Transformar problemas de consumidores em dinheiro: essa é a missão da Unicainstancia, startup carioca fundada pelo engenheiro de produção Gilmar Bueno, 30 anos, e por Sara Raimundo (falecida em 2023, aos 32).
Desde 2020, quando surgiu, a empresa já comprou o direito de reclamação de cerca de 10 mil pessoas, pagando em média 400 reais por problemas que envolvem principalmente telefonia móvel, internet e aviação. Em troca, a startup fica com 100% do valor da causa, caso vença (o que, claro, não é uma certeza).
“Na Unicainstancia, dou uma solução rápida e prática, com dinheiro na mão do consumidor em até 24 horas”, diz Gilmar. “Mas se fosse só isso, eu poderia ter criado algo de apostas esportivas. O significado maior é de que a pessoa está recebendo aquilo por ter ido atrás dos direitos, não porque imaginou que o Flamengo vai ganhar.”
O segredo da agilidade, além da aposta em soluções extrajudiciais, é um algoritmo que reduz o tempo de análise de cada caso de três horas para 10 minutos e tem um índice de acerto de 70%, segundo o empreendedor.
“A gente arca com todo o ônus e fica com o bônus. Tudo que vem depois é taxa de sucesso, mas nossa ideia é fazer o cliente conseguir resolver o problema ali, imediatamente”
Cada caso, afirma Gilmar, passa por análises de risco e fraude. Embora não compre todos — em geral, o principal empecilho é a falta de documentação adequada —, a Unicainstancia, segundo o sócio, busca orientar os demais clientes para que consigam correr atrás dos seus direitos.
Com NPS 90 (e avaliação 4,8 no Google), a Unicainstancia não divulga o faturamento, mas em março deve abrir uma rodada de investimento de 1,5 milhão de reais com a expectativa de alcançar o breakeven.
Criado em uma família de servidores públicos, Gilmar começou a trabalhar aos 14 anos, dando aulas, mas teve o primeiro contato com empreendedorismo aos 17.
“Depois que começa a empreender, é difícil parar, você se vê em um lugar de potências e possibilidades”, define.
Suas empresas não tinham “nada a ver uma com a outra”: a primeira foi um marketplace de repúblicas; a segunda, uma ONG para doação de sangue; e a terceira, na área de turismo.
“Elas eram fruto de uma inquietude que me faziam pensar ‘vou tentar resolver’, mesmo sem saber direito como. Essa ignorância traz uma série de belezas, porque não sei quais problemas vou enfrentar, mas exatamente por não saber, eu tento”
No caso da Unicainstancia, essa inquietude surgiu em 2019, a partir de um problema da mãe de Gilmar com uma conta telefônica.
“Ela não estava entendendo uma conta de celular que tinha uma tarifa que ninguém sabia explicar para que era.” Na verdade, não era uma, mas duas taxas (“uma de 12 reais e outra de 24 reais”) acrescentadas sem justificativa aparente.
Gilmar diz que ligou “mais de três vezes” para a empresa, entrou em contato com a ouvidoria, buscou o Procon, registrou queixa no consumidor.gov… Até chegar ao Juizado Especial Cível, popularmente conhecido como “Pequenas Causas”.
“Você perde tempo, é burocrático. Não dá vontade de fazer isso de novo e de novo. Eu pensei: não é possível, tem que ter um jeito mais fácil”
Naquela época, Gilmar estudava engenharia de produção na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Lá, ele tinha aulas de empreendedorismo, disciplina oferecida a alunos de todos os cursos.
Suspeitando que a dor de cabeça vivida por sua mãe com aquela cobrança abusiva não era um fato isolado, Gilmar resolveu levar o problema como tema para um trabalho de grupo.
Na faculdade, uma das provocações que surgiram foi que o grupo, formado por quatro estudantes de engenharia, era pouco diverso.
Gilmar era o único negro do time, que se ressentiria também da falta de alguém do direito — uma área-chave, já que o foco ali era direito do consumidor.
Aquela, diz Gilmar, foi a primeira vez em que ele ouviu no ambiente acadêmico que a falta de diversidade impactaria negativamente no resultado de uma empresa.
“Resolvi que não iria procurar alguém do direito só para entender o passo a passo… Iria procurar uma mulher – e uma mulher preta. Se a diversidade iria impactar o resultado, tínhamos que pensar em ampla diversidade”
Foi assim que Gilmar e Sara se conheceram. Os dois se conectaram no Facebook, a partir de amigos em comum. “Ela ia me explicando e eu ia investigando.”
Com a orientação de Sara, Gilmar passou a assistir a audiências, especialmente as de pequenas causas que não têm sigilo.
“Nisso, identifiquei que o problema é muito representativo — os casos se repetiam a todo momento”
Nesse trabalho de pesquisa, ele começou a coletar informações preciosas.
“Eu conversava com a empresa ré, com o cliente lesado, com o juiz, entrevistei até policial”, diz Gilmar. “Fui entendendo como funciona, o dia a dia, quanto tempo demora, quanto custa, como o advogado cobra.”
Com as orientações de Sara, Gilmar decidiu fazer um teste e solucionar um problema do pai, também com uma conta telefônica. Dessa vez, porém, ele foi atrás de um acordo extrajudicial.
“A coisa andou muito mais rápido e aí visualizamos que tínhamos um negócio. Porque meu pai não faria tudo o que fiz, ele provavelmente pediria minha ajuda. Mas e as pessoas que não têm alguém para fazer isso?”, diz Gilmar.
O impacto social da proposta logo ficou claro.
