No princípio era só uma cerveja. Mas ela trouxe com ela um bar, que carregou com ele uma distribuidora, que por sua vez acabou gerando a necessidade de uma cozinha-restaurante e que, no fim, deu origem a todo um movimento de ocupação de um antigo mercado. É uma ciranda difícil de resumir a história dos sócios Rafael Quick, 30, Samuel Viterbo, 31, e Marcelo Machado, 35, na nova cena de economia criativa e de reocupação da cidade que tem tomado Belo Horizonte. Por isso, caro leitor, sigamos a cronologia…
A tal da cerveja começou com um casamento. Literalmente: não é uma figura de linguagem para falar da sociedade (que só veio a se formar meses depois). Quando decidiu casar com a atual esposa, Rafael pediu ao amigo Samuel Viterbo, cervejeiro caseiro, para que ele produzisse 150 garrafas de 600 ml para a festa. Não foi suficiente, as garrafas acabaram antes do esperado, mas algo parece ter funcionado nessa equação: os convidados saíram tão satisfeitos com a cerveja feita por Samuel que os muitos elogios lhe deram coragem para pedir demissão de um emprego (na Vale) e decidir apostar no mercado cervejeiro, em alta alta na capital mineira – com um crescimento anual de cerca de 14%.
Samuel convidou o engenheiro de produção Marcelo Machado para abrirem uma cervejaria juntos. Rafael, por ser designer gráfico (trabalhou em editoras como Abril e Globo) entrou primeiro para fazer toda a comunicação em troca de 10% da empresa, mas se envolveu tanto com o projeto que ficou com um terço da sociedade. A Cervejaria Viela, fundada há dois anos, tinha o objetivo inicial de produzir cerveja artesanal de qualidade, mas com um ponto principal: ser acessível.
O objetivo dos sócios era fazer uma cerveja artesanal de garrafa como a que se toma nos muitos botecos da cidade – e que realmente estivesse presente nos botecos da cidade. Esse, aliás, era o plano de negócio: vender a cerveja para os botecos a preços mais baixos, popularizar a cerveja de qualidade. Mas um imóvel disponível na rua Juramento, no bairro da Pompeia, mudou os rumos do trio.
“Pensamos que seria muito bom ter um lugar para vender nossa cerveja sem intermediários, direto ao público. E ali fizemos nosso bar: compramos uma máquina fatiadora de frios para fazer uns sanduíches na hora, instalamos as torneiras de chope e abrimos, convidamos só a família e amigos para uma abertura bem low profile”, conta Rafael.
O que eles não imaginavam é que o Juramento 202, como o bar foi batizado em homenagem à charmosa edificação de esquina onde se instalaram, se tornaria um dos mais frequentados pontos de Belo Horizonte – e ainda ganharia prêmios como o de bar revelação e melhor cervejaria da cidade por duas vezes segundo a revista Veja. Um feito e tanto para uma cidade que abriga dezenas delas, incluindo marcas maiores, como Wäls, da Ambev.
“Acho que o fez a cabeça da galera foi a acessibilidade: em preço, na estética do lugar, na música que toca, no bairro onde a gente está, que é super residencial”
Rafael fala mais: “As pessoas gostam de ter que ir até a Pompeia, se sentirem numa Belo Horizonte com esse espírito de interior. Esse poder nostálgico cria uma conexão muito forte”.
O ambiente informal com móveis vintage (do balcão no estilo mercearia à própria fatiadora, restaurada para o uso ali), o serviço descomplicado (não há garçons, os pedidos são feitos direto no balcão) e os chopes entre 5 e 7 reais fizeram a casa lotar. “Chegamos a atender mais de 400 pessoas por dia e vender mais de 2 000 litros por mês, extrapolando nossa capacidade. A ideia nunca foi fazer cerveja para ganhar prêmio, mas para ganhar o público”, afirma o cervejeiro Samuel, responsável pelas receitas, que vão desde uma lager levinha até uma IPA, passando por outros estilos.
Outro diferencial do bar é deixar algumas torneiras de chope para novas cervejarias que estão surgindo na cidade: ajudá-las na divulgação de suas receitas e marcas. Samuel fala:
“Belo Horizonte é um celeiro. Cada dia surge algo novo, mas nem sempre todo mundo tem espaço, né? Decidimos garantir isso”
E prossegue: “A gente passou a fazer uma curadoria e comprar alguns barris das cervejas que gostamos, que vamos descobrindo. Não vale nada que já esteja no mercado, aqui é só para as mais novas mesmo. É uma forma de ajudar a engrenagem a seguir rodando”.
OCUPAR PARA TRANSFORMAR, MAS SEM GENTRIFICAR
Com o aumento da demanda de produção, os sócios tiveram que buscar um novo espaço para produzir, e decidiram resgatar a ideia de engarrafar as bebidas. Nascia, em abril, a Distribuidora Goitacazes, responsável pelo envase das cervejas. Seguindo a tradição de ocupar espaços menos óbvios da cidade, eles escolheram o Mercado Novo, que é um mercado antigo com muita história, mas marginalizado na capital mineira. Embora esteja próximo do Mercado Central (a poucos quilômetros de distância), tem uma frequência de público muito menor que seu irmão famoso e quase metade de suas lojas vazias.
