por Startup da Real
Tudo não passava de uma brincadeira. Abri o site do Twitter, fiz uma conta usando um nome que soava agradável e desenhei uma piadinha no Photoshop. Minha ideia era fazer algumas postagens iniciais e irritar um amigo que sempre me mandava mensagens motivacionais de empreendedores. Imaginei que depois de alguns dias o perfil seria esquecido, que logo me afogaria nas atividades comuns do meu dia a dia e deixaria a brincadeira morrer.
Mas não morreu.
Foi assim que surgiu o @startupdareal, um perfil criado para fazer piadas e apontar comportamentos nocivos no mundo do empreendedorismo. É interessante explicar como surgiu, porque este acidental crescimento do perfil é sintoma de uma condição muito maior.
Faz pouco mais de uma década que o empreendedorismo voltou ao país de roupa nova. Não era mais o discurso engessado dos senhores de terno e gravata. Não trazia a mensagem do sucesso de carreira e nem da disciplina rígida. Essa nova forma de fazer negócio dialogava com os jovens e agradava os rebeldes.
Para quem se via num sistema educacional engessado e sem a mínima vontade seguir adiante, o empreendedorismo de startups prometia um sucesso estrondoso. Essa nova roupagem desconstruiu a ideia de que negócios e empresas eram coisas chatas e atribuiu aos empresários status similares ao dos grandes astros do rock.
O jovem agora não quer mais ser como o vocalista do Metallica, quer ser o novo Elon Musk. Mas a construção de uma nova fantasia de sucesso não surge sem deixar seu dano.
A vida do rockstar pode ser incrível, mas ninguém costuma contar a história de todos os outros que tentaram a fama e acabaram sem nada pelo caminho
No mesmo ritmo, muita gente assume riscos gigantescos ao comprar a narrativa do sucesso fácil. Pior ainda, o desejo de ser o novo bilionário das startups criou um grande mercado disposto a oferecer cursos, livros, palestras e toda uma liturgia produzida para lucrar alto com a esperança de quem foi seduzido pelo sonho de ser um empreendedor bilionário.
Quando transformado em produto, o empreendedorismo é vendido para o público projetando três grandes benefícios: a possibilidade de enriquecer, a felicidade de uma vida autônoma (sem chefes te dizendo o que fazer) e o desejo do sucesso e reconhecimento público por uma realização grandiosa. Estes fortes desejos são comuns e servem como isca para encantar multidões.
O segredo para o convencimento é simples, basta escolher os exemplos de sucesso mais fortes e apresentá-los como se fossem uma regra comum, escondendo todos os detalhes que possam desencorajar os interessados. Depois é só atribuir ao indivíduo a culpa de qualquer dificuldade apresentada
Nasceu pobre? Não está se esforçando direito. Não funcionou com você? Não tentou de verdade. Precisa trabalhar para pagar as contas? Pare de pensar pequeno. Para cada dificuldade real, existe uma forma de culpar a pessoa por suas próprias mazelas.
É assim que o @startupdareal ganhou atenção e conquistou pessoas que vinham sendo massacradas por esse modelo de discurso. Pessoas que vinham recolhendo os prejuízos de acreditar nessa fantasia encontraram um refúgio onde entendiam o seu sofrimento. Utilizando estatísticas e pesquisas científicas, o trabalho do perfil é mostrar que o cenário do empreendedorismo é bem mais difícil do que fazem parecer.
Empreendedores, por exemplo, não são mais ricos que as pessoas comuns. Segundo a Global Entrepreneurship Monitor, 71% dos empreendedores declararam que sua renda familiar é de até três salários mínimos. Apenas 1,65% estão na faixa acima de dos 8.433 mil reais.
A ideia da felicidade através do empreendedorismo também é um grande exagero. As dificuldades financeiras de sustentar uma empresa, a quantidade de preocupações adicionais e rotinas intensas para que tudo aconteça faz os empresários se isolarem das famílias e não cultivarem suas necessidades mais básicas. O índice de depressão e problemas da saúde mental são altíssimos entre empreendedores.
E óbvio, conquistar sucesso e reconhecimento neste meio tão competitivo é ainda mais difícil.
As pessoas precisam entender que não são inferiores ou perdedores por tentar e não conseguir. Empreender não é o único caminho para felicidade e uma boa condição de vida. A vida é mais complicada e menos preto no branco do que parece.
Cada negócio tem uma realidade e cada vida tem uma história e uma forma de ser vivida. Cada um pode encontrar a felicidade nas mais diversas atividades. Em Este livro não vai te deixar rico (Editora Planeta), me dediquei a discutir ideias distorcidas sobre empreendedorismo. O livro está sendo lançado pela Editora Planeta e distribuído em todas as grandes livrarias. Compartilho com vocês, com exclusividade, o capítulo 3, que fala da tal establidade:
Um discurso bem comum em páginas de empreendedorismo é o papo de que estabilidade não existe. A narrativa é traiçoeira. Soa contundente para quem bate ponto às 8 horas da manhã e escolhe qual boleto vai deixar de pagar no fim do mês. O medo de perder o sustento é verdadeiro e, por esse único motivo, trata- se de um ponto muito atacado por quem tenta vender empreendedorismo – conceito importante de se ter em mente, assim como a noção de montar um negócio como se fosse um simples produto.
