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A Fellicia transforma fibras em objetos de decoração de luxo e está mudando a vida de artesãos de Sergipe

Ana Paula Machado - 25 set 2017 As irmãs Renata e Alessandra Piazzalunga são as sócias à frente da Fellicia.
A arquiteta Renata Piazzalunga iniciou um trabalho de pesquisa, que acabou gerando o negócio social, hoje tocado em parceria com sua irmã Alessandra.
Ana Paula Machado - 25 set 2017
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Felícia dos Santos Souza, 52, é artesã. Nasceu e cresceu sobrevivendo em uma economia baseada na pesca de aratu (caranguejo típico de manguezais do Nordeste brasileiro), em uma cidadezinha com 13 mil habitantes no interior de Sergipe, Santa Luzia do Itanhy. Além de saber pescar, atividade que aprendeu ainda menina, também trabalhou no campo preparando a terra para a plantação de capim. Casou muito nova, teve três filhos, sofria violência doméstica e por muito tempo trabalhou em troca de comida e teto na fazenda do sogro. Hoje, sua realidade é muito diferente. A artesã agora é também empreendedora e empresta seu nome à empresa que ajudou a construir, a Fellicia, e assina peças de decoração feitas a partir da tecelagem de fibras vegetais ao lado de importantes designers, como os Irmãos Campana, atendendo ao mercado de luxo no Brasil e começa a ir para o exterior.

Assim como Felícia, outros pescadores do Nordeste tiveram o rumo de suas vidas transformado pelo trabalho do Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação, o IPTI, que viabilizou diversos projetos pelo Brasil – como o Cultura em Foco em Sergipe que deu origem à marca Fellicia. A empresa foi criada com o objetivo de viabilizar a venda de persianas, luminárias, passadeiras e outros produtos artesanais criados a partir de materiais naturais como piaçaba, junco, dendê, capim-estrela, jaraguá e oricuri. Renata Piazzalunga, 48, a arquiteta e pesquisadora que está à frente deste trabalho, fala sobre a estrutura financeira do projeto:

“Trabalhamos com um conceito de fundo de inovação em que os artesãos recebem 50% da receita das vendas e um adicional fixo, e reinvestimos os outros 50% no próprio negócio”

E prossegue: “Assim estimulamos a inovação no trabalho dos artesãos e conseguimos arcar com as despesas de instalações e treinamentos”. Renata sonhava em colocar em prática um projeto de economia criativa baseado em desenvolvimento sustentável, que qualificasse artesãos, contribuísse para o aumento da fonte de renda da população e valorizasse a cultura e a arte local.

Algumas capas de almofada, persianas e pendentes de lustre (todos feitos à mão pela Fellicia) estão no showroom da marca, em São Paulo (foto: Ana Paula Machado).

Algumas capas de almofada, persianas e pendentes de lustre (todos feitos à mão pela Fellicia) da Fellicia estão no showroom da marca, em São Paulo (foto: Ana Paula Machado).

Quando os planos deram certo em Santa Luzia, a arquiteta teve de começar a pensar em um caminho que não estava nos planos iniciais: empreender. E foi dona Felícia, uma das primeiras artesãs a entrar para o time, quem sugeriu o modelo de negócio inicial. “Tínhamos estabelecido que cada artesão ganharia de acordo com o que produzisse, mas chegou na época do pagamento e a Felícia, que receberia muito mais do que os outros por causa do alto desempenho, sugeriu que o lucro todo fosse dividido por igual”, conta Renata. Estava decidido o nome da empresa.

PESCADORES SE TORNAM EMPREENDEDORES, ONG VIRA NEGÓCIO SOCIAL

A maior parte da população de Santa Luzia do Itanhy é pescador de aratu. Segundo dona Felícia, é preciso um dia inteiro para conseguir um quilo do caranguejo, que rende, em um bom dia para pesca, mais ou menos 20 reais e ainda precisa ser descontado para a alimentação própria. É neste cenário que a tecelagem aparece como alternativa de renda e a chance de melhorar a vida. Os que aceitaram o desafio já conquistaram condições melhores. “A renda média era muito baixa. Com o trabalho na Fellicia, os artesãos recebem o fixo de 600 reais mais o valor referente às vendas. O aumento foi expressivo, em torno de 500%”, conta Renata.

A artesã Felícia foi uma das primeiras a aderir ao projeto, que destina 50% da receita das vendas a quem faz as peças.

A artesã Felícia foi uma das primeiras a aderir ao projeto, que destina 50% da receita das vendas a quem faz as peças.

Tudo começou lá atrás, em 2004, quando Renata e outros colegas pesquisadores resolveram transformar as teorias das pesquisas científicas em benefícios reais às comunidades brasileiras. Foi assim que surgiu o IPTI, e a ONG ganhou credibilidade, por meio de grandes projetos dos quais participou, logo que nasceu.

