por Raul Santahelena
Quem nunca se sentiu frustrado com a empresa de telefonia ou de internet por causa de problemas com a qualidade do sinal? Ou com o banco por alguma cobrança indevida? Quem nunca se decepcionou com o atendimento daquele restaurante do qual esperava tanto? Ou ficou “p” da vida com aquele hotel que tinha fotos tão bonitas no site? Quem nunca se sentiu enganado ao comprar um produto que parecia bem mais eficiente na propaganda? Ou ficou indignado com a forma como sua marca preferida tratou uma questão no Facebook ou dentro da loja? Quem nunca?
Quanto mais nos envolvemos e nos encantamos com as marcas, mais nos decepcionamos e frustramos nossos anseios em um ciclo vicioso de desejo-aquisição-decepção-desejo
As indústrias do espetáculo e da publicidade, profundamente interligadas entre si, consistem essencialmente em construir camadas de distorção da realidade em torno das coisas. Não sou contra isso. A vida precisa de “ludicidade”. Todos precisamos desse encantamento, dessa atmosfera de ilusão e magia envolvente que faz da nossa existência algo mais legal.
Mas precisamos ser todos completamente contra o uso de recursos para ludibriar as pessoas e vender a elas uma experiência que na realidade não será consumada, entregue, honrada. A partir daí, começam as camadas de bullshit em torno da realidade: quando a marca se distancia em demasiado do centro, do mundo real, sem deixar claro para as pessoas que aquilo é lúdico e fantasioso.
O combinado não sai caro. Enquanto as narrativas envolventes, as histórias e personagens lúdicos e os recursos de magia — que tanto a indústria do espetáculo quanto a indústria publicitária usam com maestria — forem utilizados para criar um universo de encantamento, não vejo problemas. Mas no momento em que estes mesmos recursos forem utilizados para vender algo que não será cumprido, uma experiência que não será entregue de fato, não será consumada, honrada, aí meus amigos, estamos entrando no ardiloso terreno do bullshit. Um discurso vazio para tentar enganar as pessoas.
Portanto, não sou contra o uso dessas camadas de distorção da realidade em torno da verdade se elas tiverem como objetivo nos encantar e fazer das nossas vidas um lugar melhor para se viver e sonhar. Entretanto, de forma alguma essas camadas devem ultrapassar esse limite tênue que separa o encantamento da enganação.
As ferramentas de ilusão devem ser usadas apenas para seduzir e não para ludibriar as pessoas a consumirem algo que não será entregue de fato. Simples assim
Quando a gente vai a um show de mágica sabemos que estamos ali para sermos iludidos. E isso não é um problema. Afinal, todos vão a um show de mágica com essa expectativa. A gente vai com o objetivo de se divertir e se entreter, não é mesmo? Trata-se de um acordo fechado de forma transparente entre o ilusionista e você. Agora, quando essa mesma técnica de ilusionismo é usada para lhe enganar, sem que você sequer saiba que está sendo ludibriado, configura má fé, falta de ética, bullshit. E ninguém pode compactuar com isso.
Cerca de 76% das pessoas não acreditam no que as marcas falam na publicidade. Por que isso acontece? Será que não é por já terem se decepcionado tantas vezes? É por isso que há uma geração de jovens cidadãos e consumidores que chega por aqui, na zona de consumo e poder de voz, exigindo cada vez mais franqueza das instituições, não admitindo mais esse blá blá blá que marcas e organizações insistem em usar em seus discursos. Como resposta, diante desse quadro inflamado e em ebulição latente, algumas marcas já estão buscando reverter essa situação fazendo da verdade um incrível vetor de engajamento. E, com isso, vêm conseguindo se conectar ao que é relevante para as pessoas em uma dimensão que a comunicação e o marketing não conheciam até o momento.
Truthtelling é o nome da estratégia que usa a verdade como narrativa, como fluido das conversas que a marca nutre com as pessoas
É também o nome do meu novo livro e da teoria nele apresentada, mas não apenas isso. É o nome de um movimento por um mundo mais humano e genuíno que clama por mais respeito e autenticidade nas relações, mais franqueza no discurso e mais transparência na atuação. Tudo isso exigido por consumidores e cidadãos cada vez mais conscientes, unidos em torno de um mesmo ideal: um mundo mais verdadeiro.
