“Eu achava que nunca ia conseguir melhorar a minha casa”, diz Terezinha Cunha de Oliveira, 59, diarista, cuidadora e moradora de Cristo Redentor, bairro de ruas de terra em Campo Grande (MS). “Já perdi muito tempo e dinheiro com pedreiro e nunca tive um bom resultado.” A realidade dela é a mesma de muita gente que vivem na periferia. Sem assistência técnica e planejamento, as pessoas acabam gastando mais dinheiro em reformas de baixa qualidade.
Para Terezinha, porém, essa realidade ficou um pouco mais fácil. Neste ano, ela conseguiu aumentar o pé-direito para deixar a casa mais fresca, trocou o portão, levantou o muro, instalou calhas em todo o imóvel e terminou um banheiro que estava sem acabamento. A obra foi possível com preços acessíveis e o parcelamento oferecido pela Digna Engenharia Social. À frente da empresa está a engenheira civil Evelin Mello, 25:
“No mercado da engenharia civil, é difícil [encontrar] quem queira trabalhar com pequenas reformas. Decidi fazer isso porque é um produto que posso escalar e com o qual eu levo dignidade para a vida de pessoas para as quais ninguém olha”
Em 2019, a Digna já executou 25 reformas e tem 12 contratos fechados. O faturamento nos seis primeiros meses do ano foi de R$ 103 mil. Segundo Evelin, mesmo com atrasos, o índice de inadimplência é quase zero. Muitas vezes, os clientes entram em contato para dizer que não vão conseguir pagar no dia certo, mas afirmam que vão pagar. E pagam.
UM SISTEMA DE COMBOS FACILITA A CONTRATAÇÃO E LOGÍSTICA DO TRABALHO
O foco da Digna são as pequenas reformas, sempre atuando em bairros pobres da capital sul-mato-grossense, como Caiobá, Los Angeles, Nova Lima, Aero Rancho e Jardim Aeroporto. Evelin criou um sistema de combos para facilitar a contratação e a logística do trabalho (semelhante ao do Programa Vivenda, que já foi pauta aqui no Draft). Os kits Cozinha, Sala, Banheiro e Varanda incluem a mão de obra e o material; o cliente pode escolher entre algumas opções de acabamento. O preço varia entre R$ 3 mil e R$ 7 mil.
“Como esse público não tem um valor muito alto para dar de entrada, o mais comum é reformar um cômodo por vez”, diz, explicando por que criou os kits. Para evitar, porém, que o modelo limite o trabalho, ela ouve as necessidades de cada um. Há a possibilidade de se personalizar o projeto, com o preço sendo reajustado conforme as especificações do cliente.
As reformas podem ser parceladas em até 12 vezes no boleto ou 36 vezes com uma financiadora parceira. Uma vez fechado o contrato, o serviço inclui mão de obra, gestão e até a limpeza final do espaço. Evelin afirma que acompanha os projetos de perto, o que ajuda não só a garantir a qualidade do resultado, mas a dar tranquilidade para a cliente. Terezinha, por exemplo, deixava a chave de casa com a engenheira para que os pedreiros pudessem fazer a obra em sua ausência.
UM SERVIÇO MAL FEITO POR UM PEDREIRO FOI A INSPIRAÇÃO PARA EMPREENDER
Evelin diz que na infância sonhava em ser médica, policial ou bombeira. “Acabei entrando na Engenharia e percebi que também ajudo o próximo porque permito às pessoas ter uma habitação saudável.”
A ideia da Digna surgiu ao olhar para a realidade do seu próprio bairro. Ela lembra de quando seu pai contratou um pedreiro para fazer uma obra na caixa de gordura. Menos de um ano depois, foi preciso refazer o serviço.
“Como ele não tinha mais dinheiro, precisou fazer um empréstimo. Achei um desrespeito aquela obra ter tão pouca qualidade e pensei em como poderia ajudar as pessoas a não passar por isso”
O “combustível” da empreendedora é sua filha Maria Luiza, de 5 anos. A menina nasceu quando Evelin cursava o quinto semestre da faculdade de Engenharia Civil — dez dias após o parto, a jovem retomou as aulas. “Se eu parasse, não voltaria mais. E sabia que aquele diploma me ajudaria a dar uma vida melhor para ela.”
Em 2017, durante um estágio no Grupo CCR, Evelin foi apresentada pelo seu então chefe, Vitor Gustavo Amstalden, ao conceito de Negócios Sociais. “Ele me mostrou que era possível ajudar as pessoas sem ser uma ONG e ainda ganhar dinheiro com isso.”
Já envolvida em pesquisas para criar a Digna, a jovem fez um TCC sobre “Adoção de técnicas alternativas para comunidade em situação de risco”, enfocando a necessidade de criar oportunidades na habitação para a população de baixa renda.
O MACHISMO DE UM CLIENTE LEVOU EVELIN A RESCINDIR UM CONTRATO
Evelin começou a operar a empresa em 2018, ano de sua formatura. No primeiro projeto, a reforma de uma varanda no Jardim Morenão (bairro onde ela vive), usou o dinheiro da entrada da obra para pagar os pedreiros e parcelou os R$ 2 500 gastos com material no cartão de crédito do pai.
