por Luciano Mallmann
Eu sempre fui ator desde que me conheço por gente. Nasci em Cachoeira do Sul (RS) e já criança participava das peças de teatro da escola. Quando tinha uma apresentação artística, lá estava eu metido.
Depois de terminar o colégio, fui morar em Porto Alegre para cursar Publicidade e Propaganda. Nessa época, não imaginava e nem acreditava que atuar poderia ser minha profissão. Na capital gaúcha, comecei a gravar comercias de TV e logo em seguida a fazer teatro profissional.
Com 25 anos, decidi me mudar para o Rio de Janeiro para me dedicar à profissão de ator. Acabei ficando lá por oito anos e, nos últimos, comecei a trabalhar com dança e acrobacia aérea de circo, no caso, com tecido.
Passei a dar aulas de acrobacia aérea, a fazer vários trabalhos como acrobata e meu maior objetivo era viajar para fora do Brasil e viver disso.
Infelizmente, em um treino, acabei me acidentando e sofrendo uma lesão medular
Pela forma como caí, o colchão de segurança não foi suficiente para me salvar. Eu nem estava em uma altura muito alta, eram uns quatro metros no máximo, mas caí de ponta-cabeça e bati com a cervical. A partir daquele dia passei a usar cadeira de rodas. Isso tem 15 anos.
Uma lesão medular para quem não sabe direito o que é, como o próprio nome diz, é uma lesão na medula — um filete de células nervosas que passam por dentro da nossa coluna vertebral e por onde o cérebro envia todos os comandos para o resto do corpo. As células da medula não se regeneram, ou seja, no momento que a medula é lesionada, o caminho fica interrompido e essa troca de informações entre o cérebro e o corpo não acontece mais.
Minha cirurgia durou oito horas, fiquei em coma induzido por dez dias e fiz reabilitação no Centro Internacional de Neurociências e Reabilitação SARAH, em Brasília, durante seis meses.
Voltei a morar em Porto Alegre porque estaria mais perto da família para me dar apoio e tinha decidido que agora voltaria a trabalhar como publicitário
Já tinha muito claro que não queria mais atuar. Me recusava a trabalhar com algo em que antes eu tinha todas as possibilidades do meu corpo à disposição e, agora, estava limitado
E isso foi uma decisão bem natural, completamente de boa. Acabei voltando para a publicidade. Depois de um tempo, um belo dia, me chamaram para fazer uma participação como ator em uma novela de Manoel Carlos, em que a atriz Aline Moraes fazia uma menina tetraplégica.
Era uma cena muito pequena em que eu contracenaria com ela. Fui e voltei para o Rio no mesmo dia. Só que mesmo sendo uma participação pequena, me dei conta de como realmente eu adorava fazer aquilo. Voltei de lá com vontade de trabalhar com isso de novo. Essa vontade foi aumentando e se tornou uma necessidade.
Tinha consciência que agora seria mais difícil ser chamado para algum trabalho como ator, teria que ser um job bem específico. E foi então que decidi não esperar por isso e produzir algo: ser empreendedor de algum projeto.
Acabei produzindo em 2011 um texto de Nelson Rodrigues, chamado a Mulher Sem Pecado. Reuni um pessoal bacana e por esta montagem recebemos vários prêmios, inclusive, de produção. Terminou a temporada da peça e eu voltei a trabalhar com publicidade. Em 2016, estava só trabalhando como freelancer, não tinha um emprego fixo e estava com bastante tempo livre.
Resolvi me tornar voluntário na AACD na área de recreação infantil. Ficava uma tarde na semana com as crianças inventando brincadeiras, desenhando, contando histórias
Esse trabalho era um prazer gigante, eu sempre saía de lá feliz da vida. E, aos pouquinhos, a vontade de trabalhar com arte voltou com tudo de novo.
Comecei a escrever textos já pensando em teatro e tudo o que eu escrevia era no formato de depoimentos ficcionais de pessoas que estão na cadeira de rodas por terem sofrido uma lesão medular, como eu. O texto foi baseado nas minhas experiências desde que eu me acidentei e inspirado em pessoas que conheci ao longo desses anos. Ou seja, misturo minha história com a desses personagens.
A medida que eu ia escrevendo, mostrava meu trabalho e fazia leitura para amigos, que gostavam e botavam pilha para eu realmente seguir em frente e montar um espetáculo.
Foi assim que nasceu ÍCARO (na mitologia grega, Ícaro fugiu do Labirinto do Minotauro, em Creta, com asas feitas de cera, mas ao chegar muito perto do sol as asas derreteram e ele morreu ao cair no mar Egeu).
O espetáculo estreou em março de 2017, em Porto Alegre, dirigido por Liane Venturella, e venho apresentando o monólogo até hoje. Já fiz mais de 100 apresentações pelo Brasil: festivais de teatro, temporadas em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, apresentações em escolas, universidades, órgãos públicos e empresas.
ÍCARO aborda temas que são comuns a todos: relacionamentos humanos, gravidez, resiliência, limitações de cada um. E dessa forma, venho percebendo que acontece uma identificação muito grande da plateia, o que acaba contribuindo para a transformação do olhar de grande parte das pessoas a respeito da deficiência.
