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Os atropelamentos em ferrovias vêm crescendo. A Rumo busca startups para atacar o problema (e salvar vidas)

Bruno Leuzinger - 18 jun 2020
Roberto Rubio Potzmann, diretor de tecnologia da Rumo, na convenção anual da empresa, em fevereiro de 2020 (Foto: Priscilla Fiedler).
Bruno Leuzinger - 18 jun 2020
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Tecnicamente, trens não existem. 

A ideia pode parecer bizarra, ainda mais se você cresceu brincando de ferrorama (o que, aliás, diz algo sobre a sua idade). Mas é simples: o que há, de fato, são locomotivas e vagões. “O trem só existe quando em movimento”, diz Roberto Rubio Potzmann, diretor de tecnologia da Rumo, operadora de ferrovias que faz parte do grupo Cosan

Ver os trens por esse ângulo é importante para entender o desafio de “montagem”, no pátio de manobras, movendo e engatando locomotivas e vagões numa nova composição. Para agilizar o trabalho (e seguir viagem mais rápido), a Rumo recorreu recentemente ao MIT, em busca de um algoritmo que simplifique esse processo.

Com 28 mil vagões e mil locomotivas em sua base de ativos, a empresa administra 14 mil quilômetros de ferrovias em nove estados, além de operar 12 terminais de transbordo e seis terminais portuários. Seus clientes são traders e grandes cooperativas do agronegócio.

“Sem ferrovia não tem agronegócio no Brasil”, diz Rubio. “Não adianta produzir e ficar com a produção [parada] no Mato Grosso.”

A Rumo, hoje, encara a missão de tentar transformar um setor tradicionalmente conservador. A colaboração com o MIT é um exemplo. Outro é o Fuse, um novo programa que pretende acelerar, de julho a dezembro, startups com soluções contra atropelamentos e abalroamentos (as inscrições estão abertas até 26 de junho).

A seguir, Rubio fala sobre o programa, os desafios da indústria ferroviária e como eles podem ser atacados com inovação.

 

Como e por que a Rumo resolveu criar o Fuse, seu programa de aceleração de startups?
O trem tem uma circulação específica, em horários pré-determinados. Sempre que há um encontro físico com veículos, ou seja, um abalroamento, ou um atropelamento de pedestres, é porque a “a sociedade” entrou na linha do trem. Isso não é uma opinião, é um fato físico.

Ou seja, o atropelamento e o abalroamento não envolvem somente a ferrovia. Há um fator externo muito forte, a sociedade. É algo que nos incomoda tanto do ponto de vista empresarial quanto humano. Então decidimos abrir essa nossa angústia e criamos esse edital, que basicamente pergunta à sociedade como podemos eliminar esse problema — que, quando acontece, é grave.

Pode dimensionar o tamanho do problema? São quantos atropelamentos e abalroamentos por ano?
Em 2018, tivemos [na malha operada pela Rumo] 179 abalroamentos registrados. Atropelamentos foram 98. Em 2019, foram 195 abalroamentos e 107 atropelamentos. Ou seja, de 2018 para 2019, os números aumentaram. 

Considerando os investimentos que a Rumo tem feito em várias frentes, parece incoerente. Vale uma explicação.

Pense num acidente envolvendo um trilho quebrado. Se eu faço um investimento massivo em trilhos, troco a infraestrutura ou crio uma tecnologia para descobrir uma falha antecipadamente, o número reduz. Mas, no caso de atropelamentos e abalroamentos, existe um fator paralelo: o número de trens que circulam

O aumento de produtividade da Rumo é notório, algo que a gente publica periodicamente. O número de trens tem aumentado — e o espaçamento entre trens tem reduzido. Então, aquela via que era calma, onde passava um trem por dia, hoje podem estar passando quatro.

Outro ponto: conforme aumenta a qualidade da via, a característica mecânica da composição, a velocidade do trem também tende a aumentar. Então aquele trem que você estava acostumada a ver passar a 10 quilômetros por hora, hoje passa a 20 km/h, 30 km/h.

Quanto mais eu invisto e aumento a qualidade de serviço, aumenta a quantidade de trens circulando. E mesmo admitindo por um segundo que o número de pessoas [circulando] seja constante, a interseção entre esses dois conjuntos aumenta. 

Então, naturalmente é esperado que o número de atropelamentos e abalroamentos aumente — apesar dos investimentos. E isso nos preocupa. O momento de interromper isso é agora. Porque, se não, quanto melhor a Rumo se tornar, maior esse número vai se tornar. 

