Apenas 3% do lixo gerado no Brasil é reciclado. O resto, 97%, vai para aterros sanitários. E o que é ruim pode piorar. Segundo uma pesquisa da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais) em parceria com a ONU Meio Ambiente, daqui a oito anos o aterro que atende São Paulo não poderá mais receber materiais. Assim, a vida dos paulistanos (que geram 20 mil toneladas de resíduos por dia) deve ficar mais complicada.
A Casa Causa ataca esse problema pelo viés corporativo. Fundada em 2017 por Flávia Cunha, 53, e Luciana Annunziata, 47, a empresa ajuda PMEs a diminuir a quantidade de resíduos destinados a aterros. “Grandes empresas normalmente têm uma área de sustentabilidade e responsabilidade social e os processos são mais engessados”, diz Luciana. Ao atuar com as pequenas e médias, ela e Flávia acreditam ter mais poder de transformação.
O trabalho ocorre em duas etapas. Primeiro, elas entendem quais são os processos já estabelecidos na gestão do lixo; na sequência, propõem soluções. A meta, quase utópica, é aproximar os clientes o máximo possível do Lixo Zero, conceito (estabelecido pela Zero Waste International Alliance) que prega aproveitamento e encaminhamento corretos dos resíduos com uma destinação limite de 10% para aterros sanitários.
Anualmente, 170 milhões de pessoas na América Latina ficam expostas a contaminações por causa das 145 mil toneladas de resíduos descartados diariamente de forma irregular. Lamentar não ajuda nada. Para engajar a maior quantidade possível de gente, as sócias da Casa Causa trabalham em uma chave positiva, mostrando a riqueza por trás do lixo.
“Não é que a gente não fale dos números e da seriedade do problema, mas chegar com essa abordagem afasta as pessoas”, diz Luciana. “Escolhemos trabalhar pelo lado mais legal da sustentabilidade, e não pelo drama.”
Um case bacana é o trabalho delas com a Associação São Joaquim, que atende 200 idosos em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo. A instituição não separava os resíduos e tinha problemas com o uso irregular de um terreno vizinho, onde as pessoas descartavam todo tipo de lixo e entulho. Na região não há cooperativas, e o volume gerado também era insuficiente para que os carroceiros fossem fazer a coleta.
Entrou em cena a Casa Causa. Flávia e Luciana deram a ideia de procurar na vizinhança quem tivesse o mesmo problema, aumentando assim o volume de lixo. Dessa forma, os resíduos da instituição se somaram com os de uma ONG, uma escola pública e um condomínio. E, com um volume maior, foi possível contratar uma empresa para fazer a coleta. Flávia conta:
“Em cinco meses de trabalho montamos o fluxo interno de gestão de resíduos, reduzimos o desperdício na cozinha, conseguimos mobilizar o entorno e chamar uma cooperativa para fazer a coleta”
O próximo passo, ela diz, é que a associação vire um ponto de entrega voluntária de recicláveis.
“INOVAÇÃO PARA QUÊ?”: A PERGUNTA ESTÁ NA GÊNESE DO NEGÓCIO
Flávia é psicóloga de formação. Por mais de 20 anos, trabalhou com desenvolvimento organizacional em empresas como Editora Abril, Santander, BCP e na Bolsa de Valores. Luciana, por sua vez, é formada em Economia, mas nunca atuou na área. Conduziu a carreira como consultora organizacional focada em inovação e criatividade.
As duas trilhavam essas jornadas corporativas quando se conheceram e fundaram a Cann, uma consultoria que atua em sucessão familiar e em processos de transição organizacional. “Começamos a nos aproximar de consultorias e programas focados em inovação multi stakeholder e entendemos o tamanho do desafio que é lidar com as questões de sustentabilidade, porque o problema é sistêmico e a solução só existe se todo mundo estiver envolvido”, diz Luciana.
Um dos clientes da Cann era a Docol, fabricante de torneiras e similares, que tinha desenvolvido processos para redução do uso de água — mas não conseguia levar o projeto adiante, mesmo em tempos de crise hídrica. O caso abriu os olhos das duas. Flávia e Luciana começaram a se questionar e concluíram que era preciso mudar o mindset das pessoas. E resolveram ajudar nessa mudança.
“Para fazer isso não poderíamos nos posicionar mais como uma consultoria. Teríamos que ter um advocacy mais forte, uma atuação mais engajada, mais mão na massa. E decidimos criar uma empresa só para isso”, conta Flávia.
