente Alana Rox, 38, que investiu 260 mil reais no negócio. Ela é dona do perfil no Instagram The Veggie Voice, com mais de 150 mil seguidores, e também autora do livro Diário de uma Vegana, em que compartilha receitas de pratos, cosméticos e produtos de limpeza livres de ativos animais.
Na varanda e salão principal da casa são servidos café da manhã, almoço e lanches com foco na alimentação como medicina. Não são usados produtos de origem animais, como carnes, leite ou ovos, nem glúten.
Todas as refeições são feitas com aquilo que brota da terra — de folhas e legumes aos feijões e cogumelos servidos em um bowl durante o almoço. Há sucos energizantes, kombucha tirado igual chope e servido em taça e água filtrada à vontade. Marcelle afirma:
“Nosso primeiro insight foi de que a alimentação fosse vista como algo sagrado e que as pessoas pudessem se conectar com a natureza através da comida”
Ela prossegue: “A ideia é que elas possam contemplar os ingredientes, a delicadeza das folhas, uma espécie de meditação mesmo”. Atrás do restaurante, há um espaço de 100 metros quadrados, mais um quintalzinho, que pode ser locado para eventos corporativos, cursos ou workshops alinhados com a proposta do local. No mezanino construído na casa (cujo proprietário é um chinês, budista e vegano, que rejeitou ofertas financeiras maiores após saber do projeto que Marcelle e Thiago queriam aportar ali) está o estúdio do WorkMeditadion, onde acontecem os rituais de meditação duas vezes ao dia, e a sede de quatro empresas.
A primeira a chegar foi a Mercy for Animals, maior ONG mundial de luta pelos direitos dos animais de criação, que só tinha escritório em Los Angeles até então. Depois, vieram a TriCiclos, que trabalha com redução, reutilização e reciclagem de resíduos; a Okena, especializada na despoluição e tratamento de águas industriais; e a Casa do Autor, agência de comunicação que atende ONGs e outros projetos de impacto social.
Aliás, impactar positivamente o mundo é o pré-requisito na escolha de quem ocupará os próximos oito de um total de 50 postos de trabalho disponíveis no mezanino (a um custo de 1.070 reais mensais). O foco agora são empreendedores individuais, pessoas físicas que respondam à principal questão colocada por Marcelle e Thiago a todos possíveis parceiros: “Qual é a cura do seu negócio?”.
Os sócios defendem que as empresas ali dividem mais do que um espaço de trabalho. “Seria a transcendência do coworking. O fato de as pessoas trabalharem em um centro de autocura, começando elas mesmas a se manterem saudáveis, faz com que, assim, consigam atingir todo o planeta”, afirma Marcelle.
MUNDO CORPORATIVO E AUTOCONHECIMENTO NÃO PRECISAM SER OPOSTOS
A semente do aFlora foi plantada durante a Virada Sustentável, festival de sustentabilidade realizado anualmente em São Paulo. Na edição de 2017, Marcelle e Thiago ofereceram o programa “Vire sua Empresa”, treinamento que incluía práticas de autoconhecimento e consciência para organizações virarem seus negócios e começarem a olhar com mais cuidado para as pessoas que trabalham neles. Algo que Marcelle já havia sentido ser necessário desde que fazia consultoria corporativa:
“Via as pessoas sofrerem dentro das empresas, passando por crises de estresse e burnout. Era preciso fazer algo”
Daí veio a vontade de iniciar um projeto relacionado a trabalho e vida conscientes. A dupla saiu, então, em busca do “imóvel perfeito”. Após uma reunião em um café na rua Cônego Eugênio Leite, os dois, já cansados, pararam para papear com um corretor, que informou sobre uma casa que tinha acabado de ganhar uma placa de “aluga-se” ali na mesmo naquela rua. Eles andaram até lá e, da porta, já ligaram para a imobiliária e disseram que queriam fechar negócio, sem nem mesmo entrar no imóvel. Eles contam que sentiram que era ali.
No local, já havia funcionado uma galeria de arte e uma agência de publicidade. O investimento inicial para começar o projeto saiu do bolso dos sócios — 350 mil reais (sem contar o que foi gasto no restaurante, que além de Marcelle, Thiago e Alana, também cota como Fabiana Raucci, 30, como sócia). “Sempre custa mais do que imaginamos”, diz Thiago, já dando a primeira dica sobre os percalços de se empreender.
Antes de abrir o negócio, eles conversaram com consultores e ouviram de todos que o projeto não daria certo. Diziam que o mercado não estava preparado. “No meio do caminho pensamos em desistir das empresas. No fim, naturalmente aconteceu”, diz Marcelle.
Além do aluguel dos postos de trabalho, do espaço para eventos e do restaurante, o faturamento da empreitada — atualmente na média dos 40 mil reais mensais — passará, em breve, a contemplar aulas de yoga, meditação e terapias naturais. Hoje, esses serviços fazem parte do chamado “plano de saúde zen”, oferecido pelos negócios ali instalados como um benefício para seus funcionários.
Os sócios também já buscam investidores para uma expansão no rooftop, onde querem plantar uma pequena floresta e fazer uma praça aberta a todos. No local, planejam, ainda, salas de terapias com massagem, acupuntura e florais. Chamado de Nirvana, o espaço já tem projeto arquitetônico, feito pela Arealis.
A busca, agora, é por patrocínio de grandes empresas que se conectem com a proposta. “Nosso maior diferencial é cuidar das pessoas e esse é um desafio para empresas. Elas cuidam dos negócios. E aqui, além de ter o espaço e a infraestrutura, temos o cuidado com os colaboradores, que são o maior patrimônio de uma organização”, afirma Thiago. Que floresça.
Aromática, sensível e difícil de polinizar, a baunilha é cobiçada por chefs de cozinha, mas o quilo pode custar até 6 mil reais. Com capacitação e repasse de parte do lucro aos produtores, a Bauni quer promover o comércio justo da especiaria.
O chef Edson Leite e a educadora Adélia Rodrigues tocam o Da Quebrada, um restaurante-escola na Vila Madalena que serve receitas veganas com orgânicos de pequenos produtores e capacita mulheres da periferia para trabalhar na gastronomia.
O Brasil vive uma explosão do mercado de alimentos plant-based. Gustavo Guadagnini e Amanda Leitolis, do The Good Food Institute, falam sobre os novos avanços dessa indústria e seu papel crucial para ajudar a frear as mudanças climáticas.