Houve algum benchmarking internacional de inovação aberta no setor ferroviário que inspirou o programa?
Não. Até onde sei, não existe uma iniciativa com essa pegada em empresas ferroviárias. O segmento, globalmente, é bastante conservador. Todo esse negócio de edital, hackaton, simplesmente ainda não engrenou [no setor].

Nosso time de tecnologia é multidisciplinar, não tem somente engenheiros ferroviários. O Fuse é uma iniciativa pioneira na indústria ferroviária, mas não para outras indústrias. Basicamente, o que fizemos foi unir os pontos. Se essa ideia [de inovação aberta] funciona em outros segmentos, vai funcionar aqui também. 

Que outros desafios específicos do setor ferroviário podem ser ou vem sendo enfrentados com inovação e novas tecnologias?
O grande desafio da indústria ferroviária hoje foi direcionado, plenamente, para a inteligência artificial e captura de informações em campo. Nosso trabalho é bastante repetitivo. Nossa indústria tem três características são muito fortes, que nos levam a trabalhar principalmente na parte de automação e de inteligência artificial. 

Primeiro, são diversas decisões acontecendo ao mesmo tempo. Microdecisões. Tenho dois trens e um único ponto de passagem, preciso decidir quem passa primeiro. Dois maquinistas e um trem: preciso decidir qual é o melhor maquinista para aquele momento. Agora, multiplique isso por dezenas de milhares por dia

A segunda característica da indústria é que essas decisões são interdependentes. Você não toma decisão envolvendo o maquinista sem levar em conta o ponto de circulação. O ponto que o trem cruza com outro interfere na decisão do maquinista, e assim por diante. 

Em terceiro lugar: individualmente, as decisões geram pouco valor. Não é zero, mas é pouco valor. Porém, quando se multiplica uma [decisão] com a outra, você tem “milhões de reais sobre a mesa” para trabalhar e aumentar a sua eficiência. 

Lembrando que a Rumo é uma concessionária. Toda vez que aumenta a eficiência, o custo Brasil cai, o país consegue exportar a um custo mais competitivo. 

Hoje, essas decisões são tomadas por seres humanos. Então, quando eu automatizo isso e coloco ferramentas que analisam o sistema como um todo, ajudo pessoas a tomar decisões corretas, que impactam umas sobre as outras, e assim capturo o valor dessa terceira variável

Pode dar um exemplo de uma inovação concreta desenvolvida pela Rumo, com esse olhar para a automação e inteligência artificial?
Estávamos aprimorando nosso conhecimento de processamento de imagens, e queríamos desenvolver um sistema que detectasse coisas simples para depois extrapolar para campo.

Há uma norma de segurança da Rumo que para descer ou subir uma escada é preciso colocar a mão no corrimão. Levamos isso a sério. Tem ‘n’ formas de incentivar isso, mas nós criamos um algoritmo e colocamos câmeras nas escadas, que detectam quando a pessoa está subindo sem a mão no corrimão. Aí, uma voz avisa: lembre, é importante colocar a mão no corrimão.

Foi um processo simples, mas que aprimorou muito o nosso conhecimento de detecção de imagens. E que culminou em outra iniciativa: hoje, estamos utilizando esse mesmo racional, esse mesmo algoritmo, para detectar balanço de vagão

Eu coloco uma câmera num ponto específico de um trilho e consigo medir o balanço que o vagão faz quando passa lá. E disso consigo entender como está o sistema de suspensão, como está aquele trecho de trilho, o que precisa corrigir… Esse desenvolvimento foi feito internamente, mas poderia ter sido feito por uma startup.

Você é diretor de tecnologia. Conte um pouco sobre o seu time: qual é o tamanho, o perfil? E como se dá a dinâmica de criar esse tipo de solução internamente?
Tenho perfil voltado para inovação em toda a minha carreira, mesmo antes da inovação atingir o nível de exposição que tem hoje. Mesmo quando inovação ainda “incomodava”, 25 anos atrás, porque o inovador era o cara que questionava coisas que normalmente não eram questionadas. 

Eu já tinha esse modo de enxergar as corporações e os problemas em si. É algo que eu trago na bagagem e que ficou bastante impregnado no meu time.

O time de tecnologia da Rumo tem dois pilares. O conhecimento ferroviário é extremamente necessário para tomarmos decisões precisas, não cometermos deslizes na seleção de tecnologias. Temos engenheiros ferroviários, com 20, 30 anos de experiência com desenvolvimento de materiais e componentes, tanto para vagões quanto locomotivas. 