“Fomos muito solicitados para ser um executor de políticas públicas”, conta a pesquisadora-recém-empreendedora. “Decidimos que iríamos trabalhar com educação, saúde e economia criativa, sempre em um modelo de desenvolvimento sustentável e com a premissa de que todos tinham que fazer intercâmbio com artes, ciências e tecnologia, que era de onde vínhamos.”

Renata continua cuidando do IPTI paralelamente a seu trabalho na Fellicia. Os projetos do instituto ganharam grandes proporções, e a inspiraram a reaplicar a metodologia, em escalas menores: “Em um desses projetos, que fizemos junto da Confederação Nacional da Indústria, trabalhamos a ideia de que a referência cultural poderia ser um elo de inovação para micro e pequenas empresas. A partir daí ficamos com vontade de dar um passo atrás e fazer um piloto, para controlar melhor as variáveis”, conta.

O sonho se tornou possível quando a instituição foi selecionada em um edital público do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID, em 2008. O recurso oferecido para o desenvolvimento das ações foi de 100 mil dólares — e este o investimento inicial na Fellicia. “Depois, também tivemos um aporte de recursos do Banco do Estado de Sergipe e do Sebrae que, juntos, somavam em torno de 100 mil reais”, conta Renata.

DESAFIOS E OS PRIMEIROS PASSOS DA MARCA

Santa Luzia do Itanhy foi escolhida porque atendia critérios importantes: “Encontramos baixo índice de desenvolvimento humano e, por mais que seja um lugar pobre, tem um patrimônio geográfico interessante e fácil acesso à capital, Aracajú, que fica a 1h30 de lá”, afirma Renata. Mas a pesquisa mostrou também que ali não existia um artesanato típico local para servir de base para o projeto. Então, foi preciso começar do zero.

O primeiro grande desafio estava posto: convencer as pessoas que ali chegavam dos benefícios que o projeto traria. “O ônibus da prefeitura chegou na sede trazendo umas 80 pessoas no primeiro dia e eu pensei ‘nossa, tem bastante gente interessada’”, conta. “Mas logo descobri que, quando a prefeitura passava para buscá-los, geralmente era por causa dos programas assistencialistas. Então, eles estavam achando que iam receber alguma bolsa e, na verdade, a gente estava dando uma oportunidade de desenvolvimento para potencialidades. Demorou um tempo para que as coisas se esclarecessem. No final, ficaram dez pessoas.”

O trabalho começou. Oficinas de design e tecelagem com as fibras vegetais colhidas na região permitiram que as primeiras persianas fossem confeccionadas. Os mais novos artesãos também tiveram aulas de botânica para compreender melhor o material que estavam manuseando e a parceria com o Sebrae permitiu que eles aprendessem sobre empreendedorismo – desde como precificar até como montar uma empresa. E desafios começaram a aparecer. Renata conta das dificuldades e frustrações que também fizeram parte desse processo:

“A gente via situações em que faltava pouco para uma pessoa alcançar os objetivos e ela desistia, ia embora. E também não recebia apoio da família para continuar”

Apesar de tudo isso, com a dedicação de Renata, de colaboradores e dos artesãos que ficaram, o lucro logo começou a aparecer. “O projeto de fibras é muito feliz porque a gente conseguiu uma linha de produtos bem diversificada e que, por mais que seja todo artesanal, tem volume de produção. Com o tear fazemos metros de persiana e tapete, diferente de uma almofada, por exemplo, que é feita por unidade”, conta a empreendedora social.

O SEGREDO ESTÁ EM SABER COMO E PARA QUEM VENDER O ARTESANATO DE LUXO

Com a produção a todo vapor, a criação da Fellicia foi um passo óbvio e necessário a ser dado. “Quando começamos a fazer o portfólio dos produtos começamos a nos questionar para quem aqueles artesãos iriam vender aquelas peças de tamanha qualidade. Eles não tinham autonomia para chegar a Aracajú e nem queriam isso. Queriam ficar lá, tecendo”, diz Renata. “Aí eu senti a necessidade de criar um modelo de negócio específico com perfil diferenciado, que não fosse o capitalista do século 20, mas que tivesse um conceito social, fundamental para fechar o ciclo.”

Pendente com cúpula de fibra natural de Junco e eixo de madeira de Catuaba, da Fellicia, é uma das peças do catálogo.

Pendente com cúpula de fibra natural de Junco e
eixo de madeira de Catuaba, da Fellicia, é uma das peças do catálogo.

A primeira grande encomenda foi feita pelo prefeito da cidade na época, que decorou sua fazenda com as persianas. Depois, após projeção que o trabalho ganhou por meio do prêmio socioambiental do museu A Casa em 2012, as peças foram parar na coleção da loja de móveis e decoração Tok Stok.

