Julia Vergueiro cresceu jogando e assistindo futebol! Na sua família todos são apaixonados pelo esporte e desde bem pequena ela já jogava com os seus irmãos e primos. “Ter me envolvido com o futebol ainda criança fez com que eu conquistasse o meu espaço, primeiro, dentro da minha própria família. Eu sou a caçula e a única menina em casa, então foi vivendo esses momentos de torcida e de prática do futebol junto com eles que eu pude pertencer, ser ouvida, e ter voz junto aos meus familiares. No colegial, fiz intercâmbio para os EUA e logo entrei no time de futebol da escola, e graças a isso eu me enturmei muito rápido com as americanas e consegui aproveitar ao máximo a experiência internacional”, conta.
Consciente do poder transformador e empoderador que o esporte exerceu na sua vida, Julia decidiu ajudar outras garotas a viverem essas experiências. E fez disso um negócio pioneiro, o Pelado Real Futebol Clube, escola de futebol exclusiva para meninas e mulheres. Acompanhe esse bate-papo sobre esporte, autoconfiança, igualdade de gênero e aprendizados, muitos aprendizados.
Como surgiu a ideia de empreender?
Durante a faculdade eu tive uma primeira experiência muito transformadora: fui presidente de uma organização internacional formada por jovens para torná-los líderes e agentes de transformação na sociedade. Ali eu tive a oportunidade de gerir um negócio de 50 funcionários (todos voluntários) e aprendi muito sobre temas com os quais lido até hoje: gestão e desenvolvimento de pessoas, controle e planejamento financeiro, estratégia de negócio, engajamento de stakeholders, etc. Eu amei a experiência e isso ficou “guardado” na minha cabeça como algo que eu gostaria de viver de novo em algum momento da minha carreira.
E a ideia de empreender no futebol, quando nasceu?
Em 2012, enquanto ainda trabalhava no Itaú, eu comecei a bolar uma ideia de ter uma ONG que promovesse a prática do futebol para meninas. Minha ideia era poder retribuir ao esporte tudo o que ele me ensinou, como pessoa e como profissional, ajudando outras meninas a viverem essas experiências e aprendizados. Conversei com pessoas que já trabalhavam no terceiro setor, buscando alguma parceria que facilitasse o início do trabalho. Acabou não dando certo, pois eu ainda estava vendo aquilo como um hobby, e não como a minha carreira de fato.
Nesse mesmo ano eu conheci um grupo de mulheres que se reunia para jogar futebol depois do trabalho. Me juntei a elas e em pouco tempo percebi que aquilo tinha um potencial para ser muito maior. Foi aí que marquei uma reunião com a líder do grupo, desenhei uma análise SWOT do que eu tinha visto até ali, e apresentei para ela, que amou. Ela disse que era exatamente o que imaginava como futuro para o Pelado Real, e que ela precisava de uma sócia para isso. Foi então que decidi pedir demissão do banco e seguir o meu sonho.
O que você fazia antes? Qual a sua formação?
Me formei em Relações Internacionais pela PUC-SP. Tive duas experiências como estagiária – em uma empresa de pesquisa de mercado e depois em uma consultoria de gestão estratégia. Fiquei pouco tempo em ambas porque o trabalho na organização internacional para jovens me consumia muito e era ali onde eu queria focar, tanto que me tornei presidente em pouco tempo e aí precisei me dedicar integralmente, além dos estudos. Saí da organização em dezembro de 2009 e em 2010 entrei no programa de estágio do Itaú, na área de Sustentabilidade. Em 2011 entrei para o programa de trainee, seguindo na mesma área e tendo ótimas oportunidades de desenvolvimento e crescimento. Eu amava e sabia que tinha um futuro bastante próspero no banco, mas fiquei lá até agosto de 2013, quando pedi demissão para tocar o Pelado Real.
Então o Pelado Real Futebol Clube já existia antes da sua chegada?
Sim, o Pelado Real nasceu antes de mim. Em 2011, a Bibi Martins, fundadora, reuniu algumas amigas para ensiná-las a jogar futebol, já que todas reclamavam que a academia era chata e que queriam ter uma atividade física que também fosse prazerosa e juntasse a galera. Elas foram gostando, uma amiga foi chamando a outra, e assim o grupo foi crescendo. Eu entrei como uma dessas “peladeiras”, e logo enxerguei o potencial de aquilo se tornar uma empresa maior e com mais relevância no mercado. Até aquele momento tudo era bastante amador e só visava que os treinos conseguissem se manter. Tanto que quando eu entrei nós ficamos 2 anos sem receber nenhum salário, porque ainda não gerava lucro.
Como funciona o negócio?
