Nascida e criada na periferia da Zona Leste de São Paulo, Silvana Bento, 46, trabalhava em um banco de sangue, auxiliando na preparação para hemodiálises, quando notou que havia um perfil comum entre pacientes que atendia: mulheres trans.
Silvana ficou intrigada e, ao conversar com muitas delas, percebeu que havia uma relação entre problemas renais e o ato de “aquendar a neca” (esconder o pênis e os testículos, na expressão do pajubá, dialeto usado por parte da comunidade LGBTQIAP+).
Em geral, isso era feito com uso de uma fita que empurrava o órgão genital para cima. Como o procedimento não é tão simples, muitas mulheres trans e travestis só urinavam uma vez ao dia; além disso, a fita provocava feridas que favoreciam a proliferação de bactérias.
Quando Luiza, uma das pacientes com quem Silvana conversou, morreu em decorrência desses problemas, a técnica em hemoterapia resolveu abraçar de vez a causa. Criou – sem noção formal de design de moda ou corte e costura – um modelo de calcinha com um suporte em formato de funil entre as pernas que permite manter a virilha sem volume aparente.
A peça, diz Silvana, se mostrou efetiva desde o início. Mas ela ainda levou um tempo até conseguir montar a linha de produção da Trucss, sua marca de calcinhas para mulheres trans. Enquanto procurava costureiras para fabricar as roupas íntimas, ela topou com a transfobia: “Deus não gosta disso”, ouviu de uma delas.
Em 2017, decidida a se dedicar à Trucss em tempo integral, Silvana patenteou, a duras penas, seus modelos de calcinha. Hoje, ela se orgulha do reconhecimento da marca. O portfólio evoluiu e agora inclui corsets, biquínis e maiôs. Entre as clientes estão as cantoras Linn da Quebrada, Gloria Groove e Liniker, que já manifestaram apoio à marca.
“Acho que elas sabem o ‘corre’ que é para quem é de quebrada conseguir empreender, então se uniram para fortalecer a marca”
Recentemente, uma propaganda da Trucss foi exibida na TV Record. A escolha do canal foi por insistência de Silvana, que queria quebrar paradigmas ao veicular sua marca em uma emissora conhecida pelos posicionamentos conservadores.
Mulher cis e católica, hoje ela é carinhosamente chamada de “mãe preta” por algumas de suas clientes trans. Leia a seguir a conversa de Silvana Bento com o Draft:
Como foi a sua juventude e o seu contexto familiar?
Sou nascida e criada no bairro de Guaianases, na zona leste da capital paulista.
Passei 15 anos trabalhando em creches, como professora de educação infantil, mas de repente me vi no desespero de conseguir uma renda maior
Resolvi, então, fazer um curso técnico de hemoterapia e comecei a trabalhar em um banco de sangue, no preparo de pacientes que iam fazer hemodiálise. Foi lá que eu tive o primeiro contato com a realidade das mulheres trans.
Como foi este contato?
Comecei a perceber que tinham muitas mulheres trans entre as pacientes da hemodiálise e passei a conversar com elas para entender por que isso acontecia, qual era a relação.
Entendi que tinha a ver com medo de usar o banheiro feminino e com a forma com que prendiam a genitália.
Elas me explicaram que, normalmente, usavam uma fita que puxava a genitália para trás, desde a virilha até o cóccix, e que precisavam empurrar inclusive os testículos para cima, para conseguir prender. Algumas delas, no desespero de não ter a fita, acabavam usando cola Super Bonder
Só para prender, elas já levavam, em média, 30 minutos e só dava para tirar usando água, então, normalmente, isso tinha de ser feito no banho. Muitas delas saíam de manhã para trabalhar e só voltavam à noite, e só usavam o banheiro ao chegar em casa.
É comum que a pele fique cheia de bolhas, assaduras, feridas, e que o trato urinário seja afetado pela técnica. As bactérias da urina acabam subindo para o rim, e é aí que o procedimento de hemodiálise precisa ser feito.
Às vezes o problema nem é urinar, mas a própria dobra da genitália pode levar a um quadro de gangrena.
Qual foi a importância, para a criação da Trucss, do que você acompanhou de perto?
Eu conheci uma paciente, a Luiza; a gente brincava, cantava, dançava durante o tratamento…
Ela veio a óbito um mês depois da internação, em 2016. Foi quando eu me dei conta de que as pessoas estavam, de fato, morrendo por ficarem “aquendadas”.
Foi então que decidi criar a primeira a calcinha que eu tinha em mente – sem nem saber costurar, sem noção nenhuma, mesmo
Eu sabia que era algo simples de colocar em prática. Já tinha feito uma pesquisa, observando travestis e mulheres trans pelas ruas de São Paulo para entender como elas colocavam a fita; mas, quando a Luiza morreu, percebi que era hora de parar de pesquisar e colocar a mão na massa.
Como foi o início da marca, desde a concepção e patente da ideia da calcinha até a fabricação dos primeiros itens? E como você conheceu a Renata Martins, designer de moda com quem trabalha?
Além de não ter noções de corte e costura, eu também não sou boa de desenho, então ninguém entendia o que eu queria fazer.
Peguei o que tinha em casa, cortei um pedaço de pano da saia da minha filha e fiz um primeiro protótipo. Ficou horrível, mas tenho a peça até hoje.
Demorei a achar uma costureira: quando eu dizia qual era a ideia do produto e por que eu tinha criado, ninguém queria fazer… Eu tinha que mentir, porque, quando dizia que era uma calcinha para colocar o pênis, percebia a discriminação. Uma pessoa chegou a dizer que eu iria para o inferno, porque “Deus não gosta” disso
Até que finalmente encontrei uma pessoa, a Renata Martins, designer de moda que trabalha comigo até hoje. Temos 16 tipos de produto ao todo, de diferentes tamanhos. Mas, mesmo quando já estávamos vendendo as calcinhas, eu ainda não tinha entendido que estava empreendendo.