O que adianta termos uma legislação que nos assegura de tudo que é lado (mas muitas vezes não cumprida) e estarmos integradas socialmente se o olhar de grande parte das pessoas ainda é de estranheza e preconceito cada vez que vê alguém com deficiência?
Construir rampas, ter consciência em não estacionar em locais reservados para cadeirantes é o básico, algo que tinha que acontecer sem a gente ficar lembrando e reivindicando esses direitos. O que é tão fundamental quanto isso é não esquecer que antes da deficiência existe uma pessoa que também tem uma vida, independente de qualquer fato. Uma pessoa que se relaciona, que tem pai, mãe, que se apaixona, que transa, que tem seus altos e baixos, que ri que chora, que tem sonhos, como qualquer outra.
Por exemplo, muitas pessoas olham para mim na rua e me cumprimentam sem me conhecer. Cansei de ouvir: “Tão bonito e de cadeira de rodas, ou volta e meia me dão aquele sorrisinho que sei, no fundo, estão com pena. Agora, pergunto: Quem garante que eu não sou muito mais feliz que elas?
Na verdade, eu estou falando isso, mas não acredito que felicidade (assim como sofrimento) possam ser medidos e comparados. São sentimentos subjetivos
Cada um dá aos seus problemas o peso que consegue. Aconteceu algo trágico na minha vida, eu precisei superar isso e, de certa forma, me reinventar. Mas quem garante que o sofrimento que tive foi maior ou menor que a superação que todos vocês possam ter tido em determinado momento da vida?
Outra questão é que esse sentimento de pena que vem junto com esses sorrisinhos varia com o elogio de herói. Sempre acontece de chegarem para mim e me darem parabéns, dizerem que eu sou um exemplo de vida, uma inspiração.
Uma vez no avião, na hora do desembarque, eu estava, como sempre, esperando todos descerem na minha frente e um senhor passou por mim, agarrou meu braço e disse: “Você é um vencedor”. Eu agradeci, claro, porque a forma que ele me abordou foi muito simpática. Ele saiu e enquanto esperava todo mundo desembarcar, fiquei pensando se realmente eu era um vencedor.
Talvez sim, porque eu estava chegando em São Paulo para participar da segunda etapa de uma seleção para um trabalho em uma agência bacana e já tinha todos os indícios de que seria selecionado. Ok, por isso eu seria um vencedor! Mas esse senhor não tinha como saber dessa informação.
Na verdade, aquele senhor estava me dando os parabéns porque ele eu usava cadeira de rodas e estava andando de avião. Mal sabe ele que no meu caso, a cadeira de rodas não é um problema, é a solução, o que me faz ir e vir, me locomover e fazer minhas coisas.
Estou há dois anos e meio apresentando ÍCARO por todo o Brasil. Este ano vou começar a apresentar também o espetáculo fora de nosso país. ÍCARO possui uma logística muito simples: é um monólogo, não tem cenário e a equipe é pequena, o que permite que ele seja apresentado em qualquer lugar.
Quando comecei a fazer teatro sempre escutei que o ator além de entreter tem a função de transformar o mundo, e me sinto muito orgulhoso e feliz de produzir este trabalho com o texto escrito por mim
Eu sabia que ÍCARO era um trabalho especial pela forma que abordo o tema, sem “coitadismos” e evidenciando o fato de que à frente de uma deficiência sempre existe uma pessoa, como qualquer outra.
Se na época que eu caminhava alguém chegasse para mim e falasse que eu iria ficar de cadeira de rodas, diria que preferia morrer. Se essa mesma pessoa me dissesse que iria me tornar cadeirante, continuar trabalhando como ator, fazer um monte de coisas boas na vida, ser feliz e ainda celebrar o dia em que me acidentei como se fosse meu segundo aniversário no ano, eu chamaria essa pessoa de doida e daria risada na cara dela.
O ser humano possui um poder de adaptação gigante e nada melhor do que o tempo para evidenciar isso
Com certeza eu ainda vou apresentar ÍCARO muitas vezes e se por acaso você ainda não assistiu, vai ser um grande prazer um dia ter você na plateia!
Luciano Mallmann, 47, iniciou sua trajetória como ator na Cia. das Índias, dirigido por Zé Adão Barbosa, em 1991. Em 1996, se mudou para o Rio de Janeiro e neste mesmo ano participou da Oficina de Atores da Rede Globo. Atuou em diversos espetáculos como Sweet Charity Pocket Show (1998), Rio’s Cabaret Musical (2000); e Sonhos de Einstein (2004). Em 2011, produziu e atuou em A Mulher Sem Pecado, de Nelson Rodrigues, indicado a todas as categorias do Prêmio Açorianos e vencedor de Melhor Produção, Melhor Cenografia, Melhor Atriz e Melhor Espetáculo Popular da RBS. Tem participação em quatro filmes e duas novelas. ÍCARO é o primeiro texto escrito por ele e recebeu o Prêmio Açorianos de Melhor Dramaturgia em 2017.
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