O objetivo do Pelado Real é empoderar meninas e mulheres por meio do futebol. Fazemos isso criando espaços seguros e atrativos para que elas pratiquem o esporte. Justamente por isso a nossa escola é exclusivamente feminina – quando elas enxergam que existe um local feito só para elas, se sentem mais à vontade para participar, interagir e aprender. Além disso, um dos nossos principais diferenciais está em quem faz o Pelado acontecer: tanto na gestão como na comissão técnica, somos todas mulheres que amam o futebol. Todas temos esse mesmo propósito de retribuir o que o futebol nos deu, ajudando outras meninas e mulheres e viverem o que nós vivemos.
Temos hoje treinos para meninas desde os 5 anos de idade. No infantil, elas são divididas por categoria conforme o ano de nascimento – sub7, sub9, sub11, sub13 e sub15. Já as adultas são divididas por nível de experiência com o futebol – iniciante, base, intermediário e avançado. Assim, todas conseguem achar o grupo onde mais se identificam, tornam-se grandes amigas e apaixonadas pelo jogo.
Por que ensinar futebol para meninas e mulheres?
O futebol foi e ainda é essencial na minha vida. Me ensinou a conviver melhor com as pessoas, respeitar o próximo, a conhecer e valorizar o meu corpo, a ter coragem para tomar riscos, a superar desafios, entre outros inúmeros aprendizados. Para mim é muito claro como o esporte é uma ferramenta poderosa de transformação na vida das pessoas, e eu quero poder levar isso para outras meninas e mulheres. Autoconfiança e coragem são atributos essenciais para nossas meninas se tornarem mulheres que farão a diferença no mundo, e o futebol é uma excelente ferramenta para ajudá-las a desenvolver essas características. Além disso, construir esse espaço para o público feminino dentro um meio tão dominado pelos homens e com tanto preconceito é fundamental para mudarmos esse cenário e alcançarmos uma sociedade mais justa e igual para todos.
Como é a sua atuação na empresa?
Eu sempre gostei de “colocar a mão na massa”. Gosto de estar presente, de participar da operação, de saber tudo o que está acontecendo. Hoje em dia eu já consigo estar onde quero e não onde preciso, o que tem sido essencial para que eu tenha um olhar e uma atuação mais estratégica e institucional. Um passo importante foi ter colocado uma gerente de turmas e uma gerente financeira para tocar o que eu antes fazia sozinha. No momento nosso foco está nas turmas infantis, então é onde eu fico mais de olho – gosto de conversar com os pais, de assistir alguns treinos. Até hoje sou eu que cuido da nossa comunicação externa, então preciso saber o que está rolando para poder postar nas mídias sociais e também para falar com propriedade quando me reúno com parceiros ou quando faço palestras por aí. Tenho também esse importante papel de participar ativamente de redes e grupos externos que fazem parte da nossa indústria, levando o nome do Pelado Real e aprendendo para trazer novidades para dentro.
Quais estratégias têm dado melhor resultado nesta trajetória?
Desde o começo nos mantemos alinhadas à proposta de trabalhar apenas com futebol para meninas e mulheres e de contratar apenas treinadoras mulheres. Muitas pessoas já nos falaram e/ou fizeram propostas para trabalharmos com o masculino ou com outras modalidades, mas mantivemos o foco no que realmente acreditamos e somos expert. Hoje somos referência porque criamos algo único e extremamente autêntico, e todo mundo aqui trabalha com muito amor pelo que faz, e as clientes sentem isso e criam um laço que vai muito além de uma relação empresa-consumidor.
Outro ponto que eu destacaria são as parcerias. A principal delas que estabelecemos em 2016 e segue forte até hoje foi com a Turma da Mônica, quando criamos o Soccer Camp #DonasdaRua, um evento de futebol exclusivo para meninas de 06 a 14 anos. Com eles nós conseguimos ter um alcance muito maior do que jamais faríamos sozinhas, e eles também não teriam a expertise esportiva para fazerem por conta. Foi uma junção 100% ganha-ganha e que cumpre com um propósito mútuo de contribuir para a formação de meninas fortes e corajosas.
Por outro lado, quais caminhos foram deixados de lado?
Optamos por não entrar na esfera do futebol feminino profissional. Por mais que esse meio esteja crescendo, não acreditamos ser o nosso foco, até porque o esporte de alto rendimento acaba mais excluindo do que incluindo. Chegamos a ter uma parceria com um clube de alto rendimento, mas não seguimos em frente. Também não seguimos com a ideia de crescer em unidades e preferimos focar em ter o máximo de turmas no mesmo local ou em poucos locais, visto que o nosso público tem facilidade de se deslocar até as quadras.
O Pelado Real Futebol Clube tem concorrentes?