E quando digo que Truthtelling é uma estratégia, não entenda como uma estratégia de comunicação, como uma parte isolada na extrema ponta da cadeia de valor. Eu me refiro à estratégia do negócio como um todo, de cabo a rabo. A autenticidade e franqueza do Truthtelling devem revolucionar e contaminar toda a cadeia de valor do negócio, desde sua origem, aos fornecedores, passando pelo “pátio de fábrica”, até o comercial de TV, a conversa no Facebook e o relacionamento com todos os seus públicos. Caso contrário, vira bullshittelling.
Martin Lindstrom afirma que uma marca representa a soma de todas as mentes e almas de cada pessoa que tenha tido qualquer forma de contato com ela ao longo do tempo. Isso quer dizer que a sua marca está comunicando a todo micromomento. Em cada aperto de mão, em cada telefonema, em cada conversa. Daí a importância de existir profunda coerência entre o que sua marca diz e o que ela faz. As pessoas tendem a valorizar muito mais o fazer do que o dizer. Um não anda sem o outro. Um não sobrevive se o outro estiver incongruente com ele.
Hoje, mais do que nunca, para conquistar o coração das pessoas, as marcas precisam erguer bandeiras que representem causas relevantes na vida delas.
E a verdade é uma excelente causa para uma marca empunhar aos quatro ventos. A boa notícia é que neste mundo ultra-mega-hiper conectado, boas histórias viajam rápido. Mas, sempre vale lembrar: histórias ruins se favorecem do mesmo benefício. O desafio da atenção enfrentado pelas marcas nas últimas décadas, em grande parte como decorrência dessa imensa revolução nos hábitos de consumo de conteúdos que estamos vivendo, só contribui para que tudo torne-se ainda mais difícil para nós, comunicólogos.
Se pararmos para pensar, constatamos que hoje a publicidade vem se tornando uma forma de punição para as pessoas. Afinal, para uma pessoa conseguir ouvir seu Spotify em paz ou assistir aos seus vídeos no YouTube ela é “punida” com publicidade. Tudo bem que é cada vez maior a consciência de que esse é o “preço” que se paga por não se pagar preço algum para consumir esses serviços.
Um estudo realizado em 2016 pela Nielsen aponta que 59% dos entrevistados globais não se importam que haja publicidade se eles puderem visualizar o conteúdo gratuitamente, enquanto 51% concordam que os anúncios exibidos antes, durante ou depois da programação de um vídeo sob demanda dão boas ideias de novos produtos para experimentar.
Precisamos refletir sobre a evolução do papel das marcas em nossas vidas. O “skip ad” é o novo zaping do controle remoto? Como reverter esse quadro? Como fazer com que a publicidade não seja vista como algo compulsório e imposto, características que as pessoas costumam não gostar, ainda mais em se tratando das novas gerações?
Só há um caminho para as marcas: é o caminho da relevância, da franqueza e da autenticidade
Se a sua mensagem for relevante, franca e autêntica, ela será vista naturalmente como parte de um conteúdo ou como um conteúdo à parte, não importa. Mas ela será vista. Relevância é mostrar e falar, de forma franca e autêntica, o que as pessoas querem ver e sobre o que as pessoas querem conversar. É não ser um outsider sóbrio e mala em uma festa que já está embalada com todo mundo dançando feliz.
Acima de tudo, para ser relevante no mundo de hoje, com as pessoas cada vez mais céticas e espontâneas, é preciso ser verdadeiro, próximo, humano. É preciso cativar a empatia das pessoas com cordialidade e autenticidade. Nós, comunicólogos e gestores de marcas, devemos acordar para esta realidade para seguir atuando com sucesso em meio a uma sociedade em profunda mutação.
Outro estudo, este realizado pelo grupo Havas, com mais de 300 mil pessoas em 33 países, concluiu que 74% dos consumidores não se importam se a maioria das marcas estará viva amanhã. E olhe que, infelizmente, este não é um sintoma isolado de que há, sim, um desgaste nas relações entre as marcas e as pessoas. A mesma pesquisa revelou que 75% das pessoas esperam que as marcas contribuam mais para o bem-estar e qualidade de vida, embora apenas 40% acreditem que as marcas o façam.
O estudo mostrou ainda que marcas meaningful podem incrementar seu share of wallet em nove vezes e seus KPIs (indicadores-chave de performance) em 137%. Marcas com significado profundo — em inglês elas são conhecidas como meaningful brands — são aquelas que representam valores relevantes na cabeça das pessoas. E que comungam com elas de um propósito único e profundamente significativo.
