Nada mais chato do que aquela discussão “água e óleo”, com opiniões que não se misturam. O torcedor que só xinga, o militante sem autocrítica. Quando o debate público descamba para o Fla-Flu de idéias, como numa briga política em que ninguém se ouve, o melhor é convocar o bom senso para fugir da polarização sem sentido.
Dá para fazer isso num debate importante como o do uso de tecnologia na produção agrícola. Comida todo mundo gosta, e tecnologia por si só já é um assunto quente: aparece uma novidade e já rola uma divisão entre “maravilhados” e “apocalípticos”.
“Uma ala apresenta a tecnologia como uma maravilha que todos consumirão sem problemas e a outra procura demonstrar o lado diabólico da novidade, que fatalmente levará os consumidores e o país ao Armageddon”, escreve, com propriedade, o professor Paulo Paes de Andrade, do Departamento de Genética da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
Quando o tema é o emprego de produtos químicos e biológicos na lavoura, a polêmica começa no nome: agrotóxico ou defensivo? Há quem ache que cada termo puxa a sardinha para um lado, como se houvesse uma guerra velada entre a indústria e o consumidor. Nada disso.
Aos fatos: “agrotóxico” é a definição da legislação brasileira (lei 7.802, de 1989), dada a agentes que “visam alterar a composição da flora ou da fauna, para preservá-las da ação danosa de seres vivos nocivos”. A indústria costuma usar o termo “defensivo”, pela ênfase no combate a pragas, enquanto pesquisadores preferem a classificação pelo tipo de praga controlada: herbicida (plantas), inseticida (insetos), fungicidas (fungos), raticidas (ratos), etc..
“O único termo que não gosto é veneno, pois toda substância é um veneno em potencial, o que define o efeito é a dose”, opina o engenheiro agrônomo José Fernando Grigolli, da Fundação MS, empresa sem fins lucrativos de produtores de Mato Grosso do Sul.
Sem produtos químicos e biológicos não haveria comida para todo mundo com a população que temos hoje. A agricultura orgânica tem enorme potencial e avança no país, mas uma produção 100% natural ainda é uma utopia. Os custos seriam no mínimo 30% maiores e haveria menos alimentos, explica Décio Zylbersztajn, professor e fundador do Centro de Conhecimento em Agronegócios da FEA (Faculdade de Economia e Administração) da USP.
As âncoras da agricultura moderna são grandes culturas (soja, milho, trigo, arroz) que podem ser arrasadas quando uma população de insetos encontra hectares e hectares de seu prato preferido.
Nessas plantações homogêneas, o controle de pragas é essencial para viabilizar a lavoura, manter a produtividade e gerar renda. Gigante do agronegócio, o Brasil lidera entre os consumidores de pesticidas (usa quase um quarto do volume mundial).
Esses mesmos produtos viabilizaram técnicas modernas de agricultura, como o plantio direto, que alçaram o país ao pódio na produção de commodities.
Mas e aí? Os agrotóxicos/defensivos são heróis ou mocinhos na alimentação humana? Ao ouvir gente da pesquisa, produção e consumo, para pautar essa conversa pela informação, a conclusão é que se trata de uma história de vida real, sem maniqueísmos de novela, que depende do jeito como as coisas são feitas na prática, no campo. Como afirma Dionisio Gazziero, da Embrapa Soja:
“Se usar [o agrotóxico/defensivo] adequadamente, na época, dose e jeito certos, você tem uma tecnologia que ajuda. Se não, pode haver efeitos colaterais, como um remédio usado fora da receita”, afirma Gazziero, fazendo uma comparação popular entre estudiosos da área.
A analogia recorrente é com o uso de antibióticos: se usado fora das recomendações médicas, o remédio pode apenas agravar a situação da infecção e fortalecer o organismo invasor no longo prazo.
