A Sarvodaya propõe imersões em comunidades rurais na Ásia. Mas não basta querer ir, tem que estar preparado

Luana Dalmolin - 22 ago 2018
Giselle Paulino conta como leva grupos para povoados asiáticos que trabalham com agrobiodiversidade. Lá, os viajantes fazem de yoga à plantação e limpeza do local.
Luana Dalmolin - 22 ago 2018
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Sarvodaya é uma palavra em sânscrito que quer dizer “bem-estar de todos”. O termo cunhado por Mahatma Gandhi foi escolhido pela jornalista Giselle Paulino, 43, para batizar seu negócio — uma empresa que oferece jornadas de aprendizagem com imersões em comunidades rurais na Ásia. Ao contrário de muitos empreendimentos, a Sarvodaya não foi planejada. Nasceu de parto natural e de uma gestão que foi alimentada por dez anos.

Era 2008 quando a jornalista, que na época trabalhava no Instituto Ethos, foi fazer um curso de três semanas no Schumacher College, uma instituição de Ecologia Profunda e Ciências Holísticas localizada na pequena cidade de Totnes, sudoeste da Inglaterra, fundada pelo indiano Satish Kumar. Essa seria a experiência embrionária para a virada de chave que iria nortear a busca por seu propósito.

Ali, teve o primeiro contato com dois indianos que seriam suas referências na vida e nos negócios: o próprio Satish Kumar e Vandana Shiva, líder ambiental e física, conhecida mundialmente pela sua luta em defesa da agrobiodiversidade. Com uma viagem já planejada para a Ásia, que a princípio duraria três meses, Giselle tinha um destino certo: conhecer a  fazenda de Vandana Shiva, a Navdanya, localizada em Dehradun, no norte da Índia.

Mais do que um lugar, o movimento criado há 30 anos pela ativista indiana, se apresenta como uma alternativa à agricultura moderna, sendo orientada pela monocultura e introdução de químicos. Vandana desenvolveu um banco de sementes e criou uma fortaleza da agrobiodiversidade, que conta com mais de 700 variedades de arroz, 200 de trigo, 120 de feijões e outros alimentos que correm o risco de desaparecer da natureza. “A indústria alimentícia promove a monocultura e isso é um risco para a segurança alimentar”, diz Giselle.

UMA VIAGEM SEM VOLTA (OU, PELO MENOS, DE IDAS E VINDAS)

Na fazenda, a jornalista teve sua primeira experiência com a mão na massa, ou melhor, na terra. Foi voluntária do tipo faz-tudo (de limpeza a trabalho na roça). Três meses logo viraram seis. No final de 2008, soube que Satish Kumar viria à fazenda Navdanya para dar um curso sobre Gandhi e globalização e ela, então, estendeu sua estadia por mais seis meses, completando assim um ano na Índia. Ela fala sobre os aprendizados:

“Voltei ao Brasil com uma verdade no coração, pois tudo começava a se conectar e a fazer sentido em minha vida”

Com toda a bagagem acumulada, ela passou a atuar como jornalista independente e a escrever sobre a preservação da biodiversidade e a agroecologia para diversos veículos de alcance nacional, como Valor Econômico e O Globo. “Buscava histórias e trabalhos que tinham a ver com esses temas e comecei a me interessar pela agricultura brasileira e por políticas públicas na área.”

Giselle ao lado de Vandana Shiva, líder ambiental e física, conhecida mundialmente pela sua luta em defesa da agrobiodiversidade (foto: Haroldo Castro/Viajologia).

Em meados de 2012, Giselle decidiu apostar em uma nova empreitada para se aprofundar no tema da agroecologia e na agricultura orgânica: desta vez o destino seria a China.

“É um país importante na sustentabilidade do planeta. Qualquer mexida, eles sacodem o mundo inteiro”, brinca. Como parte da preparação e para ganhar mais autonomia em suas pautas, decidiu investir em um curso de fotografia.

