Cristina Leonhardt, 40, é engenheira de alimentos. Dafné Mota, 34, tecnólogo de alimentos e especialista em assuntos regulatórios. Em comum entre os dois, uma grande bagagem na indústria alimentícia — e chão, muito chão. Cristina vive em Lajeado, a uns 100 quilômetros de Porto Alegre; Dafné mora no Ceará, em Cascavel, a 60 quilômetros de Fortaleza.
Segundo o Google Maps, para chegar de uma cidade à outra leva-se 53 horas ao volante (ou 772 horas a pé). Sorte que não é uma história de amor, mas de empreendedorismo. Cristina e Dafné são os sócios à frente da Tacta Food School, uma “escola de cursos práticos focada na indústria e mercado de alimentos”, como informa o site.
A empresa nasceu em 2016, com o impulso de transformar o setor alimentício por meio da educação, com conhecimento técnico e prático. Vivendo fora dos grandes centros, os dois sentiam “na pele” a dificuldade da falta de cursos em sua área. Dafné afirma:
“O Brasil é um dos maiores mercados de consumo do mundo, com uma rica tradição culinária e indústrias de todos os portes espalhadas pelo território, fornecendo todos os tipos de alimentos. Temos oportunidades imensas neste setor”
Ambos já eram colunistas do site-referência Food Safety Brasil e ofereciam individualmente aulas e trabalhos de consultoria na área. O curioso é que só foram se conhecer de fato em março de 2016, quando ela viajou à capital cearense para dar um workshop.
A afinidade foi instantânea. Quase imediatamente, resolveram se tornar sócios na criação de um negócio em educação continuada no setor de alimentos. “O conceito da empresa foi desenhado em uma folha de papel no lobby do hotel [em Fortaleza]”, diz Cristina.
AS PRIMEIRAS AULAS AJUDARAM A VALIDAR O NEGÓCIO E PAGAR AS CONTAS
Em 2016, ela tinha acabado de voltar de um giro sabático por Alemanha e Ásia (China, Vietnã, Camboja e Tailândia). Com 15 anos de experiência na área de P&D de grandes empresas, como JBS, Ashland e Bremil, Cristina tinha perdido o emprego, mas tocava um site, o Sra Inovadeira, para falar sobre inovação e alimentação no Brasil e no mundo.
Dafné, por sua vez, trabalhava numa empresa exportadora de mel no Ceará e mantinha a Alimentus Consultoria, que promovia cursos aos fins de semana para atender profissionais de sua região. Com bagagem na execução de cursos, ele ajudou Cristina a montar a logística daquele workshop fortalezense — e, juntos, os dois esboçaram a nova empresa.
Os primeiro cursos, de Qualidade e Rotulagem de Alimentos, foram realizados naquele ano, entre junho e novembro, em quatro cidades: Fortaleza, Jundiaí (SP), Porto Alegre e Belo Horizonte. Entre os alunos, profissionais da indústria em busca de atualização, muitos dos quais já conheciam Cristina e Dafné de eventos e do mercado. Segundo o empreendedor:
“Nossos alunos foram nossa maior inspiração. Profissionais que, com poucos recursos e sem apoio financeiro dos seus locais de trabalho, pagavam do próprio bolso para realizar os cursos”
Com a renda inicial, os sócios puderam comprar computadores, impressora, material de escritório etc., e pagar serviços de contabilidade, honorários advocatícios, criação de site e da identidade visual da Tacta. Nessa época, chegaram a receber um aporte de R$ 20 mil, (na forma de um empréstimo a baixo custo) de um interessado em se associar, mas a ideia não prosperou e o dinheiro foi devolvido após um ano.
Aquela primeira fase serviu para validar o negócio, adaptando o formato às demandas. Decidiram encaixar, por exemplo, os cursos nos fins de semana (para que os participantes não precisassem se ausentar do trabalho) e ajustaram preços e carga horária.
A TACTA APOSTA EM CURSOS QUE FOGEM DO FORMATO TRADICIONAL
A proposta da Tacta Food School é ser uma escola transformadora e “divertida” em um mercado gigante, mas pouco inovador. Segundo Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), o setor faturou R$ 656 bilhões em 2018 no país. Porém, segundo a Pesquisa de Inovação – PINTEC, realizada pelo IBGE, e apesar de toda a biodiversidade brasileira, apenas 0,4% dos produtos alimentícios lançados no Brasil é de fato original — ou seja, os outros 99,6% já existem em outras partes do planeta.
Com a prática e o feedback dos primeiros alunos, a Tacta percebeu uma lacuna no mercado. Normalmente, os cursos na área de alimentos são muito específicos e técnicos sem uma educação continuada. Os dois sócios, então, apostaram no lançamento de trilhas de conhecimento de longa duração voltados para Gestão de P&D e Gestão da Qualidade.
