A fotografia entrou na vida de André François pelo caminho da pintura, hobby que o então adolescente paulistano cultivava nos anos 1970. O estalo se deu quando ele tinha 17 anos e tentava reproduzir uma foto publicada na revista National Geographic. “Lembro dessa imagem até hoje, era um caubói bem rude, segurando um filhote de gato. Eu tinha achado legal esse contraste. Quando eu pintava, ficava tentando entender cada imagem, o que estava além, o que havia atrás, do lado… E aí caiu a ficha: não é pintura, é fotografia. Acho que parei a tela no meio, nunca mais toquei num pincel.”
Mais do que um passatempo, a pintura (e depois, a fotografia) era uma forma de expressão para o jovem que sofria dificuldades de aprendizado. “Eu sou disléxico. Todo o meu caminho escolar foi comprometido. Até hoje leio devagar, escrevo mal. A arte visual é a minha maneira de me comunicar com o mundo.” O transtorno só foi diagnosticado quando André já beirava 30 anos de idade e impactou sua trajetória escolar. Ele repetia de ano com frequência, era sempre o mais velho da classe. Ao concluir o segundo grau, cogitou fazer faculdade de jornalismo, mas convenceu-se de que seria muito penoso. E decidiu que o ensino tradicional não teria mais espaço em sua vida.
“Até os 30 anos, eu me considerava um cara não inteligente. Hoje, eu traduzo assim: a dislexia é como você ter um problema de visão e tentar ler sem óculos. Você consegue, mas gasta muita energia tentando focar o olho, aproximar ou afastar o livro, e além disso tem que ter uma luz perfeita. No fim, a energia que você gasta é dez vezes maior do que se estivesse de óculos.”
André foi se embrenhando na fotografia, construindo uma carreira. Fez fotos de balé e teatro, migrou para a publicidade e viu que o retorno financeiro era bom. Fez também contribuições para jornais, mas se desiludiu – em vez de liberdade para caçar pautas, ele estaria preso às demandas e decisões do editor do jornal. A vida de fotógrafo publicitário também deixava André desconfortável. “Como técnica, a publicidade é maravilhosa. Mas como essência é muito vazia. E isso me incomodava profundamente.” Ele sempre se sentira movido por questões sociais, mas não sabia como unir esse ímpeto à fotografia. A resposta estava na criação da ImageMagica. “Aí, eu me encontrei de verdade.”
Desbravando o Brasil
Criada em 1995, a ImageMagica desenvolve projetos e documentários fotográficos (na forma de livros) com foco em saúde e educação. Tudo começou de maneira orgânica, não planejada, à medida que André se envolvia em ações sociais. Hoje, a ImageMagica viabiliza iniciativas por meio de patrocinadores, mas no princípio o trabalho era 100% voluntário. Aqueles tempos românticos ficaram marcados por uma aventura itinerante: durante quatro anos, André e um grupo de educadores rodaram o Brasil a bordo do “Bumba”, um ônibus convertido em laboratório móvel. Na cidade de Socorro, SP, atuando junto a escolas rurais e do núcleo urbano, eles puderam ver como os alunos modificavam sua visão de mundo ao entrar em contato com a fotografia.
O “Bumba” acabou aposentado, mas André não parou de perambular pelo país. Nos últimos dez anos, produziu sete livros – todos sobre saúde. “Sempre mexeu comigo como as pessoas são tratadas no hospital. Como, num momento agudo de suas vidas, as pessoas sofrem porque são mal atendidas ou porque o médico é inacessível, se acha um Deus.” Aos poucos, ele foi descobrindo que o assunto tem causas e ramificações que vão muito além do mero descaso no ambiente hospitalar. Seus livros traçam recortes diversos, jogando luz sobre tópicos como medicina humanizada e a situação de pacientes renais crônicos. Para o mais recente, Além da pele (2015), André viajou pelo Brasil registrando o delicado tema da hanseníase, doença ainda cercada por um enorme estigma.
Nessas andanças, o fotógrafo entra em contato com muita gente valente e sofrida. Como Antônia, que um dia pegou o filho doente e foi buscar ajuda, deixando a família em Seringal do Canadá, no Acre. “Ela começou a maior expedição de sua vida. A cidade mais próxima, Feijó, fica a três dias de barco e não tinha acesso à estrada por conta da cheia do rio. Lá, Antônia esperou meses até conseguir carona num avião pequeno para ir a Rio Branco, onde entrou na malha do SUS. Aí, perceberam que o problema era sério e eles foram levados para Goiânia.” Os médicos identificaram um tumor no cérebro do menino e iniciaram o tratamento. “A primeira vez que ela conseguiu entrar em contato com o marido para dizer ‘olha, está tudo bem’ foi 11 meses depois.”
André conheceu Antônia em Goiânia, onde ela e o filho estavam há quatro anos, sem dinheiro para voltar. Ouviu sua história e propôs refazerem juntos a saga, agora de trás para frente. O relato e a viagem até Seringal do Canadá estão documentados em A curva e o caminho (2008), sobre acesso à saúde. “Falei com os médicos, conseguimos transporte e fizemos o caminho de volta. E o filho, depois de quatro anos, viu o pai, o avô e os irmãos.” Infelizmente, o tumor havia sido diagnosticado tarde demais, e o menino morreu dois anos depois. “Antônia me ligou, sabia que eu gostava muito deles… Até hoje falo com ela, todas as pessoas que eu fotografo têm o meu celular. Para mim é uma maravilha saber que ela tem uma foto, um livro que ela usa para matar a saudade do filho.”