Nesse início, aliás, ela teve de enfrentar percalços e arcar com alguns prejuízos, gastando dinheiro do próprio bolso na compra de materiais:
“Na faculdade você não aprende a fazer orçamento e calcular material. Também era muito complicado conversar com os pedreiros porque existe um muro entre eles e os engenheiros”.
O lucro obtido naquela primeira obra foi investido no trabalho seguinte. E ao longo dos meses, a jovem foi ganhando experiência e aprendendo a desenvolver uma relação mais próxima com os profissionais contratados:
“Entendi que os pedreiros tinham aquele comportamento grosso porque estavam acostumados a lidar com engenheiros que preferiam manter distância deles. E propus que jogássemos no mesmo time — eu precisava deles e eles, de mim”
Na lida com os clientes, o desafio é o machismo. Evelin diz que já rescindiu um contrato porque o cliente abusava da falta de educação e de comentários como “nunca vi mulher trabalhar nessa área” e “vocês [mulheres] não sabem a coisa certa”.
“Não podemos ter medo desse tipo de comportamento. Pelas minhas regras, se o cliente me desrespeitar, eu rescindo mesmo.”
SELECIONADA PELA ARTEMISIA, ELA VENDEU LANCHES PARA CUSTEAR A VIAGEM
Em 2018, Evelin deixou Campo Grande para participar do Lab Habitação: Inovação e Moradia, uma aceleração de curto prazo da Artemisia — em parceria com Gerdau, Instituto Vedacit, Tigre, Votorantim Cimentos, Caixa Econômica Federal e CAU/BR (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil) — para potencializar negócios de impacto social com soluções inovadoras no setor de habitação. A Digna foi uma das 14 selecionadas, entre 370 inscritos.
“A Evelin estudou a adoção de técnicas alternativas para pessoas em situação de risco e criou uma empresa que dialoga com uma das oportunidades para gerar impacto positivo dentro do setor da habitação que mapeamos em nossa Tese de Impacto Social em Habitação”, afirma Priscila Martins, gerente de Relações Institucionais da Artemisia. “Essa oportunidade fala da importância de existir soluções que possibilitem o acesso a reformas habitacionais e assistência técnica de forma acessível e qualificada.”
Sem dinheiro para custear a viagem até São Paulo, a empreendedora mobilizou a comunidade do Jardim Morenão, conseguiu vender 120 lanches e arrecadar R$ 1 200 reais. “E ainda teve gente que me ajudou doando dinheiro. No final, consegui 3 mil reais para fazer a viagem”, diz Evelin.
Nesta aceleração, os empreendedores eram estimulados ao autodesafio. Evelin se propôs a fechar, em apenas cinco semanas, dez contratos – o mesmo volume que tinha conseguido em sete meses. Ao fim do processo, ela bateu sua própria meta, totalizando 12 contratos novos.
O FUTURO ESTÁ EM FRANQUIAS E NA CONSTRUÇÃO DE HABITAÇÕES SOCIAIS
Escolhida como um dos três destaques do Lab Habitação, a Digna teve acesso a um capital semente de R$ 10 mil, usado para organizar a contabilidade, o escritório e quitar algumas dívidas. Além disso, a empresa teve acesso a uma mentoria online com representantes dos parceiros do programa.
Agora, Evelin quer ajudar outras mulheres a levarem suas habilidades para o ramo da construção civil e está montando oficinas para capacitar mulheres na área de acabamento. Essa mão de obra será aproveitada pela Digna nas reformas. “A mulher é mais delicada e cuidadosa com os detalhes, então quero vê-las trabalhando mais nessa área.”
Além disso, ela tem dois planos traçados para a Digna. Um deles é escalar a empresa por meio de um sistema de franquias que seja acessível a recém-formados:
“O engenheiro sai da faculdade muito ‘cru’. Com a nossa assessoria e um manual de como seguir a obra, ele não vai ter tanta dificuldade”
O projeto ainda está em fase embrionária, mas Evelin já tem se dedicado a ele, principalmente na criação do manual que dará a base aos franqueados. A outra ideia tem a ver com um sonho maior e mais ambicioso: construir habitações com custo acessível para pessoas em situação de extrema vulnerabilidade.
“Quero dar a chance de ter um lugar digno para morar a quem vive na rua ou em barracos na beira da estrada”.
Desconstruir mitos e fórmulas prontas, falando a língua de quem vive na periferia: a Escola de desNegócio aposta nessa pegada para alavancar pequenos empreendedores de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo.
A Diáspora.Black nasceu com foco no turismo como ferramenta antirracista. A empresa sobreviveu à pandemia e às dívidas, diversificou o portfólio com treinamentos corporativos e fatura milhões sem perder de vista sua missão.
O chef Edson Leite e a educadora Adélia Rodrigues tocam o Da Quebrada, um restaurante-escola na Vila Madalena que serve receitas veganas com orgânicos de pequenos produtores e capacita mulheres da periferia para trabalhar na gastronomia.