Badulaque, segundo o Houaiss, é coisa miúda, de pouco valor. Ariane Santos, 40, gostava da sonoridade da palavra, mas não do significado — daí a decisão de reduzi-la ao batizar sua Badu Design.
“Badulaques” era como os colegas de faculdade se referiam, de maneira genérica, à decoração caprichada das agendas e cadernos de Ariane, que customizava os objetos. A Badu Design começou assim, em 2013, como um ateliê dentro de casa para confecção manual de artigos de papelaria. Hoje, a empresa produz desde cadernos e agendas a bolsas, mochilas e brindes corporativos, sempre com tecidos reaproveitados, engajando e capacitando uma rede de mulheres de baixa renda.
Antes de empreender, Ariane largou o curso de Administração na Universidade Federal do Paraná no último período; deixou também o cargo de coordenadora de marketing em uma empresa de embalagens. Naquele momento, sua prioridade era outra: cuidar da avó doente. As duas eram muito ligadas e a avó, uma presença forte e dinâmica na família. Devido a complicações do diabetes, porém, sua saúde foi se debilitando progressivamente. Quando ela morreu, a neta entrou em depressão.
O hobby de juventude, customizar agendas e cadernos, acabou sendo a forma de afastar o desânimo e abraçar um novo caminho profissional.
“Estava há muito tempo fora do mercado e tinha apenas trinta reais na conta, mas me lembrei do quanto sempre fui empreendedora. Peguei minha caixinha de retalhos, comprei o material que faltava e produzi dez agendas customizadas com capa de tecido, como costumava fazer na faculdade”
Junto com seus primeiros produtos, tratou de definir o nome, logomarca e o CNPJ do seu novo negócio. E ao levar as agendas a uma papelaria para deixá-las à venda em consignação, ouviu da proprietária uma frase que segue ressoando em seu trabalho. “Ela disse: ‘Que coisa mais linda. Quando alguém cria algo assim, dá para ver a alma da pessoa’. E realmente acredito que a arte pode fazer isso”, conta.
A DESCOBERTA DOS RESÍDUOS TÊXTEIS COMO MATÉRIA-PRIMA SUSTENTÁVEL
Em menos de uma semana as dez agendas foram vendidas e surgiu até uma lista de espera. A repercussão animou Ariane. Selecionada pelo Sebrae-PR para participar do SouCuritiba (projeto de economia criativa que estimula o desenvolvimento de suvenires ligados à cidade), ela deu conta de atender sozinha um pedido de mil porta-blocos auto-adesivos e marcadores de página. Seu trabalho foi divulgado na TV e Ariane começou a receber e-mails de gente que queria trabalhar em sua empresa. “Mas meu ateliê ainda ficava no meu quarto!”
Esse interesse a fez perceber que podia ajudar a transformar a vida de outras pessoas. Lembrou das mulheres que encontrava no hospital, quando cuidava da avó, e que não tinham dinheiro nem mesmo para ir para casa tomar um banho. “Elas passavam o dia inteiro lá, ao lado de uma cama, sem conseguir fazer nada. Decidi então que desenvolveria algo que elas poderiam produzir de maneira manual, em qualquer lugar.”
Ariane começou assim a formar uma rede que contava, então, com dez mulheres, que aprendiam com ela e levavam para casa os moldes para produzirem artigos de papelaria e brindes corporativos. Depois, a empreendedora vendia esses itens e remunerava as colaboradoras. Os encontros entre elas eram uma oportunidade de trocar experiências para crescerem juntas.
“Acredito que ninguém empodera ninguém. Mas ao reconectar as pessoas através da arte, do design e do empreendedorismo, tornamos possível que o empoderamento aconteça em cada um”
Uma das mulheres do grupo começou a trazer restos de tecidos que coletava com uma costureira, impressionando Ariane pelo volume. “Se uma profissional gerava tanto resíduo, imagina a indústria!”, conta. Quando descobriu que o mercado têxtil brasileiro gera 170 mil toneladas de resíduos por ano, a empreendedora decidiu que trabalhariam apenas com essa matéria-prima descartada.
Hoje, a Badu recebe resíduos têxteis de empresas parceiras. Após uma triagem, materiais como lençóis, uniformes, cintos de segurança e revestimentos de bancos de automóveis são higienizados, recortados, remodelados e, pelas mãos das artesãs, transformam-se em mochilas, bolsas, nécessaires, entre outros produtos.