Puseram de pé então o seu primeiro projeto com esse foco: a Casa Oca, empresa criada para erguer (do zero, ou por meio de reforma) moradias 100% sustentáveis. A Casa Oca foi selecionada para uma aceleração pelo Social Good Brasil, em 2015. Nas mentorias, as sócias ouviram que a ideia era boa, mas ambiciosa demais. “Precisávamos lidar com muitas variáveis, tínhamos uma rentabilidade baixa e um nível de responsabilidade civil muito alto”, diz Luciana.
Ainda assim, tentaram levar a Casa Oca à frente. A virada veio com a demanda para construir um supermercado sustentável em Natal. Luciana e Flávia esbarraram em desafios organizacionais, já que a construtora envolvida não aceitou as intervenções propostas. E, após um mês preparando o orçamento, viram que o projeto era inviável. A Casa Oca entrou em hibernação.
Enquanto mantinham o trabalho com consultoria e davam aulas na aceleradora Startup Farm, as sócias começaram a se questionar: “Inovar para quê?”. Luciana diz:
“Todo mundo quer ser exponencial e disruptivo, mas isso vai levar o mundo para onde? Estamos vivendo uma situação muito emergencial. As pessoas parecem que não se dão conta de que não basta inovar. É preciso saber qual a intenção de fundo”
O que havia de mais urgente no mundo e que “ninguém estava vendo”? Concluíram que o lixo era a resposta. E assim, com 45 mil reais do próprio bolso, elas pivotaram a Casa Oca e deram origem à Casa Causa.
PARA FALAR E AGIR PELA CAUSA, AS SÓCIAS BUSCAM OS EVENTOS
A Casa Causa fatura hoje 80 mil reais por ano. Hoje, além da Associação São Joaquim, a lista de clientes inclui Escola Builders, Colégio Sidarta, Ahlma e Condomínio Ilha do Sul. A empresa também atua em eventos, uma chance de impactar muita gente em pouco tempo — no Festival Pinheiros, por exemplo, foram quase 100 mil pessoas.
Outro caso foi o do Mercado Manual, uma feira com artesãos que reuniu 6 mil pessoas no Museu da Casa Brasileira, no começo de maio. A Casa Causa construiu o mapa operacional do evento, treinou funcionários e expositores (explicando o que é Lixo Zero, como separar os resíduos, como se comunicar com o público…), instalou coletores pelo espaço e ofereceu oficinas e workshops de conscientização para os visitantes.
“Os eventos são lugares onde podemos falar e agir pela causa”, diz Luciana. Ao fim de dois dias de Mercado Manual, haviam sido coletados uma tonelada de lixo reciclável (sendo 550 quilos de plástico) e 160 quilos de lixo orgânico. O reciclável — incluindo também metais, papelão e vidro — foi doado para a cooperativa Coopamare, no bairro de Pinheiros. O lixo orgânico encaminhado para a Horta Urbana Vilo Nilo (no Jardim Modelo, próxima a Guarulhos), onde é transformado em adubo.
Desde 2017, a Casa Causa organiza um evento próprio, gratuito, aberto ao público em geral. Com palestras, oficinas e workshops ligados ao tema, o Encontro Lixo Zero deu um salto de audiência em 2019: se no primeiro ano apenas 30 visitantes tinham comparecido, a terceira edição, na Unibes Cultural, atraiu mil pessoas.
Na relação com os clientes, um dos desafios é a precificação. Hoje, os projetos da Casa Causa são precificados de acordo com a complexidade, horas de trabalho e tipos de serviço. As sócias sentem que falta um parâmetro. Flávia explica:
“É um mercado muito informal para mapear e ver quanto custa. Trabalhamos com quem já é organizado e tem gestão de negócio e também com quem ganha por diária e não consegue nem dar o preço. Calibrar esse orçamento é bem difícil”
Tem, ainda, a questão do valor percebido. É obviamente mais barato contratar uma empresa de coleta para levar todos os resíduos embora. Porém, qual mercado está sendo fomentado com isso? E, mais importante: qual é o impacto para o planeta?
“Resíduos são o maior sintoma do nosso modo de vida, do inconsciente dominado pelo consumismo, sem visão sistêmica sobre o que tem atrás de cada produto consumido”, diz Luciana. “Nossas soluções não são focadas em custo, mas no que é social e economicamente mais eficaz e consciente.”
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