A escolha não foi à toa. Haroldo Castro era um profissional de quem já tinha ouvido falar e cujo trabalho acompanhava pelo blog Viajologia, hospedado no site da revista Época. “Me lembro de ler as reportagens dele e pensar como eu gostaria de ter feito aquela viagem”, conta. A conexão foi imediata, mas o desenrolar da história teria que esperar, pois Giselle já estava com a viagem marcada. Durou seis meses e contemplou uma incursão pelo sul chinês até estacionar na pacata cidade de Kunming, onde ficou três meses. Ela conta:

“Eu flutuava naquele lugar. Me lembro de ficar horas sentada em um parque só observando os chineses dançando, fazendo tai chi chuan”

Foi uma ligação que moveu Giselle para a sua próxima aventura. Haroldo guiaria por conta própria um grupo de viajantes pela Namíbia, após anos de experiência acumulada com viagens pela África, que lhe rendeu o livro Luzes da África. O convite foi objetivo: Haroldo queria que Giselle se juntasse à empreitada e, mais do que isso, que fizesse parte de sua vida de vez, já que nesse meio tempo haviam se aproximado muito. Voltaram ao Brasil casados.

A PESQUISA ACADÊMICA E A EMPOLGAÇÃO VIRARAM NEGÓCIO

Vivendo com Haroldo no Rio de Janeiro, Giselle começou a se aprofundar em políticas públicas brasileiras de combate à pobreza com foco na agricultura. Na época, o Brasil chamava atenção internacional para o tema com a criação de uma lei, ainda vigente, que determina que 30% do repasse do orçamento da merenda escolar nas escolas públicas do país devem ser investidos em produtos de agricultores locais, apoiando a agricultura familiar e comunidades indígenas e quilombolas.

O casal Giselle e Haroldo em trajes de Marajás do Rajastão, na Índia (foto: Haroldo Castro).

Pesquisadora do tema, Giselle soube que esses projetos seriam implementados na África. Em 2015, orientada por Renato Maluf, um dos responsáveis por desenvolver parte dessas políticas públicas por aqui, ela começou seu segundo mestrado, “Práticas de Desenvolvimento Sustentável” na UFRRJ.

Seu objeto de pesquisa se concentrou na agricultura desenvolvida por comunidades na Etiópia. Não por acaso, a seguinte empreitada de Haroldo seria justamente nesse país. Na mesma época em que cursava o mestrado, como presente do destino, Satish voltou a procurá-la. Ele daria um novo curso na fazenda Navodaya. Giselle vislumbrou nisso uma oportunidade de capitalizar e financiar sua pesquisa de campo na Etiópia: nascia assim oficialmente a Sarvodaya. Ela conta como viu nessa proposta a possibilidade de ter um trabalho com mais flexibilidade:

“Já não me encaixava em redação, queria investir em pesquisa, realizar viagens significativas e promover intercâmbios entre Índia, África e Brasil”

E prossegue: “A ideia era proporcionar às pessoas a mesma experiência que tive com as minhas descobertas”. Na prática, isso significava sair do clichê turístico, utilizando os meios de transporte existentes e a estrutura local.

NÃO BASTAM BONS ROTEIROS, É PRECISO SABER ESCOLHER OS VIAJANTES

A primeira viagem organizada pela Sarvodaya, em 2016, foi para a fazenda Navdanya e incluía o curso sobre Gandhi e Globalização, de Satish Kumar, que a própria Giselle havia feito em 2008. A primeira parada aconteceu no Sri Aurobindo Ashram, em Nova Deli. A ideia era assentar os viajantes em um lugar que proporciona meditação, yoga e outras atividades voltadas para a conexão espiritual, comida vegetariana e zero álcool. O lugar, como fala, é simples, mas conta com as facilidades básicas e até mesmo algumas “regalias” como quarto privado, água quente e banheiros ocidentais (os banheiros tipicamente indianos são um buraco no chão). 

A viagem de trem para Navdanya leva cinco horas. Na estação, há um ônibus e mais uma hora de viagem para enfim chegar à fazenda. Em média, os grupos são formados por 12 a 15 viajantes, que investem cerca de 10 mil reais por quinze dias de viagem. Giselle explica que a escolha dos viajantes é importante e ela faz um filtro, que inclui entrevistas presenciais para evitar mal entendidos:

“Se a pessoa não tem um perfil para a viagem, prefiro que ela entenda, pois depende muito de como o viajante vai reagir diante do desconhecido”

O dia na fazenda começa cedo, por volta das seis da manhã, sempre com uma meditação. Os viajantes, divididos em três grupos, são escalados para a realização de atividades manuais diversas (arrumar, limpar, plantar ou cozinhar), que tomam cerca de uma hora. “O viajante começa a olhar para aquela comunidade como sua, desenvolve uma noção de cuidado, de apropriação”, diz Giselle. A aula em inglês acontece na parte da tarde. “Satish é um contador de histórias, uma pessoa super acessível, que toma café da manhã do seu lado. Ele costuma dizer que precisamos vivenciar o que ele pretende ensinar.”

