Pense num profissional de programação. Qual a imagem que te vem à cabeça?
Deveria ser a de qualquer pessoa — mas não é. Geralmente associamos esse trabalho ao sexo masculino.
Isso está mudando. É o que afirma Mariel Reyes Milk, 40, cofundadora da {reprograma} (assim mesmo, entre chaves), que ensina programação gratuitamente a mulheres em situação de vulnerabilidade social e econômica — criando oportunidades e ajudando a reduzir o gap de gênero no setor de tecnologia.
“O mundo está percebendo que não só um homem, branco e cis — o que chamamos de ‘brogrammer’ [bro, de brother] — pode programar. Qualquer pessoa consegue. Quando as alunas saem [do curso da {reprograma}], parecem Mulheres-Maravilha, com capa e tudo. Estão confiantes para reprogramar o mundo”
Fundada em 2016, a {reprograma} já realizou 22 turmas de seu bootcamp, formando mais de 700 mulheres — no último ano, 69% delas eram negras. Para participar da iniciativa, é preciso se identificar como mulher e ter ensino médio completo. Mesmo interessadas que não tenham acesso à internet e a um computador em casa podem se inscrever, pois a {reprograma} consegue ajudá-las com suporte de parceiros.
Segundo a empreendedora, após seis meses de curso, 75,3% das alunas estão empregadas na área, com salário médio de 4 mil reais, trabalhando para empresas como Accenture, Creditas, iFood, Itaú, Mercado Livre e Nubank.
APÓS DEZ ANOS NA IFC, ERA HORA DE CRIAR ALGO DO ZERO
Mariel é peruana, mas vive no Brasil desde 2010. Economista com pós-graduação em Meio Ambiente, sua rotina estava longe da área de tecnologia.
Por dez anos, ela trabalhou na área de sustentabilidade da IFC (Corporação Financeira Internacional, do Banco Mundial), atuando na América Latina e também na Ásia, especificamente nas Filipinas e no Vietnã.
“O Banco Mundial foi uma escola incrível. Aprendi desde criação, estruturação e gerenciamento de projetos até a capacidade de falar com pessoas de diferentes perfis — de comunidades de agricultores a gerentes de banco…. Mas queria criar um empreendimento em que tivesse mais voz ativa no dia a dia, na estruturação de projetos”
Transferida para o Brasil, ela aos poucos começou a acalentar a ideia de começar um negócio do zero. E, em 2015, sentiu que era a hora.
O LADO SOCIAL, EM ESPECIAL O ENFOQUE EM GÊNERO, DESPERTOU SEU INTERESSE
A busca por impacto social fazia seu chamado. “Sempre tive consciência social. Isso está no meu sangue. Minha avó era missionária metodista norte-americana. Entre as décadas de 1940 e 1970, ela viveu em vários países latino-americanos e asiáticos, trabalhando com mulheres das comunidades em temas relacionados à nutrição, enquanto meu avô fazia trabalhos de desenvolvimento econômico nessas mesmas comunidades.”
Ao sair do banco, ainda sem saber exatamente para que caminho seguir, Mariel começou a trabalhar em projetos sociais com foco em gênero.
“Esse recorte foi a primeira área de meu interesse. Lembrei que no Peru, entrei em uma escola que antes era só de meninos e havia acabado de virar mista”, diz. “Começou a crescer em mim a vontade de mostrar ao mundo a importância do acesso à educação, saúde e oportunidades iguais para as mulheres.”
“QUANDO O HAMSTER COMEÇOU A ANDAR NA RODINHA”
Outro empurrão para a {reprograma} foi uma conversa com David Vélez, na época seu namorado — e hoje, marido e cofundador do Nubank.