 

“Desenvolvemos uma linha de passadeira para mesa e jogo americano, que fornecemos para a rede por três anos”, conta a arquiteta. Outra encomenda expressiva foi a do Banco do Estado de Sergipe que, em um processo de reformulação das 65 agências, resolveu “sergipanizar” a decoração com produtos de fibra Fellicia – até agora seis agências foram finalizadas.

As persianas estão entre os artigos mais procurados da marca. É possível escolher as fibras de oricuri, capim-estrela, dendê, capim jaraguá, buri, piaçaba e junça (o metro quadrado custa a partir de 380 reais). Outra peça que se tornou objeto de desejo é a luminária de piso Fibra do Dendê, com base de madeira de Ipê. A criação é dos designers Kelley White e Paulo Alves (o preço mínimo da linha de luminárias é de 5.500 reais).

A marca já nasceu dentro do mercado de luxo. Para Renata, era ponto fundamental valorizar a mão de obra artesanal. “Em geral, ele é atribuído a coisas de baixa qualidade, que as pessoas compram para fazer uma boa ação”, diz, e prossegue:

“No Brasil, artesanato é um conceito desgastado. Eu queria mostrar que é possível um artesão fazer um produto de qualidade com as melhores matérias primas, usando técnicas sofisticadíssimas”

Felícia dos Santos Souza, a personagem do início dessa reportagem, está aí para provar que a tese de Renata funcionou. “Quando surgiu a oportunidade de ser artesã, eu não tive apoio. Meu marido não acreditava em mim, e nem no projeto”, lembra dona Felicia. “Ele jogava de volta no mato toda a fibra que eu colhia. Mas hoje é ele quem vai colher o material, é ele quem trabalha pra mim”, orgulha-se a artesã, que se tornou a principal provedora de seu lar, com a condição de contribuir na criação dos netos.

Exemplos de vida como o dela são muito importantes para explicar o sucesso do projeto, segundo Renata: “Todos os indícios externos nos desmotivavam a realizar este trabalho. É preciso fazer com que o outro acredite em uma coisa que está dentro de nós, um sonho que nem sabemos direito aonde vai nos levar. Então a coisa mais relevante é ter fé a todo o momento.”

O FUTURO É CRESCER E CONTAR, CADA VEZ MELHOR, ESSA HISTÓRIA

A empresa cresceu e hoje conta com 150 artesãos fixos na produção das peças e, além de Sergipe, estão locados também em Alagoas. E quando a demanda aumenta, eles têm autonomia para subcontratar colaboradores temporários. Além das fibras vegetais, a operação já inclui nichos de bordados, rendas, fuxico e tecelagem em fios de algodão.

No catálogo da Fellicia, diferentes fibras vegetais dão origem a persianas, todas feitas à mão.

No catálogo da Fellicia, diferentes fibras vegetais dão origem a persianas, todas feitas à mão.

Em 2015, Renata ganhou uma sócia na Fellicia, sua irmã Alessandra Piazzalunga Del Fiorentino, 45. Com esta parceria, foi possível, em 2016, inaugurar o showroom da marca em São Paulo, capital, onde recebem potenciais clientes. “Ainda não temos um número expressivo de pessoas físicas que procuram a marca, a maioria ainda é lojista, pessoas jurídicas. Mas temos um grande potencial a ser explorado”, afirma a arquiteta.

De acordo com as sócias, ainda não é possível dar números exatos sobre os lucros porque se consideram em fase de investimento. “Tem mês que vendemos 50 mil reais, em outros cinco mil. Mas, de acordo com o nosso plano de negócio, a Fellicia ganha autonomia daqui um ano”, diz Renata. Para que isso seja possível, a marca tem participado de feiras do setor, como a High Design, que aconteceu em agosto, e as irmãs têm apostado em divulgar seu trabalho para arquitetos e designer de interiores. “Depois que tudo isso tomar corpo, partimos para a exportação”, diz a arquiteta, que em 2013 levou a marca para expor em uma feira de design em Londres.

Além do showroom, é possível ter acesso a produtos Fellicia em um ponto de venda no shopping JK, em São Paulo. “A gente resolveu não ter um e-commerce”, afirma Alessandra. E Renata completa: “É importante que as pessoas venham fisicamente até o showroom ou o ponto de venda porque, assim, podemos explicar que não estamos vendendo só um produto, mas uma história com alma e valor do patrimônio brasileiro”. E seguem tecendo um futuro mais justo — e bonito.

DRAFT CARD

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  • Projeto: Fellicia
  • O que faz: Comercializa itens de decoração feitos à mão por artesãos associados
  • Sócio(s): Renata Piazzalung e Alessandra Piazzalung Del Fiorentino
  • Funcionários: 2 (as sócias) e 150 membros da Associação dos Artesãos de Santa Luzia Itanhy
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: 2009
  • Investimento inicial: US$ 100.000
  • Faturamento: de R$ 5.000 a R$ 50.000 em média, por mês
  • Contato: [email protected]
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