Há uma batalha em curso no Brasil e no mundo: democracia contra totalitarismo. Você sabe disso.
Por isso o voto para presidente esse ano é o mais óbvio da minha vida.
Tenho muitas reservas em relação a Lula e ao PT. Me incomoda o discurso populista, raso, a coreografia obsoleta, de velho caudilho repetindo palavras de ordem em palanque para uma claque inebriada.
Me arrepia sua manobra de se colocar apenas como vítima de um complô da zelite – como se seu partido não tivesse incorrido em malfeitos e se lambuzado por anos a fio com o poder político e econômico a que teve acesso.
Diga-se: Lula foi um dos raros presidentes relevantes da história do Brasil – ao lado de FHC, JK e Getúlio. Mas isso não basta.
Lula pode estar prestes a ser eleito em primeiro turno sem ter realizado uma revisão profunda do PT, e uma autocrítica da sua própria atuação como líder máximo do partido ao longo da sua dissolução moral
A Lava Jato pode ter tido as piores intenções, e pode ter sido conduzida da pior forma. Mas não é possível afirmar que nada do que ela revelou aconteceu de verdade, que era tudo armação.
Então, a provável eleição de Lula pode soar como se estivéssemos passando a mão na cabeça do “bom velhinho” e dizendo que está tudo bem. (Não, não está.)
Ou como se estivéssemos comprando a noção messiânica de que ele “virou uma ideia”, isenta de prestar contas. Ou um mártir que vive a posteridade em vida e paira acima do bem e do mal. (Não, isso não é verdade.)
Eu não esqueço dos detalhes indigestos, das evidências embaraçosas, das revelações estarrecedoras.
E, no entanto, vou votar em Lula sem pestanejar.
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Lula, com todos os seus problemas, atua no campo democrático, dialoga com a sociedade, respeita as instituições.
Do outro lado, há um estulto com sede de sangue. Um fascista inculto. Um ignorante genocida. Um burro que cultua a violência e tem obsessão pela morte
Ou seja: Bolsonaro está fora do espectro do admissível para qualquer sociedade democrática que se preze. Para qualquer ambiente ocidental que se queira minimamente tributário dos ideais humanistas e libertários propostos pela Revolução Francesa e pela Constituição dos Estados Unidos, para citar apenas duas referências.
Não importa se você é liberal ou conservador. Se você é social-democrata, se é mais de esquerda e deseja um governo atuante, ou se é mais de direita e fã do livre-mercado.
Se você crê na democracia, como modo de organizar a vida em sociedade, não poderá admitir – nem por um segundo, que dirá por quatro ou oito anos! – o que Bolsonaro representa.
Me atenho aqui apenas à iniquidade dos valores que ele pratica e defende. Não vou falar dos aspectos práticos da sua administração pífia. Das tragédias e estultices e absurdos que tomaram conta do Brasil desde 2018.
Bolsonaro destruiu o país. Não construiu nada. Sua única obra é a demolição. Sua herança, o retrocesso. Sua agenda monofocal foi desfazer tudo aquilo que o Brasil fazia bem – do SUS às urnas eletrônicas ao Bolsa Família
Bolsonaro, a julgar apenas pelo saldo desses quatro anos, é, de longe, o pior mandatário que já colocamos em Brasília. (E olha que essa disputa é acirrada.)
Bolsonaro ganha de longe: não tem preparo intelectual ou emocional, nem peso histórico, nem estofo político, nem capacidade de negociar e influenciar, nem qualquer estatura como figura pública, nem carisma ou simpatia.
Pergunto: quantas mortes durante a pandemia foram resultado direto da inação do governo federal, e estão na conta pessoal do presidente da República, que conclamou os brasileiros a não usar máscaras, e sonegou vacinas à própria população, e chamou de “maricas” quem tentou seguir as normas de distanciamento social?
Quantos brasileiros morreram como consequência inequívoca desses desmandos? Cem mil? 200 mil? 300 mil?
Essa conta precisa ser feita. E essa fatura precisa ser cobrada.
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Mas o que gostaria de dizer aqui é que há outra batalha ainda mais relevante acontecendo: o Iluminismo versus o medievalismo.
Esse é o grande pano de fundo do que está aí, ainda mais ameaçador. O cenário que está mais atrás e que precisa ser lido com muita atenção.
E isso não tem a ver só com essa eleição. De fato, é algo muito maior do que os anos Bolsonaro – ou do que o fenômeno Trump, nos Estados Unidos.
Trata-se de um culto à escuridão da qual essas duas figuras são apenas uma pequena e triste expressão. Bolsonaro e Trump saem de cena, mas a marcha à ré segue firme. Esse é o nosso grande e verdadeiro problema
Está em jogo uma meia-volta na História. Uma recusa à evolução do pensamento humano. A revogação das conquistas iluministas que fundaram o Ocidente e a vida moderna.
Ataca-se a Ciência – do terraplanismo ao movimento antivacinas, incluindo todo tipo de negacionismo (“o aquecimento global não existe” etc.)
Removem-se as fronteiras entre o Estado e a Igreja. Cresce no Brasil, e em outros países, a influência política do fanatismo religioso. Muitos de nós começam a considerar boa a ideia de termos um Estado teocrático. “O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” é slogan cunhado num mosteiro medieval, só que em versão neopentecostal.