Thomas Kolster, autor do livro Goodvertising, nos lembra: “Ninguém gosta de se relacionar com pessoas que não dão a mínima para os outros. A gente se aproxima de quem gosta da gente. Com as marcas é a mesma coisa”. Ninguém se relaciona com pessoas que não são verdadeiras, não é? O mesmo acontece com as marcas.
A verdade inspira, engaja, fideliza, envolve e — claro! — vende mais
Being cool is not enough, não basta ser legal, gente boa. Cada vez mais é preciso ser autêntico e verdadeiro com seus princípios e valores. E estes valores devem se conectar intimamente com os seus públicos de relacionamento. Todos eles. Cada vez mais o que inspira a confiança e o engajamento das pessoas é a comunicação olho no olho.
Michael Wolff, diretor editorial da Adweek, afirmou recentemente em Cannes: “O fato é que as marcas fazem o que é bom para elas. Às vezes, isso encontra uma interseção com o que é bom para as pessoas também”. O problema é que isso vem se tornando raro. E não haverá mais espaço para esse encontro casual. Paul Polman, CEO da Unilever, alertou: “Na era em que vivemos, as agências deveriam passar a se preocupar mais com o que pensam os consumidores do que com o que pensam os seus clientes”.
“O futuro da propaganda consistirá em produtos que tenham marketing embedados neles”, preconizou Jeff Hicks, CEO da CP+B. O que isso quer dizer, exatamente? Conforme as marcas aprenderem a conceber produtos e discursos que sejam profundamente alinhados com o que as pessoas sentem e anseiam, esses produtos já nascerão com propaganda embutida neles. A marca e todas as suas manifestações respirarão uma filosofia tão envolvente e marcante, que a propaganda servirá para divulgar todo esse complexo mix integrado de atributos já percebidos na atuação.
David Jones, CEO global da Havas, lançou o livro Who Cares Wins: Why Good Business Is Better Business e ofereceu ao mercado uma visão do que imaginava ser o futuro das marcas: “Eu estava tentando definir uma visão diferente da criatividade, do ponto de vista comercial. Em nosso segmento, somos geniais no uso da criatividade para mudar o comportamento das pessoas, para levá-las a comprar o produto A em vez do B. Mas também é possível usar a criatividade para mudar o comportamento das pessoas de forma a tornar o mundo um lugar melhor. Acredito que não se trata apenas de uma oportunidade, mas de uma obrigação para nós, que fazemos parte da indústria da criatividade. E podemos usar nossos talentos para abordar alguns dos maiores problemas que o mundo enfrenta. Você sabe qual é a melhor forma de conquistar o respeito do seu público? Tenha uma marca respeitosa”. No livro, Jones defende o que considera as novas regras dos negócios, sejam eles de quais segmentos forem: transparência, autenticidade e agilidade.
Mas o que é, exatamente, uma marca autêntica? É aquela que trata bem os clientes, protege sua privacidade, cumpre suas promessas, oferece qualidade, comunica com honestidade, age com integridade e é genuína e real, segundo a consultoria Cohn & Wolfe, que elabora anualmente o ranking das 100 marcas mais autênticas do mundo, conhecido como “The Global Authentic 100”.
Toda marca é uma história que representa valores e tem significado na cabeça das pessoas. É preciso contá-la de forma envolvente mas também autêntica, relevante e verdadeira. Como defendia Carl Jung: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana”.
Raul Santahelena, 40, é gerente de Publicidade da Petrobras, professor de Planning da Miami Ad School/ESPM e autor dos livros Muito Além do Merchan (Ed.Elsevier, 2012) eTruthtelling: por marcas mais humanas, autênticas e verdadeiras (Ed.Voo, 2018).
A nossa atenção determina a forma como experimentamos o tempo e a realidade. Por que, então, deixamos que as empresas tratem um recurso tão vital como mera mercadoria? Kim Loeb alerta para os perigos da Economia Extrativista da Atenção.
As marcas mais lembradas pelos brasileiros no início da pandemia foram aquelas que se posicionaram e humanizaram suas relações comerciais. Para Larissa Magrisso, VP da W3haus, e Renata Steffen, sócia da Laboota, é hora das empresas repensarem (de fato) suas estratégias.