“Resolvemos ir lá e fazer uma ocupação que fosse na linha do que fizemos com o Juramento, mas que dessa vez tivesse força para transformar positivamente a situação do mercado”, diz Rafael, sobre o caráter não intervencionista das casas do grupo, uma espécie de Clube da Esquina da reocupação da cidade através do resgate da cultura boêmia belo-horizontina, por assim dizer. “Nossos negócios são inspirados nas coisas que existem, já existiram ou poderiam ter existido ali.”
Ele conta que, desde que chegaram à Pompeia, com o bar-cervejaria onde antes funcionava uma oficina, trataram de entender o bairro, fazer um estudo da vizinhança (inclusive estético) e tentar modificar o mínimo o cotidiano ali – embora as noites tenham ficado mesmo mais animadas.
“Sempre quisemos incomodar o mínimo e nos adaptar ao universo ali. Nós é que estávamos chegando… Como não temos cozinha, passamos a comprar embutidos de um fornecedor, pastel do Bar do Baiano, no bairro, que foi uma forma de valorizar o que eles fazem e mostrar que não somos uma concorrência pra eles”, diz Rafael. “É uma política de boa vizinhança mesmo. Eu, que fico ali o dia todo por conta das cervejas, já conheci todo mundo da rua, a gente se ajuda quando precisa.”, completa Samuel.
Mas esse sentimento de transformação veio mais forte com a relação dos sócios com o Novo Mercado, quando começaram a instalar ali os equipamentos para o envase da distribuidora. “Resolvemos abrir lá dois negócios em um: a distribuidora, que engarrafa e vende as cervejas da Viela e, em frente, a Cozinha Tupis, inspirada nas cozinhas do próprio Mercado Novo, onde produzimos e vendemos comida popular da cultura belo-horizontina do centro a preços bem justos”, conta Rafael.
Para tocar a operação do restaurante, eles convidaram o chef e empresário Henrique Gilberto, cozinheiro de uns dos mais conhecidos bufês da cidade, o Rullus, para chefiar a cozinha e se tornar sócio na Tupis. “Foi a única forma de poder viabilizar tantas coisas, porque temos que ter a humildade de saber que não dominamos tudo e precisamos colocar gente que possa ajudar, crescer junto”, diz Rafael.
Na Cervejaria, seguem os três sócios originais. No Juramento, Luiz Furiati, 27, entrou para administrar o bar e acabou virando sócio ali. “Precisávamos de alguém com experiência de bar e o Luizinho tinha muita, pois tinha sido gerente na Benfeitoria, uma casa muito conhecida na cidade. Oferecemos para ele ficar com um quarto da sociedade. Ele mandou tão bem e a relação foi tão boa que agora é nosso sócio também nos negócios do Mercado Novo”, prossegue Rafael.
Para ele, o mercado de hoje está muito mais aberto a essas relações, onde se agrega sócios com conhecimento específico para algumas atribuições, em alguns negócios determinados – uma ideia mais fluida de grupo societário, em que não é preciso todos terem seus nomes em todas as Razões Sociais:
“Quando o cara torna sócio, ele entende que a missão também é dele, diferente de um funcionário. Mas ter um sócio não significa que ele precisa estar em tudo. Somos um coletivo de pequenas empresas, não um grande grupo”
Reunir pessoas em torno de algo com que as façam se sentir gratas e realmente designadas para algo é um talento do grupo, posto ainda mais a prova com o projeto do Mercado Novo. No Juramento, por exemplo, eles pagam cerca de 40% a mais para os funcionários extras. “É importante para a pessoa se sentir feliz, reconhecida pela função que desempenha ali. Só assim você consegue atrair as melhores”, completa Rafael. Com o Juramento, eles passaram a conquistar clientes que tinham esse desejo de beber cerveja, sim, mas ao mesmo tempo ocupar a cidade, resgatar o seu passado – e conseguiram atingir em cheio um desejo que as próprias pessoas não sabiam nomear.
Mas a transformação do mercado a que se propuseram é mais desafiadora: atrair jovens empreendedores dispostos a investir tempo e dinheiro em seus negócios dos sonhos em um lugar que é ainda uma promessa e que tem como objetivo não causar nenhum tipo de gentrificação para não comprometer quem tem ali sua frutaria, seu açougue, sua loja de velas.
Velho Mercado Novo é o nome desse movimento de resgate da cultura desse lugar. Para isso, eles estruturaram um projeto, resgataram as plantas antigas para ver a infraestrutura do prédio, estabeleceram contato com órgãos públicos. Para atrair novos negócios, como uma charcuteria artesanal, um estúdio de revelação de fotos, uma doceria, entre outras, eles conseguiram condições muito boas de locação, além de isenção de taxas de luva com os proprietários das lojas ali.
“Entendemos que não vamos transformar o Mercado Novo se não criarmos um movimento que seja maior que a gente mesmo, que cresça de forma orgânica”, afirma Rafael. Ainda no começo deste ano, devem abrir as portas ainda uma marcenaria e uma livraria e papelaria. “Já são 16 projetos cadastrados, uma galera que veio junto mesmo, que espera prosperar com seus negócios mas dando em volta algo que a cidade precisa, trazer um mercado de volta à vida”, diz o empreendedor, sentado no balcão, tomando um gole da cerveja que iniciou tudo isso.
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