Quando você resolveu deixar de trabalhar como técnica em hemoterapia para se dedicar inteiramente à Trucss? Essa virada de chave teve a ver com o fato de ser selecionada para um programa da Prefeitura de São Paulo (o Vai Tec, que ofereceu 33 mil reais e mentoria para o desenvolvimento do negócio – e foi pauta aqui no Draft)?
Teve a ver com o programa, sim, mas entendi que estava empreendendo principalmente quando percebi que conseguia fazer muita coisa sem ter dinheiro. Por exemplo, para patentear o primeiro modelo da calcinha, tive que vender um guarda-roupa usado no valor de 70 reais.
Paguei a primeira patente, que era de inovação, mas não conseguia pagar um escritório para cuidar dos trâmites todos relacionados a isso, então eu me informava vendo vídeos no YouTube sobre o assunto.
Eu mesma enviava os desenhos, os relatórios e todas as informações que pediam. Os outros protótipos foram registrados com patentes de modelo e utilidade, tudo porque eu mesma me virei. E, graças a Deus, deu certo.
Quais foram as pessoas que contribuíram para o crescimento e a popularização da marca? Quem te ajudou?
No início, só minha família e a própria Renata ajudaram. Ela, assim como eu, também não tinha contato com a comunidade LGBTQIAP+ antes da Trucss.
Não tínhamos mulheres trans no nosso círculo de amizade, mas, aos poucos, fomos sendo acolhidas por elas, por saberem que estamos ali para somar. Realmente, abraçamos a causa.
A Trucss tem entre clientes a cantora Linn da Quebrada, que usou suas peças inclusive no Big Brother Brasil. Como funciona o trabalho de popularizar a marca e buscar parcerias como esta?
A Linn realmente comprou peças da marca, o que é até mais legal do que se fosse somente uma parceria de divulgação.
As coisas foram acontecendo no boca a boca, uma cliente ia falando para a outra… De repente eu tinha a Linn, a Liniker, a Gloria Groove, várias cantoras que eu ficava sabendo que tinham adquirido as peças
Acho que também teve o fato de que elas sabiam o “corre” que é para quem é de quebrada conseguir empreender, então se uniram para fortalecer a marca.
A partir disso, fui procurada pela agência África, que se ofereceu para gravar a primeira propaganda da Trucss.
Queríamos que a exibição fosse, propositadamente, veiculada na TV Record, para quebrar paradigmas, porque a emissora é conhecida por ser conservadora.
Houve resistência por parte da emissora na veiculação da mídia?
Até teve, mas a gente tinha uma estratégia bem definida para quebrar aquelas barreiras. Conversamos muito e, enquanto a negociação acontecia, eu, que sou católica, ficava nas minhas orações para dar certo. E deu.
A comunicação da Trucss usa termos (como “aquendar”) oriundos do pajubá , dialeto que combina expressões da língua portuguesa e de grupos étnico-linguísticos da África Ocidental, como o iorubá, e que é utilizado pela comunidade LGBTQIAP+. Desde sempre foi assim? O uso do pajubá é uma maneira de reforçar ainda mais a presença entre seu público-alvo?
A gente aprendeu alguns termos do pajubá, então quem usa este vocabulário se sente incluído pela nossa comunicação. Mas acho importante dizer que eu vendo calcinha para mulheres. Não digo que são produtos específicos para trans, até porque tem cliente que quer ter privacidade em relação a sua própria intimidade.
Você costuma dizer que não vende calcinhas, mas sonhos. Quais foram os retornos mais emocionantes que você já recebeu de clientes da Trucss sobre o uso dos produtos?
Um dos mais emocionantes foi de uma mulher de 30 anos, que foi à praia pela primeira vez na cidade dela, porque se sentiu confortável usando uma calcinha da marca.
Ela nunca tinha pisado na areia, porque tinha vergonha, tinha medo de estar na água e a fita [com a qual prendia o órgão genital] sair, descolar. Foi ela quem me falou que eu realizo sonhos
Passei a dizer que “não vendo calcinhas, mas sonhos” porque entendi que a gente realmente vendia realizações como esta.
E você já fez alguma ação social com as calcinhas? Doando a quem não pode pagar, por exemplo?
Faço por mim mesma, só não divulgo, mas normalmente entro em contato com casas de acolhida [de pessoas em situação de vulnerabilidade], pesquiso os tamanhos de calcinhas de que as meninas precisam, vou até os locais e entrego os produtos, até mesmo com cartinhas.
O próximo passo é colocar as peças no SUS, para que sejam disponibilizadas gratuitamente nos postos de saúde
Aliás, quero aproveitar para comentar que ninguém precisa ser LGBTQIAP+ para ajudar este público. Quem se sentir à vontade para oferecer curso de capacitação, por exemplo, ou com oferta de emprego, pode entrar em contato com a gente.
Como é trabalhar lidando tão intimamente com uma causa? Há maneiras de separar vida pessoal e trabalho? Ou a potência está justamente no fato de ter abraçado uma pauta tão importante para a comunidade trans e se dedicar a ela?
Desde o início, é meu rosto que está à frente [da Trucss], até como uma forma de proteger a patente porque, se você está com a cara ali exposta, todo mundo sabe que quem patenteou foi você.
Eu também envolvo minha família, meu filho faz algumas entregas para clientes. Com isso, não consigo separar as coisas.
Quero mesmo esse contato, ser a mãezona de todo mundo. Algumas meninas trans me chamam de mãe preta, então até prefiro não separar as coisas. É mesmo uma questão de abraçar a causa.
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