“Sabemos que pessoas mais pobres topam prejuízo de quase um salário mínimo em vez de aceitar entrar na justiça, só porque toda jornada é mal pensada… A pessoa não vai perder um dia de trabalho para ir atrás de uma cobrança indevida, pela qual provavelmente não vai ganhar nada”
Segundo a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública de 2022, 25% da população brasileira, ou pouco mais de 50 milhões de pessoas, está à margem da Justiça e impedida de reivindicar seus direitos por intermédio da defensoria pública.
Havia aí um enorme mercado potencial. De olho nesse público, no fim de 2019, a poucos dias do Natal, Gilmar tomou coragem e decidiu que abriria a empresa. Mas não queria fazer isso sozinho:
“Falei para meus colegas ‘quem estiver a fim, vem junto’ — e nesse sentido foi muito bom ter encontrado a Sara, porque ela foi a única que topou.”
Os dois passaram o início de 2020 testando e experimentando a tese da Unicainstancia, enquanto rachavam um apartamento na comunidade de Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio.
Nesse período, se bancavam com reservas próprias. Gilmar calcula terem gasto uns 60 mil de aluguel, ao longo de 11 meses, enquanto desenhavam a solução.
A dupla lançou a Unicainstancia pra valer em maio de 2020, enquanto a pandemia de Covid-19 escalava.
“É ‘engraçado’ empreender na pandemia, porque tudo que a gente acha que tem alguma certeza, não tem mais porque está em outro cenário”, diz Gilmar. “Tudo precisa ser testado.”
O momento, porém, era favorável para buscar clientes na internet. Eles apostaram em Google Ads, anúncios nas redes sociais e até parcerias com empresas, mas foi a captação manual pelo Facebook que funcionou melhor.
“Percebemos que grandes empresas de e-commerce, telecom, de luz, faziam postagens aleatórias e recebiam 2 mil comentários — e eram duas mil pessoas reclamando. Pensamos: isso aqui é uma máquina de conseguir venda”
Naquele começo, tanto os clientes como as pessoas que trabalhavam na empresa só recebiam se ganhassem o caso — os pagamentos antecipados só se tornariam a estratégia no ano seguinte.
Nessa fase, eles chegaram a ter mais de 100 agentes trabalhando de forma autônoma, um teste que Gilmar, afinal, não considerou interessante – e o fez perceber que seria importante apostar em tecnologia.
“Procuramos transformar a jornada o mais fácil possível para um cliente que ganha até três salários mínimos. Hoje temos o mesmo volume de casos e uma equipe de seis ou sete pessoas.”
No fim de 2020, com o dinheiro prestes a acabar, os sócios conseguiram um investimento do Google (Gilmar prefere não divulgar o valor), que usaram para profissionalizar a empresa e desenvolver melhor o negócio.
Isso significou, principalmente, estruturar uma equipe com remuneração fixa e encerrar a experiência com agentes autônomos.
“Para fazer uma empresa com inclusão que a gente queria, precisaríamos dar condições mínimas para a pessoa trabalhar”
Paralelamente, resolveram experimentar o modelo de compra antecipada.
“O cliente fica com uma expectativa muito grande de resolver o quanto antes”, diz Gilmar. “Então entendemos que se a gente conseguisse comprar e finalizar a relação o quanto antes, seria melhor para a gente e para eles.”
Em 2021, com equipe montada e o novo modelo, quintuplicaram a receita. E, no ano seguinte, já com robôs que auxiliavam na parte da análise dos casos, duplicaram o número de atendimentos.
Em 2023, a expectativa era de continuar crescendo, mas o ano foi marcado por uma tragédia.
Em abril, Sara estava voando para a Califórnia, onde participaria do evento Brazil at Silicon Valley, quando teve um mal súbito e acabou morrendo.
Gilmar comenta o baque de perder a sócia:
“É difícil ser otimista. A empresa segue, o time permanece. Mas empreender é muito difícil, com essa falta… Não consigo nem falar ‘sem uma sócia’, só consigo dizer que é sem a Sara”
O ritmo diminuiu, mas a empresa se manteve — com exceção, segundo o empreendedor, de uma pessoa que planejava sair antes mesmo da morte de Sara, todos da equipe permaneceram.
Apesar de reconhecer que ainda se questiona sobre a continuidade do negócio, ele destaca a vontade de continuar apostando na Unicainstancia. “A gente segue com projetos e precisa melhorar ainda mais. Direito de consumo é uma coisa básica.”
No momento, o principal plano é recuperar o número de atendimentos, talvez aumentando ainda mais a abrangência – hoje, a startup tem casos em 20 das 27 unidades federativas do país.
“Gosto do B2C, de criar soluções que estão na boca do povo. Considero que a Unicainstancia vai ter sucesso quando tiver uma música de axé ou pagode em que a gente é citado”
Ele também pretende continuar investindo em tecnologia, aprimorando o algoritmo atual e desenvolvendo novas ferramentas. A longo prazo, Gilmar espera firmar parcerias e, quem sabe, ajudar as próprias empresas a mudarem a visão sobre a jornada jurídica.
“Gostaria de mostrar para as empresas que o jurídico não é um inimigo, mas um local estratégico para entender o cliente detrator – e como pode melhorar.”
Milhões de pessoas trocam de operadora de celular todos os anos. De olho nesse mercado, quatro jovens empreenderam a Fluke, uma startup de telefonia com um aplicativo que desburocratiza a vida do cliente.
Por “falta de educação jurídica”, muitos brasileiros desistem de buscar ressarcimento junto a companhias aéreas. A LiberFly atua nesse nicho, negociando com as empresas (e “arrumou” uma encrenca com a Ordem dos Advogados do Brasil, que abriu processos contra a startup).