ADMINISTRAR UM NEGÓCIO À DISTÂNCIA EXIGE PACIÊNCIA E CONFIANÇA

“Na primeira vez que fui à Navdanya, demorei semanas para conseguir chegar na fazenda da Vandana Shiva. Eu escrevia Dehradun (cidade no norte da Índia e onde está localizada a fazenda Navdanya) achando que era o nome de uma pessoa, só para ter uma ideia da confusão.” Hoje, atiando do Brasil, além da questão do fuso horário, que muitas vezes a leva a começar a trabalhar às quatro horas da madrugada, Giselle conta que ainda há uma dificuldade de comunicação intrínseca ao contexto e ao local.

Um simples e-mail pode demorar semanas para ser respondido e não é possível marcar um roteiro definitivo. “Às vezes eles param de te responder, mas hoje já sei que está tudo bem. Se eu pergunto demais, eles até acham estranho. Digo para mim mesma que é o universo te ensinando a ter mais paciência”, conta. Em uma viagem para o Butão, a segunda realizada pela Sarvodaya, em 2017, a jornalista conta que, há quatro dias do embarque, os vistos não tinham sido emitidos. Haja confiança!

Passeio com Satish Kumar, fundador do Schumacher College, nas redondezas da Fazenda Navdanya, em 2016 (foto: Haroldo Castro/Viajologia).

A próxima empreitada da Sarvodaya, que acumula três viagens, sendo duas para a Índia e uma para o Butão, já tem destino certo. Em outubro deste ano, Giselle coordenará uma nova jornada para Dehradun, na Índia, mas desta vez o propósito será um congresso sobre conservação da biodiversidade. Ela conectou seus contatos acadêmicos e as lideranças indianas em uma parceria inédita entre o Centro de Referência e Soberania de Segurança Alimentar e Nutricional do Brasil e a fazenda Navdanya, que reunirá viajantes, líderes comunitários e pesquisadores acadêmicos.

Além do congresso, os viajantes irão participar de um festival para conhecer comunidades que trabalham com banco de sementes, de um workshop de agricultura na própria fazenda e ainda passar alguns dias em Rishikesh, a capital mundial da yoga. O custo da viagem é em torno de 3 mil dólares e ainda há vagas para os interessados.

Para quem não pode investir nas viagens da Sarvodaya, uma boa notícia: em novembro deste ano, Manish Jain, fundador da Shikshantar e da Swaraj University, em Udaipur, na Índia, estará no Brasil para ministrar um curso nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraty. O indiano é uma referência no fortalecimento de comunidades, universidades livres e nas discussões sobre modelos de desenvolvimento.

“É um negócio com propósito. Vislumbro a minha empresa como um veículo de promoção de intercâmbio entre países e continentes. O futuro é fortalecer uma rede plural que aprofunde essa troca em torno da conservação da biodiversidade”, diz. Atualmente, além de organizar as viagens da Sarvodaya, Giselle se dedica a escrever artigos. Afinal, apesar de ter se tonado uma espécie de embaixadora entre o Brasil e a Ásia, a jornalista que habita dentro dela ainda insiste em escrever. Sobre essas experiências, claro!

DRAFT CARD

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  • Projeto: Sarvodaya
  • O que faz: Viagens a comunidades rurais da Ásia que trabalham com agrobiodiversidade
  • Sócio(s): Giselle Paulino
  • Funcionários: Apenas a fundadora
  • Sede: Rio de Janeiro
  • Início das atividades: 2015
  • Investimento inicial: Suas próprias viagens
  • Faturamento: 3 viagens realizadas com 37 pessoas
  • Contato: gipaulino@hotmail.com ou (21) 99777-3349
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