No outro lado, temos gente que não vem de origem ferroviária, mas com mentalidade de inovação. Engenheiros químicos, engenheiros eletrônicos, de sistemas… Pessoas que ouvem o problema de forma muito “pura”, sem o “vício” do profissional com 30 anos na área. E que se apoia nesse profissional para balizar decisões e propostas

Nas reuniões, você tem uma complexidade de conhecimentos brutal disposta ali na mesa. E não são só engenheiros, temos pessoas de comunicação na nossa área — por que o que adianta desenvolver um software e ninguém usar? Então o processo de venda, de marketing, de desenvolvimento de produto, tudo isso faz parte do nosso know-how.

Trabalhamos tanto com recursos internos quanto com parceiros e terceiros. Somando tudo, são mais de 300 pessoas envolvidas. É um grupo grande de tecnologia. 

A empresa tem um projeto com o MIT para otimizar operações no porto de Paranaguá. Qual é exatamente o objetivo?
A Rumo tem 28 mil vagões e mil locomotivas. São ativos que se movimentam. Quando um cliente me contrata, ele tem um produto para levar do ponto A ao B — e informa o volume, a data, origem, destino. E eu preciso entender onde estão os vagões, as locomotivas, em que direção estão se movendo, quando chegam. Como faço para unir [essas composições]. 

Tem uma área de planejamento na Rumo que analisa isso e para atender às ordens de serviço começa a “montar um jogo”: vou unir essa locomotiva com esses vagões, direcionar daqui para cá, “quebrar” esse trem em dois… Isso é o processo ferroviário.

Mas trem não é caminhão. Para fazer essa movimentação toda, você precisa do pátio de manobras. Onde há linhas paralelas, e onde os trens são desmembrados, os vagões movimentados, até formar um novo trem que sai do pátio e segue viagem. E considerando que uma locomotiva pesa 200 toneladas e um vagão, 100, não é algo simples.

Pedimos ao MIT: analisem o pátio e nos ajudem a criar um algoritmo que otimize esses movimentos. Porque você precisa fazer o menor número possível de movimentos, sem travar o pátio. Senão, chega uma hora que não há mais espaço, tem que “resetar” tudo e mover para a posição original

O planejamento de pátio, com um algoritmo, você resolve com facilidade, não é muito diferente de xadrez. E como “caímos” no MIT? União de interesses. Eles buscavam bons projetos ao redor do planeta e nós tínhamos a necessidade de gente boa para resolver. Nos inscrevemos e fomos selecionados. 

O projeto ainda está em implantação. Os resultados dependem do pátio, de “n” variáveis, mas você tem a possibilidade [de um ganho] de utilização de 5%, 10%, 15%… Existe muito dinheiro sobre a mesa que pode ser otimizado em tempo que resulta em custo de operação.

Pode contar sobre outros investimentos em inovação e pesquisa & desenvolvimento?
Os projetos que quebram paradigmas ferroviários não necessariamente são de P&D. Por exemplo, hoje a Rumo é a maior operadora semiautônoma de trens da América Latina. Estamos atingindo 220 trens na operação norte com sistema semiautônomo: o maquinista entra, aperta um botão e, se não tiver que parar em nenhum cruzamento, ele vai de Rondonópolis a Santos com uma máquina controlando de ponta a ponta.

Essa não foi uma solução de P&D: é uma solução chamada  Trip Optimizer, que compramos da GE. É algo relativamente novo no Brasil, extremamente inovador para a Rumo e a indústria ferroviária. A máquina conduz de forma muito mais eficiente do que o ser humano porque não se distrai, segue regras naturalmente. O investimento que fizemos só com o Trip Optimizer foi superior a 100 milhões de reais.

Mas temos também outros desenvolvimentos internos. Com relação à segurança, por exemplo, um dos maiores problemas é o acidente que ocorre quando há um trilho quebrado. Dependendo da forma que quebra, do momento, faz o trem tombar.

Qual a solução hoje no planeta? Tecnologias chamadas de “circuito de via”, em que você equipa a via com sensores específicos. É bastante conhecida no meio ferroviário, mas você tem que isolar cada dormente, colocar uma borrachinha, é um trabalho danado… No Brasil seria um investimento bilionário. Por outro lado, não podemos abrir mão desse controle.