Todo bom vendedor sabe de cor as objeções de seus clientes, treinando e desenvolvendo argumentos para convencer os interessados de que a compra é uma boa escolha e de que seus medos são injustificados. É com essa mentalidade que entra o ataque à ideia de estabilidade. Para quem vende empreendedorismo, o maior inimigo da venda é o medo que os clientes têm de ficar sem emprego. Não pagar as contas e deixar a família em condições difíceis.
O discurso segue convincente. Notícias de que o desemprego está em alta e servidores públicos sendo exonerados são compartilhadas como corpos de inimigos em campos de batalha. “Vejam como estou certo, estabilidade não existe!”, afirma em tom enérgico o rapaz de camisa Dudalina e Rolex cromado enquanto passeia de carro por alguma cidade da Flórida.
Para o olhar desatento, a afirmação parece verdadeira: se pessoas que trabalharam anos em empresas são demitidas e servidores que fizeram concurso podem ser exonerados, essa tal estabilidade não deve existir mesmo.
O mundo, porém, não é tão preto e branco.
Esse tipo de argumentação utilizada por vendedores de empreendedorismo já é bem conhecido, sendo frequentemente encontrada em debates políticos.
É o conhecido falso dilema, uma falácia lógica que estabelece pontos de vista como opostos excludentes, sem apresentar um meio -termo ou definir nuances que possam permitir uma opinião parcial sobre o assunto. O objetivo é estabelecer a situação como certa ou errada, como quem diz: “Se eu provo que um ponto está errado, obviamente minha visão é a única certa”.
Sendo assim, se estabilidade não existe, você precisa empreender. A distorção aqui é criar a falsa impressão de oito ou oitenta, eliminando qualquer possibilidade entre estabilidade e caos absoluto
É claro que a possibilidade de perder o emprego sempre existe, mas é inegável o fato de que há empregos mais seguros que outros. Estabilidade não é uma condição binária, mas uma escala que pode variar entre muito arriscado e muito seguro.
Um analista judiciário concursado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que não cometeu nenhuma ilegalidade tem chances muito menores – estatisticamente nulas – de perder o emprego do que o garçom que trabalha no restaurante japonês da esquina ou até mesmo um analista de sistemas terceirizado em alguma telecom.
Da mesma forma, qualquer um em regime CLT tem chances menores de ficar sem pagar as contas do mês do que alguém que decide abrir uma empresa. Principalmente gente com pouco potencial de investimento e que conta só com o próprio dinheiro.
EXISTE ESTABILIDADE?
Para uma pessoa comum que trabalha das 8 horas da manhã às 6 da tarde, regula o dinheiro para chegar ao fim do mês e tem dificuldades de depositar 5% do salário para ter uma poupança quando a filha precisar fazer um tratamento de canal, essas nuances no risco de cada atividade são cruciais. E fazem toda a diferença na hora de decidir que caminho tomar.
Uma empresa demora em dar lucro. Qualquer negócio, por mais simples que seja, não retorna os investimentos rapidamente – considerando, é claro, quem tem dinheiro para investir – e só depois de certo tempo começa a virar a balança.
Negócios em fase inicial têm muito mais chances de falir do que um empregado com trabalho formal tem de perder seu emprego. Um discurso de vendas destinado a desmerecer o medo e a insegurança, convencendo pessoas a abandonarem empregos e assumir riscos dessa dimensão, é perigoso, quando não, imoral.
Qualquer um que fale sobre empreendedorismo deve focar em quão arriscado é o processo e no tamanho das chances de não dar certo. Não o oposto. É preciso ser extremamente realista ao assumir riscos.
Não deve existir espaço para ações impulsivas.
Nem todo mundo nasceu para empreender. Começar um negócio é arriscado e existem diferentes níveis de risco para conquistar a estabilidade de cada estilo de vida
É aceitável, e até positivo, encorajar o interesse de quem deseja empreender e aprender mais sobre o assunto. No entanto, tratar empreendedorismo como um produto, apoiando a venda com argumentos que enganam a percepção das pessoas, pode destruir vidas.
No fim, quando o empreendedor falido que vendeu carro, usou suas economias e tem de seguir pagando contas precisar de ajuda, quem o convenceu a assumir tamanho risco não estará lá para socorrê -lo.
Startup da Real é um perfil anônimo do Twitter sobre startup e empreendedorismo, com um alcance mensal de quase 10 milhões de usuários. Sua missão é revelar as falhas do mundo “startupeiro”. Hoje, também é uma das plataformas mais lidas do Medium, tendo alcançado a marca de Top Writer na categoria Startup.
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