CUIDADOS AMBIENTAIS E A BUROCRACIA DO BEM
A lei brasileira de agrotóxicos é referência no mundo. Divide responsabilidades entre os elos da cadeia e submete todo produto a uma longa bateria de testes em três ministérios (Saúde, Agricultura e Meio Ambiente). Nada que seja danoso ao ambiente ou ao homem pode chegar de forma legal ao mercado. O setor até reclama da velocidade do governo para liberar novos registros – são cerca de 130 por ano, e uma fila de espera de mais de 1.500 formulações.
“O protocolo desses estudos no governo é um dos mais rígidos que se conhece, e os riscos hoje são infinitamente pequenos em relação aos benefícios desses produtos”, afirma o professor Pedro Christofoletti, da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), da USP.
Também há técnicas que ajudam a reduzir a deriva (dispersão dos defensivos para áreas fora do alvo) dessas substâncias, lembra Robson Barizon, da Embrapa Meio Ambiente, especialista na dinâmica dos agrotóxicos na natureza. Pulverizadores de pressão mais baixa e espessantes que deixam as gotas dos produtos mais pesadas são exemplos. A aplicação aérea representa 20% do volume de pulverizações e tem uma série de restrições, como distância mínima de 500 metros de povoações e captações de água.
“Tudo depende do uso. Periculosidade não quer dizer risco. Temos, por exemplo, usina nuclear no Brasil. A radioatividade tem alta periculosidade, mas risco baixo. Podemos reduzir muito o risco dos defensivos fazendo uso seguro”, afirma o pesquisador.
Um problema sério, segundo especialistas, é a decadência da assistência rural no Brasil. Nos anos 1980, 77% das cidades tinham cobertura de extensão rural, uma linha direta de conhecimentos para o campo. A empresa nacional que cuidava disso foi extinta em 1990, no governo Collor de Mello (1990-1992), e a situação desde então só piorou.
O setor aposta agora na tentativa do governo federal de retomar a prática, desta vez com a Anater (Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural), criada por decreto em maio de 2014. “Hoje o grande produtor tem boa estrutura, mas falta capacitação ao pequeno agricultor, melhorar a qualidade das informações que chegam”, afirma Barizon, da Embrapa.
Qualidade da informação, neste caso, é mostrar ao produtor a importância do manejo integrado: combinar o uso dos herbicidas com tecnologias biológicas, como microvespas e produtos à base de fungos e bactérias, e fazer rotação de culturas e de herbicidas na lavoura. Tudo isso ajuda a evitar que as culturas se tornem resistentes aos defensivos.
O PAPEL AMBIENTAL DA INDÚSTRIA
Enquanto a nova iniciativa de assistência rural do governo não decola, o agronegócio brasileiro faz sua parte e mostra que dá para liderar em produção e sustentabilidade ao mesmo tempo. O setor construiu nos últimos anos um estudo de sucesso com a destinação das embalagens dos defensivos.
Em 2001, com a criação do Inpev (Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias) e, foi desenvolvido um sistema de gestão que hoje recolhe e destina 94% das embalagens primárias (que entram em contato direto com o produto) para reciclagem ou incineração. Para se ter uma idéia, esse percentual não passa de 70% em países como Alemanha e Canadá – nos EUA, fica em 30%.
Na Monsanto, por exemplo, as embalagens de 20 litros de sua linha de herbicidas levam 80% de resina reciclada na Campo Limpo, empresa criada pelo setor de defensivos.
“Com isso fechamos o ciclo das embalagens dentro da própria indústria”, afirma Wagner Pereira, engenheiro de desenvolvimento de embalagens da Monsanto.
Tais experiências mostram que a agricultura moderna e os cuidados com o meio ambiente e a saúde humana podem e devem caminhar juntos. “É fundamental tratar esse assunto [uso de defensivos] de forma técnica, sem ideologia, paixão ou partido”, afirma Gazziero, da Embrapa.
“O importante é discutir dados e informações concretas sobre uma ferramenta que tem que ser usada com todas as precauções necessárias”, completa João Cesar M. Rando, presidente do Inpev. Nessa história, portanto, não há heróis nem vilões, mas um caminho de bom senso e responsabilidade social aberto ao país.