Segundo Cristina, enquanto as faculdades focam em produção, vendas e financeiro, a Tacta criou módulos que ensinam os profissionais que assumem a área de gestão desses negócios: como estruturar o setor, montar fluxos e processo, melhorar práticas de organização, formar e gerir equipes. E complementa:
“Esse foi um grande acerto. Já na primeira turma tivemos quatro vezes mais inscritos do que o esperado e as pessoas passaram a colocar essa qualificação em seus currículos no Linkedin”
Para estimular a criatividade, a dupla colocou como meta que os cursos tivessem pelo menos 40% de atividades com ferramentas lúdicas, como maquetes e massinhas para fazer protótipos dos produtos, de forma que as pessoas aprendessem por meio da experiência.
“O modelo de ensino neste setor é bastante formal: o professor fala, o aluno escuta e não há espaço para alegria ou divertimento, que são considerados tabus em sala de aula”, diz Cristina. Para fugir dessa grade mais tradicional, a Tacta também olha para conteúdos como Design Thinking e User Experience. “Somos a única empresa do mundo a oferecer um curso de UX voltado a alimentos”, afirma Dafné.
DE 2017 PARA 2018, O FATURAMENTO MAIS DO QUE DOBROU
Hoje, são 27 professores espalhados pelo país. A Tacta tem ainda dois funcionários alocados em Lajeado, outros dois em Cascavel e mais uma dupla de estagiários, um em Curitiba e outro em Campinas. Em tempos de trabalho remoto, a localização às vezes pouco importa. Reuniões, reuniões, briefings com clientes, seleção de professores: as demandas são quase todas realizadas pela internet.
O modelo de negócios comporta três frentes. A principal são cursos livres, oferecidos em Lajeado, Curitiba, Maringá, São Paulo, Campinas, Belo Horizonte e Fortaleza, com valores variáveis entre R$ 640 e R$ 850 por cada módulo de 16 horas (que pode ser cursado de forma avulsa ou combinado numa trilha de aprendizado de seis ou sete módulos). Em geral, um curso é oferecido por mês em cada cidade — dois, no caso de Campinas e São Paulo.
As outras frentes são os programas de treinamento “in company”, projetados de acordo com os objetivos de cada empresa; e a consultoria em assuntos regulatórios de alimentos, implantação de sistemas da qualidade, gestão de pesquisa e desenvolvimento, workshops de inovação e desenvolvimento de produtos. Entre os clientes PJ estão IFF, Ingredion, Docile, Super Nosso, Duas Rodas, Bem Brasil, Amêndoas do Brasil, MatPrim e Resibras.
Em 2017, a Tacta faturou R$ 350 mil. A cifra mais do que dobrou no ano passado, atingindo R$ 877 mil, sendo que 80% vêm dos cursos livres. O salto é atribuído pelos sócios ao crescimento do número de formações oferecidas (de três turmas em 2017 para sete em 2018), à ampliação das turmas, que variam entre 15 e 27 alunos, e também à consolidação da empresa no segmento de educação corporativa, que responde por 20% do faturamento.
Desde 2016, cerca de mil alunos já passaram por cursos como “Food Safety”, “Qualidade”, “Rotulagem de Alimentos”, “Legislação, Regulatórios, Inovação, Marketing e Vendas, Segurança e Negócios. As turmas incluem gente que trabalha em diversas áreas da indústria de alimentos: legislação, gestão, processos… Segundo Cristina, também há donos de pequenas e médias empresas sem qualificação técnica no segmento.
A ESCOLA POTENCIALIZA O NETWORKING, QUE GERA NOVAS IDEIAS DE CURSOS
As possibilidades de networking geradas pelo curso são apontadas pelos empreendedores como um dos benefícios. “Temos grupos de WhatsApp bastante ativos com os alunos e ex-alunos que continuam recebendo conteúdos a respeito de inovação e qualidade de alimentos buscam informações, vagas de emprego…”, diz Cristina.
Esse relacionamento também costuma ser intensificado presencialmente, em encontros avulsos ou em eventos como Food Ingredients South America (a próxima edição ocorre entre os dias 20 e 22 deste mês, no Transamerica Expo Center, em São Paulo). O contato constante com alunos e ex-alunos ajuda a escola a identificar demandas de novos cursos. Segundo Cristina:
“Nossa rede continuamente nos alimenta de ideias, dúvidas e pedidos. Acredito que a grande sacada foi compreender bem este mercado, perceber suas lacunas e movimentações e atuar em cima disso”
A Tacta possui um mailing de mais de 10 mil nomes para divulgação de cursos e informações do setor, além de perfis no Facebook, Instagram, Linkedin e Youtube. Empreender tem sido um grande aprendizado — inclusive de marketing digital, gestão da marca e criação de conteúdo. “Tudo o que fazemos hoje, aprendemos sozinhos, observando, lendo e testando”, diz Cristina.
A escola ainda ambiciona chegar às regiões Centro-Oeste e Norte do país, hoje descobertas pela empresa, e quem sabe se internacionalizar. A dupla chegou a cogitar o caminho dos cursos online, mas por ora esse plano está na gaveta.
“Sofremos um pouco com a tecnologia. Esperávamos escalonar os serviços com um projeto de Educação a Distância, porém a complexidade do negócio e o fato de trabalharmos sem investimentos externos fazem com que nossas ideias andem com um pouco menos de velocidade”, diz Cristina.
Como diz o ditado, “devagar se chega longe”. Com uma sócia no Sul e um sócio no Nordeste, distância não é problema.
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