Hoje não conhecemos nenhuma escolinha no Brasil com o mesmo modelo de negócio que o nosso. No entanto, existem alguns grupos de mulheres que se reúnem para jogar e também algumas escolinhas que aceitam meninas. Para nos destacarmos focamos em oferecer um serviço de qualidade, com profissionais muito competentes e apaixonadas, e com um operacional que funciona de forma rápida e prática. Um exemplo simples: temos um sistema de cobrança que permite que todas paguem a mensalidade da escola via boleto ou cartão de crédito, o que facilita muito para a cliente e também nos permite ter uma gestão mais simples e organizada do nosso financeiro. É um investimento que vale muito a pena.
Na sua opinião, o que o empreendedorismo feminino tem de diferente?
Sinto que as mulheres fazem mais questão de empreender com aquilo que faz sentido para elas do que com algo que “tem mais chance de dar certo”, e isso traz uma característica que está sendo cada vez mais valorizada tanto pelo consumidor quanto por parceiros e patrocinadores, que é a autenticidade. Quando você acredita no resultado do seu produto ou serviço porque você mesma já vivenciou os benefícios daquilo, o brilho nos seus olhos encanta quem está do outro lado, e isso nos leva a um outro patamar de conexão da marca com o cliente.
Qual seu maior objetivo?
Que a sociedade brasileira passe a enxergar a prática do futebol para meninas e mulheres como algo extremamente importante, benéfico e poderoso. Não adianta criarmos algo lindo e maravilhoso se as pessoas não estiverem dispostas a experimentar e a quebrar seus próprios preconceitos. Aos poucos estamos mudando essa forma de pensar, e no futuro espero que possamos ver as escolas e universidades valorizando a prática esportiva e somando isso à formação das nossas meninas.
Qual foi o maior desafio que você enfrentou na vida empreendedora? Como superou?
No começo de 2019 passamos por uma situação complicada: uma das quadras onde nós tínhamos várias das nossas turmas negociou os nossos horários com uma outra escolinha de um grande clube internacional. Ficamos na mão, mesmo já tendo as matrículas todas fechadas para o ano. Seriam cerca de 50 alunas prejudicadas, e isso poderia manchar muito o nosso nome. Tivemos que fazer alguns treinos em locais diferentes enquanto eu tentava encontrar um local que pudesse nos receber de forma contínua para todo o ano. Usei muito o conhecimento das minhas treinadoras e até de alguns pais de alunas de quem sou mais próxima para levantar as opções de quadras em São Paulo e entrar em contato. Por fim, felizmente, encontramos uma quadra que estava prestes a abrir, e assim que eles finalizaram a reforma nós migramos todas as nossas turmas para lá.
Qual a sua maior conquista até aqui?
Um dos principais reconhecimentos que tive foi no ano passado, quando fui indicada pelo Consulado norteamericano para participar de um programa do governo dos EUA para mulheres que empoderam outras meninas e mulheres por meio do esporte (Global Sports Mentoring Program). Foi uma experiência única e muito rica, que vem me trazendo frutos até hoje e tenho certeza que seguirá rendendo muitas coisas boas para mim e para o Pelado Real. Recentemente também assinamos contrato com a Nike e hoje somos a única escola de futebol feminino a ter contrato com essa grande marca.
Qual é o seu sonho? O que ainda falta realizar?
O que mais quero agora é conseguir crescer sem perder a qualidade e a autenticidade em tudo o que fazemos. Quero ter mais alunas, mais treinadoras e também mais serviços agregados ao que já é oferecido. Meu sonho é que o aprendizado das meninas seja cada vez mais completo, somando aos treinos de futebol outras vivências que as ajudem a aprender habilidades e competências importantes para a vida fora das quatro linhas.
Se pudesse dar apenas uma dica para quem está querendo empreender, qual seria?
Não espere aparecer o momento certo ou estar 100% preparada. Muito do que eu sei hoje eu aprendi conforme fui fazendo. Quando você está aberta às possibilidades e inserida no meio que lhe pertence, as coisas acontecem, as pessoas te procuram, e novas portas se abrem. Acredite no seu potencial, foque no que faz sentido para você, e comece logo. Não tem fórmula mágica.
Quais seus planos para o futuro?
Esse mês estamos incluindo uma nova sócia na empresa, que ficará à frente do nosso novo grande serviço para o médio/longo prazo: orientar e apoiar jovens meninas a conseguirem bolsas de estudo por meio do futebol em universidades norte-americanas e canadenses. Além disso, tenho uma coluna na ESPNW e faço algumas palestras, então quero me dedicar a criar e disseminar mais conteúdos sobre a importância da prática esportiva para meninas e mulheres.
Para saber mais:
O que faz: escola de futebol exclusiva para meninas e mulheres
Sócios: 3
Funcionários: 10
Sede: São Paulo, SP
Início das atividades: janeiro de 2011
Contato: [email protected]
Esta matéria pode ser encontrada no Itaú Mulher Empreendedora, uma plataforma feita para mulheres que acreditam nos seus sonhos. Não deixe de conferir (e se inspirar)!
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