Mergulhamos nesse tema há uns três anos. Desenvolvemos um hardware que usa o conceito de circuito de via, mas com algoritmos de inteligência artificial que evitam que você precise isolar a via e instalar o equipamento. Assim, reduzimos o que seria um investimento acima de 1 bilhão de reais para cobrir nossa operação Norte, dois mil quilômetros, para algo da magnitude de 25 milhões de reais

Tínhamos eventos semanais de quebra de trilho e acidentes. Agora, detectamos 97% dos casos de trilho quebrado antes do trem passar. Foi um divisor de águas para a nossa operação — e um desenvolvimento feito pela Rumo. Já temos essa tecnologia instalada em toda a operação. E estamos trabalhando com parceiros, negociando, procurando como disponibilizar isso para todo mundo.

É possível quantificar o gargalo logístico do país, em termos de escoamento, pensando no quanto se perde por problemas ligados a acidentes, manutenção de ferrovias etc.?
É complicado. Deixa eu fazer uma comparação. Quando você tem um gargalo de banda [de internet], com a conexão no limite, para saber quanto você precisa comprar a mais, os técnicos geralmente dizem: para responder eu preciso liberar antes [a banda extra]

Porque há um efeito circular. Você tenta acessar a internet e não consegue porque está lenta, então acessa cada vez menos, e isso nivela o seu uso em 30% do que poderia ser — se fosse mais rápida, você usaria mais. 

Trazendo para as ferrovias: a magnitude depende do produto, mas entre 60%, 70%, 80% da produção passa pelas ferrovias para ser exportada. Mas e se tivéssemos mais tecnologia? Muitas vezes, o produtor não produz mais simplesmente porque o custo de exportação hoje não permite que ele venda mais

Então, é muito difícil transformar [o gargalo] em um número objetivo, seria um pouco de leviandade. Porém, o que percebemos? A Rumo trabalhava com quase 100% da ocupação quando a Cosan entrou. E nesses cinco anos, o aumento de capacidade foi agressivo, se manteve colado à demanda. 

É um fator curioso: você aumenta a capacidade [de transporte], atinge o pico [de demanda]. Aumenta de novo — e atinge o pico de novo. Não sei o quanto mais posso aumentar de capacidade, mas ainda existe margem para isso.

Como a Covid-19 tem afetado a operação e o negócio de vocês?
Seria utópico dizer que não afeta nada. Desde o primeiro momento, a Rumo adotou procedimentos recomendados pela OMS e pelo governo de forma bastante dura. Mas a demanda [dos clientes] continua bastante “agressiva”, mesmo com esse período [de pandemia]. Nos surpreendeu um pouco como o mercado respondeu bem a esse cenário. 

Nos escritórios, adotamos home office. Para as pessoas que precisam estar lá presencialmente, gente da central de controle, houve distribuição ampla de álcool gel — produzido aliás por uma das empresas do grupo, a Raízen. Há também um distanciamento rígido, bloqueio de posições [de trabalho], distância de dois metros… 

Dentro do possível, estamos rodando com normalidade. O maquinista recebeu material de desinfecção para a cabine, frasco de álcool. Temos uma ferramenta, um celular do pessoal de campo com um aplicativo nosso que permite treinamentos remotos, então fizemos treinamentos sobre cuidados para ele e a família.

O que você diria para convencer potenciais candidatos a inscreverem soluções no Fuse? Qual é o apelo do programa para esses empreendedores?
Primeiro, é uma ótima oportunidade de negócio, porque é um problema que atinge todas as ferrovias no planeta. Em todo ponto de cruzamento entre a sociedade e a ferrovia há risco de acidente. 

Ideia, todo mundo dá. Estamos procurando ideias realmente eficazes, que podem ser implantadas. E pessoas que sabem como viabilizar essas ideias, sabem do que precisam — e que só precisam de alguém que as ajude. 

Com certeza [alguém com esse perfil] vai passar pela seleção do Fuse, vai avançar no processo. E chegando até o final, com uma solução concreta, a chance de a Rumo contratar essa solução e expandi-la para a sua malha inteira é muito grande. A chance da solução virar padrão brasileiro é real

E estamos falando de acidentes que machucam pessoas. Alguém que tenha uma ideia, uma abordagem que possa solucionar esse problema, estará ajudando a salvar vidas. E essa vida pode ser inclusive a sua. Então, independentemente de ser um bom negócio, não será uma solução simplesmente CNPJ. É pessoa física. 

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