Missões pelo mundo
Em paralelo aos livros, André toca o Projeto Vida, um documentário fotográfico sobre a saúde mundial vista de uma perspectiva ampla, que não se reduza ao modelo de curativismo (em que a doença só é tratada depois que os sintomas aparecem). Para ele, saúde e educação andam juntas, sempre. “Segundo uma pesquisa da OMS (Organização Mundial da Saúde), é cinco vezes mais barato investir em educação e promoção social do que cuidar de uma pessoa que já está doente. E isso é mundial.”
Nos últimos oito anos, pelo Projeto Vida, André visitou 14 países. Metade no continente africano (África do Sul, Burundi, Lesoto, Moçambique, Quênia, Ruanda e Uganda), onde epidemias recorrentes de Ebola e elevados índices de contaminação por HIV devastam populações. As viagens duram três meses em média, são acompanhadas por uma jornalista da ImageMagica e contam com apoio logístico de organizações como Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras e a ONU, às quais ele cede gratuitamente o direito de uso das imagens produzidas. “Quando temos uma missão, acessamos esses parceiros para ver que equipe está trabalhando lá. A maioria desses lugares não tem hotel, então precisamos ficar em um acampamento, numa situação bem precária.”
O destino de cada viagem é decidido a partir de uma pesquisa em conjunto com a equipe do escritório em São Paulo. Às vezes, a pauta se impõe pela urgência dos fatos. Duas semanas depois do terremoto no Haiti, em 2010, lá estava André trabalhando entre os escombros da capital, Porto Príncipe; em 2011, logo após o tsunami no Japão, foi ver de perto as consequências do desastre em Sendai e Fukushima, onde as ondas gigantes provocaram um acidente nuclear. E às vezes, a pauta surge por dica de uma das instituições parceiras. O alerta de uma equipe da Médicos Sem Fronteiras baseada no Sudeste Asiático levou o fotógrafo ao Camboja para clicar o drama de jovens prostitutas soropositivas – a mais velha tinha 17 anos e a mais nova, só 12 anos.
De espírito ativista, André destaca em seu panteão particular o americano Lewis Hine (1874-1940), fotógrafo e sociólogo. “Esse cara é o meu herói. As imagens que ele produziu foram fundamentais para produzir uma reflexão e criar leis contra o trabalho infantil.” Outro profissional que André admira é o mineiro Sebastião Salgado, em quem se inspira para abraçar projetos longos, especializando-se num tema. “Estou há 12 anos fotografando saúde. Dou palestras em hospitais, universidades de medicina. É muito maluco, eles convidam um fotógrafo para falar de medicina para médicos! Mas sinto que as minhas imagens têm um efeito profundo na área de saúde. Tem médico que me aborda e fala: ‘André, o teu livro mudou a minha maneira de trabalhar’.”
A importância do vínculo
Conselheiro da ImageMagica, o fotógrafo não atua diretamente no núcleo educacional, mas alguns dos seus insights inspiram os projetos. Um deles é o Phototruck, um caminhão customizado que recicla a ideia do “Bumba” (e pega carona na onda dos food trucks), com vídeo-aulas e atividades para aproximar os visitantes do universo da fotografia. Outro projeto do núcleo é um aplicativo para celulares que vai permitir aos usuários imprimirem e transformarem suas fotos em cartões-postais – revertendo, de forma inesperada, a desmaterialização da imagem promovida pela fotografia digital. A sacada surgiu dois anos atrás, quando André estava na China. “Eu queria me comunicar com as pessoas, mas não mandar um SMS, um e-mail. Queria uma coisa mais quente, mais humana…”
Comunicar-se com as pessoas é essencial para o seu trabalho. Foi assim, de novo, em novembro de 2015, na Bolívia. “Fiquei 20 dias trabalhando em Potosí, uma cidade de mineração onde a média de vida é de 35 a 40 anos.” A principal causa de mortalidade é a silicose, doença pulmonar decorrente da inalação do pó de sílica, presente na mina de prata. “É uma morte horrível, você morre ‘afogado’. Cinco, sete anos em contato com isso todos os dias é o suficiente para te matar.”
A vigilância de cada um dos cerca de 200 acessos da mina é uma ocupação feminina. Uma das guardas é Lucía, viúva de um mineiro e mãe de três filhos. “Levei uma semana para contar a história dela. Eu ia várias vezes, explicava o meu trabalho… Ela tinha medo, não queria ser fotografada.” O medo não era à toa. Os assaltos e os estupros são tão frequentes no local que as mulheres se cercam de cachorros e têm sempre uma banana de dinamite à mão (“dinamite lá é superbarato, custa cinco reais e você compra numa padaria”). Com muito tato, André foi conquistando a confiança de Lucía e ganhou a permissão para entrar na mina. Assim, pôde registrar a sofrida labuta dos trabalhadores do subsolo.
“O vínculo é o mais importante. A fotografia é o mais fácil: a técnica você aprende em dois, quatro anos. Mas até hoje eu aprendo como criar vínculo com as pessoas. É um aprendizado constante.”