“Ele estava começando a empreender e sempre falava que faltavam desenvolvedores no mercado, ainda mais profissionais mulheres… Dizia que no Nubank abriam uma vaga de developer e recebiam currículo de 100 homens e apenas uma mulher. Isso começou a me incomodar muito”
Foi aí, diz Mariel, que “o hamster começou a andar na rodinha”. Ou seja, a ideia engrenou na sua cabeça, e ela se debruçou em pesquisas sobre o tema.
“Vi que havia iniciativas legais, mas muito pontuais, como um workshop de sábado de HTML. Bootcamp intensivo e colocação no mercado de trabalho ainda não eram uma prática.”
AS PRIMEIRAS TURMAS FORAM POSSÍVEIS COM PRO BONO E EMPRÉSTIMO DE ESPAÇOS
Mariel disparou mensagens para sua rede de contatos e também desconhecidos.
Assim, no fim de 2015, juntou oito voluntários dispostos a formular um curso e dar aulas. Gente como Camila Achutti (fundadora da Mastertech) e Paulo Silveira (CEO do Grupo Alura).
Nesse grupo estavam Carla de Bona e Fernanda Faria, que se tornariam cofundadoras do negócio.
Carla, hoje diretora de ensino, atuava como professora especialista em UX.
Já Fernanda conheceu Marial através de um amigo peruano em comum. Hoje, a cofundadora, comunicadora com carreira em RH, é diretora de operações da {reprograma}. O time atual é formado por 12 mulheres, incluindo negras e trans.
Para começar o negócio, Mariel investiu 25 mil reais, juntando uma grana recebida ao sair do Banco Mundial e recursos via crowdfunding.
O piloto do bootcamp ocorreu em maio de 2016, graças aos voluntários, que atuaram de forma pro bono no primeiro ano, e a empresas que cederam espaço para o curso, como a Recode (na época CDI).
A primeira turma teve apenas seis semanas de duração.
“Sentimos [desde o começo] que estávamos no caminho da diversidade. Eram mulheres com perfis diversos, de 16 a 55 anos, que foram trabalhar em diversas empresas e startups, o que nos enche de orgulho”
Hoje, o formato do curso é de 18 semanas, cobrindo front e back-end. Há uma semana dedicada a desenvolvimento de soft skills — por exemplo, como se portar numa entrevista de emprego ou criar um perfil matador no LinkedIn.
O APOIO DO FACEBOOK AJUDOU A CRIAR UM MODELO DE NEGÓCIO SUSTENTÁVEL
Em 2018, a {reprograma} se tornou residente da Estação Hack, em São Paulo, onde estava sediada até o home office forçado pela pandemia.
O negócio social já tinha realizado quatro turmas — e recebeu um aporte (de valor não revelado) para garantir novas turmas.
Com o apoio, Mariel decidiu que era hora de focar também em empregabilidade. “Comecei a mandar mensagens para empresas que estavam procurando diversificar seu time de TI”.
A {reprograma} reestruturou seu modelo de negócios para não depender apenas de doações. Passou, por exemplo, a vender cursos para empresas dispostas a financiar a formação de turmas inteiras (ou uma parte) e depois contratar as profissionais para atender sua demanda.
Nesse esquema, pintaram clientes como Accenture e Mercado Livre. Outro modelo de financiamento é o Speed Hiring, evento nos moldes do speed dating, ou encontro-relâmpago:
“Convidamos 30 empresas de tech que recebem informações sobre as candidatas e depois têm cinco minutos de conversa com cada ex-aluna. As empresas pagam uma taxa para participar — e, caso contratem uma aluna, pagam à {reprograma} o valor referente a um salário”
Ao todo, 99 empresas e 267 alunas já participaram do Speed Hiring.
A {REPROGRAMA} JÁ ESTAVA NO ONLINE QUANDO A PANDEMIA CHEGOU
Para impactar mais alunas, em 2019 a empresa realizou um piloto do curso online.
“Éramos apenas cinco mulheres no time e já havia uma demanda enorme pelo Brasil todo”, diz Mariel.