E, no entanto, esse tipo de pensamento também está presente na nota de 1 dólar americano, e na Bíblia sobre a qual se pede um juramento nas cortes do país que foi fundado justamente sobre a ideia de liberdade de credo para seus cidadãos.
Assim como está no crucifixo preso à parede dos prédios públicos brasileiros – como a dizer que a vida secular não tem espaço entre nós.
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Deus como crença individual é problema de cada um.
O Deus pessoal é uma ideia primitiva, nascida nas cavernas, que serve para explicar o que não entendemos – e para suportar aquilo que nos soa insuportável
Não aceitamos o acaso em nossas vidas. A ausência de um sentido maior. A aleatoriedade do que nos acontece. A impossibilidade de controlar temas fundamentais em nossa existência.
Deus e a ideia do design inteligente, e da divina providência, e da justiça e da bondade (ou ira) divinas são uma tentativa de enfrentar a tremenda ansiedade que surge diante do cenário de imprevisibilidade que é próprio da nossa existência. Somos poeira cósmica solta no caos.
Não aceitamos nossa insignificância. Meu universo individual, toda a experiência que vou acumular ao longo das oito ou nove décadas em que viverei, nada disso conta. Tudo isso é ínfimo. Numa perspectiva planetária – que dirá da galáxia ou do cosmos – sou irrisório.
Deus é a tentativa de escapar a essa enorme irrelevância.
Sobretudo, não aceitamos a morte. Nossa finitude é intolerável. A ideia de que daqui a pouco você estará extinto – e de que em um par de anos ninguém sequer lembrará que você existiu; isto é: olvido total – é uma verdade dura demais
Inventamos Deus porque precisamos acreditar que a coisa não acaba aqui, que vamos seguir de alguma maneira, que somos mais do que os átomos que nos formam.
Por isso tudo criamos Deus. Uma ilusão que nos dá alento. Um autoengano que nos oferece conforto.
Uma bengala emocional que usamos para inventar uma lógica superior que ordene, e dê um senso de justiça e consequência à série de eventos que nos forma a vida.
Uma muleta existencial em que nos agarramos para manter viva a quimera da transcendência e da continuidade – nossa e das pessoas que amamos.
Mas, enfim, cada um resolve suas angústias como quer ou pode.
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Deus como discurso é outra história. O Deus institucionalizado é uma das mais eficazes ferramentas de poder já criadas pela humanidade.
E esse é o ponto do medievalismo: usar Deus como narrativa de jugo e controle dos indivíduos. Quanto maior o temor a Deus, maior a submissão das pessoas ao regime vigente. Quanto maior o rebanho, mais prósperos e influentes os pastores – os autoproclamados representantes de Deus entre nós.
Essa é provavelmente a maior, mais longa e mais nefasta manipulação das consciências já inventada pelo homem
Em nome de Deus, se ameaça, se invade, se esgana, se mata. De Galileu Galilei a Salman Rushdie. De Giordano Bruno a Charlie Hebdo. Do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição às Cruzadas. Da Ku Klux Klan ao Isis.
Em nome de Deus, diz-se qualquer coisa. É o jeito mais simples de beatificar qualquer ideia – incluindo as mais bestas e nefastas.
Qualquer um pode invocar Deus. De Michelle Bolsonaro exorcizando os demônios do Palácio do Planalto (enquanto seu marido louva Garrastazu Médici e Brilhante Ustra) a Damares em catarse com o Jesus mambembe sobre o pé de goiaba, a Eduardo Cunha pedindo a Deus que tivesse “misericórdia desta nação” – enquanto tratava de implodir a mesma com suas manobras de bastidores na Câmara dos Deputados.
A lista de iniquidades imediatamente santificadas com um simples “Em nome de Jesus!” ou “Glória a Deus!” é infinita.
Temos que tirar Deus da política. Bani-lo das eleições. Proibi-lo de chefiar exércitos ou liderar países. Entender que ninguém tem procuração para falar em seu nome
Precisamos demitir o Deus que oprime as mulheres – não por acaso, o Ser Supremo é sempre visto como um homem, e está sempre aconchavado com seus companheiros de gênero.
Temos que recusar guerras, invasões, atentados, agressões – ou simplesmente candidaturas – perpetradas a partir de uma suposta lei divina (sempre escrita e imposta por homens, de acordo com seus próprios interesses, todos bem terrenos).
Precisamos praticar a inteligência – especialmente se ela realmente tiver sido um presente de Deus – e ouvir com consciência crítica (ou, ao menos, com o filtro do bom senso) o que o pastor, o padre ou o rabino está tentando lhe convencer a fazer, pensar, pagar – ou votar.
Encerro dizendo que o silêncio dos ateístas tem sido desastroso diante dessa crescente manipulação política (e comercial) da fé alheia
Enquanto o mundo vai se cobrindo com o manto irracional e dogmático da fé, enquanto direitos individuais vão sendo tolhidos, e o pensamento científico atacado, nós, os “ímpios”, que buscamos viver num lugar laico – conquista fundamental do Iluminismo que está sob xeque –, temos assistido à Idade Média ressurgir ao nosso redor sem dizer palavra.
Esse tem sido o pecado dos ateus. E talvez venhamos a pagar caro por ele.
Adriano Silva, 51, é jornalista, fundador da The Factory e publisher do Projeto Draft, do Future Health e de Net Zero. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV, A República dos Editores e Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.
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