O centenário Instituto de Engenharia de São Paulo é uma daquelas entidades que se confundem com a história da cidade. Seus fundadores tornaram-se nomes de ruas da capital paulista; sua antiga sede (próxima à Praça da Sé) serviu como posto de alistamento da Revolução Constitucionalista, em 1932.
No endereço atual desde os anos 1980, o instituto chama atenção mais por sua enorme área verde, cheia de árvores frondosas (o Parque Ibirapuera, aliás, fica pertinho daqui), do que pelo ambiente antigo, austero. Os debates e seminários promovidos no local não desfazem a sensação de um lugar parado no tempo.
Essa atmosfera se estende ao restaurante do instituto: mesmo com o sistema self-service, a impressão é de que a qualquer instante um garçom trará o cardápio com receitas antiquadas como frango à cubana ou peixe à belle meunière…
E foi justamente enquanto eu imaginava quais daqueles senhores estavam ali apenas para ter uma desculpa para não almoçar em casa numa quarta-feira que experimentei um choque de realidade: logo atrás do restaurante, onde antes ficava o salão de festas do instituto, funciona o escritório da Carambola, uma empresa de soluções de Tecnologia da Informação (TI).
O contraste é gigantesco. Na Carambola, tudo combina com o ambiente de uma startup instalada num prédio inteligente: espaços sem divisórias, mesas de madeira crua (fabricadas pelos próprios colaboradores), banheiros unissex, frases motivacionais feministas espalhadas pelo local… E uma família de gatos convivendo em harmonia com uma cadela com nome de fruta.
Melancia não mora aqui (ao contrário dos amigos felinos), mas “bate ponto” diariamente junto com sua dona: Juliana Glasser, 34 anos, nossa entrevistada para DNA: Nova Economia – série de entrevistas com a condução e a curadoria do Projeto Draft, apresentada pelo Sebrae, veiculada nos canais Globosat e produzida e dirigida por Bond Filmes e Storyland.
Sócia e cofundadora da empresa, a eloquente Juliana comanda uma revolução silenciosa. A Carambola não se limita a oferecer soluções de TI para clientes corporativos, como tantas empresas. A firma tem o propósito de promover a formação de novos programadores e tornar o mercado mais inclusivo.
Demanda não falta. “Há 471 mil vagas de emprego em aberto na área de TI no Brasil e só conseguimos formar 20 mil pessoas por ano”, diz Juliana. Num país que soma 13 milhões de desempregados, o que ela faz deveria ser replicado em escala. Até porque a Carambola vem tentando romper barreiras e levar diversidade a um segmento de hegemonia masculina, heterossexual e nerd.
Funciona assim: ao contratar projetos de TI da empresa, os clientes empregam por tabela gente que se envolve no dia-a-dia da Carambola, seja em projetos específicos, seja em cursos de capacitação. Parte dessas pessoas jamais teve contato com linguagem de programação e sai dali pronta para o mercado. O perfil é diverso e privilegia inclusive quem tem menos recursos econômicos.
A Carambola forma e emprega de 150 a 180 novos profissionais de TI por ano. “Aqui vem gente que nunca mexeu com programação e aquele que sabe bastante, mas nunca trabalhou em equipe”, diz Juliana. “Além de ensinar a linguagem, mostramos às pessoas como se portar numa empresa.”
Hoje, virou um clichê no mundo corporativo anunciar a diversidade como uma bandeira a ser hasteada com orgulho, entre os valores máximos da empresa. Mas devem ser pouquíssimos os patrões que, como Juliana, trazem a questão inserida de forma tão orgânica na sua história e no seu negócio.
Gay, ela teve de buscar o próprio sustento ao comunicar sua orientação sexual aos pais – que preferiram sair de casa, deixando-a sozinha. E as tentativas de conseguir estágio em TI após ter feito um curso técnico de eletrônica sempre a levavam para funções burocráticas (distantes do trabalho com “equipamento”, que era o que ela desejava), unicamente pelo fato de ser mulher.
Na Carambola, a diversidade é missão, valor, cultura corporativa e modelo de negócio, tudo ao mesmo tempo. Um refugiado de Serra Leoa e um cadeirante com paralisia cerebral são alguns exemplos de pessoas que passaram por lá e que foram empregadas ou desenvolveram projetos para clientes.
Uma das frases que Juliana enquadrou e espalhou pela Carambola, de autoria da feminista americana Gloria Steinem, diz assim: Uma mulher sem um homem é como um peixe sem uma bicicleta. Sob a camada de humor surrealista, a frase esconde uma lógica impecável (assim como os códigos de programação, que também parecem incompreensíveis numa primeira leitura): uma mulher precisa tanto de um homem quanto um peixe precisa de uma bicicleta…
Mulheres e computadores, porém, já são outra história. Se o mercado de TI resiste a se abrir ao público feminino, sugiro a Juliana uma singela adaptação da frase, que ela poderia mostrar aos gestores que ainda não enxergaram o óbvio: “Uma mulher com um computador é como um peixe sem uma bicicleta” – algo absolutamente natural, que não deveria mais surpreender ninguém.