A primeira turma virtual atendeu mulheres de 22 cidades, com 100% de taxa de conclusão. Quando a pandemia chegou, a {reprograma} já havia realizado cinco edições online.
“Nossa turma presencial tinha começado há uma semana na Estação Hack e teve que mudar para o online. Tivemos apenas uma desistência de uma aluna que era mãe e não estava conseguindo conciliar tudo naquele momento”
Em 2020, também rolou um piloto de curso online focado em meninas de 14 a 17 anos, com a participação de 32 alunas.
“O Reprograma Teens apresenta a programação às meninas um pouco antes do momento de decisão da carreira, mostrando que trabalhar com tecnologia é uma opção para elas.”
COMO COMBATER A SÍNDROME DA IMPOSTORA? COM SORORIDADE
A sociedade sempre desmotivou as garotas pela educação STEM (Science, Technology, Engineering e Mathematics, em inglês). Com isso, fortaleceu-se a Síndrome da Impostora:
“Muitas mulheres que procuram a {reprograma} sempre adoraram tecnologia, mas escutaram que isso era ‘para homem’ e nunca tiveram essa oportunidade. O maior desafio não é ensinar as mulheres, mas mostrar para elas que são capazes de programar”
Segundo dados do INEP/MEC, 13% dos estudantes de Ciência da Computação são mulheres, mas 47% desistem do curso. E de acordo com a Mastertech, a mão de obra feminina representa 1/3 da força de trabalho em TI.
Para contornar inseguranças socialmente construídas, Mariel aposta na sororidade. “Uma vez que elas entram no curso e percebem que ali é um ambiente seguro, criam uma comunidade de apoio com as outras participantes, professoras, monitoras e mentoras.”
Para inspirar a turma, o curso traz exemplos de mulheres que seguiram carreira na área.
“No presencial e no online, trazemos mentoras, mulheres trans, negras, sêniores que trabalham com tecnologia. Inclusive, ex-alunas que hoje são professoras. Muitas delas se identificam e percebem que também podem chegar lá.”
POR MAIS MULHERES NEGRAS E TRANS NA TECNOLOGIA
No fim de 2019, enquanto a {reprograma} testava seu formato de aulas virtuais, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) procurou Mariel para uma parceria.
Ela trabalhou na proposta em 2020 e daí nasceu o Todas em Tech, programa de capacitação intensiva para fomentar a inserção de mulheres na tecnologia.
A meta é impactar 2 400 mulheres ao longo de dois anos, com oficinas de um dia, sendo que 400 candidatas serão escolhidas para os bootcamps (com duração de 18 semanas).
No mínimo, 55% das vagas foram destinadas a alunas negras e 5% a trans. As inscrições foram realizadas entre 4 de janeiro a 5 de fevereiro e a primeira turma começa em março, com 40 alunas. A candidatura para a próxima turma começa dia 14 de junho.
Em geral, diz Mariel, as alunas trans nos cursos da {reprograma} compõem entre 1% e 2% das turmas. Para elevar esse percentual, as sócias buscam parcerias estratégicas para compreender como atingir essas mulheres e também flexibilizaram critérios — derrubando a exigência de ensino médio completo ou do envio de vídeos para inscrição nos cursos.
O Todas Em Tech será viabilizado graças a 300 mil dólares doados pelo BID, mais 230 mil dólares doados por empresas parceiras e um investimento de 215 mil dólares da própria {reprograma}.
Parte das doações será usada no desenvolvimento de uma plataforma online de contratação, que permitirá à {reprograma} se aproximar mais das empresas e ajudá-las a levar diversidade a suas áreas de TI.
“A ideia é que essa plataforma substitua nossas feiras de Speed Hiring. A versão beta deve estar disponível em junho. Lá, empresas vão encontrar informações sobre as candidatas e poderão fazer o processo seletivo, fechando o ciclo desse aprendizado com a contratação.”
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