CAPACITAR MULHERES DE BAIXA RENDA VIROU UMA FRENTE DE ATUAÇÃO EM SI
Em 2016, surgiu um contratempo. A máquina a laser usada para a personalização de brindes quebrou; como não havia tempo nem recursos para consertá-la, a produção para atender aos pedidos dos clientes teve de ser feita de forma totalmente artesanal, encarecendo o custo. O prejuízo levou Ariane a repensar a operação. “Expliquei às mulheres que precisava encontrar um formato de trabalho que não nos deixasse tão vulneráveis e que logo voltaria a acioná-las.”
Por sorte, o período difícil coincidiu com a participação no programa de capacitação e aceleração do Instituto Legado, na capital paranaense, que previa desafios a serem encarados em conjunto por ONGs e empreendimentos de impacto. Assim, a Badu criou um projeto de apoio a mães de crianças com autismo junto com a Aampara (Associação de Atendimento e Apoio ao Autista), desenvolvendo uma coleção de colares produzidos com sobras de tecido de malha. E, com a Lynion, desenhou outro projeto para capacitar refugiados em trabalhos manuais e inseri-los no mercado.
Foram projetos com começo, meio e fim. Após os oito meses do programa, Ariane havia impactado 51 pessoas, recebido 10 mil reais para investir na Badu Design e descoberto uma nova frente de atuação para sua empresa: capacitação.
Assim, esse trabalho culminou, em 2017, com uma parceria com a Aliança Empreendedora no projeto Costurando o Futuro, que capacita mulheres de baixa renda em costura, design e empreendedorismo. A Badu passou a oferecer para centenas de mulheres do Paraná workshops com uma metodologia própria, que contempla todo o processo de criação de uma coleção de moda, com uma linguagem acessível.
Mais de 400 mulheres já foram capacitadas pela Badu no escopo do projeto Costurando o Futuro. Metade delas vive em cidades com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) na região metropolitana de Curitiba; outras 200 mulheres são moradoras de dez cidades na região de Francisco Beltrão, no sudoeste do estado.
“A intenção é dar a essas pessoas condições de fazerem algo por si próprias. Cada uma delas, ao ser capacitada, pode passar a colaborar com a rede ou seguir seu próprio caminho com o que aprendeu. Todas são autônomas e incentivadas a empreender”
Atualmente, cerca de 60 mulheres produzem para a Badu; o número varia conforme a demanda. Paralelamente às capacitações, a empresa segue produzindo coleções sazonais e brindes corporativos, elaborados a partir dos resíduos que recebem. Não há portfólio fixo: o material disponível é o ponto de partida para a criação das peças.
PRIMEIRA VENDA PARA O EXTERIOR E A CONQUISTA DA “CASA PRÓPRIA”
Nos últimos anos, a empresa ganhou reconhecimentos de iniciativas de incentivo a empreendimentos sociais, como o concurso Hora de Brilhar, da Unilever, e o Prêmio Acolher, da Natura. Ariane também participou do Red Bull Amaphiko Academy, que dá mentorias e ferramentas a empreendedores de impacto. Por meio do programa, a Badu fez sua primeira exportação, produzindo artigos para um evento na Áustria que receberia diretores da Red Bull de diversos países.
Em 2018, enfim, o negócio ganhou sua “casa própria”. O local escolhido foi um prédio detonado no centro de Curitiba, com terreno amplo e área verde. Ariane alugou o imóvel e organizou um mutirão para recuperá-lo. A sede da Badu abriga um espaço maker para artes manuais, com máquinas, ferramentas e materiais para quem quiser produzir desde um bordado até projetos de marcenaria, pagando por hora. Há ainda uma programação de oficinas e a loja onde são vendidos os produtos da marca (uma shoulder bag, por exemplo, custa 120 reais), que em breve devem estar disponíveis em um e-commerce próprio.
“Queremos ser uma referência em design sustentável e acessível, com produtos bonitos, duráveis, úteis e que, além de tudo, contam uma história e remuneram bem suas produtoras”, explica Ariane, que acredita no poder transformador da simplicidade. “Às vezes olhamos a inovação como algo muito distante do que as pessoas na ponta realmente precisam. E é sendo ‘gente como a gente’, com sensibilidade, que continuamos empreendendo na Badu — sem perder a inspiração.”
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