Em 2013, num almoço em Cannes, Ajaz Ahmed, CEO e founder da AKQA, tentava “seduzir” o redator Hugo Veiga e o diretor criativo Diego Machado a embarcarem na sua visão de uma possível filial brasileira da rede global de agências de propaganda.
Hugo e Diego estavam na mira de todo o mercado: tinham acabado de ganhar o Grand Prix de Titânio com “Dove Sketches”, sensível obra-prima publicitária criada por eles na Ogilvy, em São Paulo.
Será que dariam conta da pressão de repetir o sucesso? Ou seriam só uma one-hit band?
Ajaz traçou um paralelo com o Radiohead. Nos anos 1990, depois de lançar “Creep”, a banda buscou refúgio numa casa no interior da Inglaterra, onde uma “mãe” paparicava e cuidava de tudo. Do autoexílio nasceria o álbum OK Computer.
O founder imaginava um ambiente assim, onde a criatividade fluiria sem amarras.
“Ele disse: Vamos colocar vocês numa casa, com alguém que seja o ‘coração’ dessa casa, e do convívio fluido com as pessoas, clientes, comunidade, vão sair coisas incríveis…”, lembra Diego. “E a gente: ‘cara, que loucura, o que está acontecendo nesse almoço?!’ [risos] Tudo fazia muito sentido, mas parecia muito utópico.”
A utopia virou a AKQA Casa, o hub criativo da rede. No ano passado, Diego e Hugo voltaram a vencer em Cannes, agora com duas peças que são pura porrada e poesia: “Bluesman”, de Baco Exu do Blues, e a campanha “Air Max Graffiti Stores”, para a Nike.
Hugo, 40, é português radicado no Brasil; Diego, de São Paulo, tem 33. Olhando para trás, eles lembram que nem se empolgaram muito com a ideia daquele almoço.
“Para nós, a AQKA era a ‘Nasa da propaganda’, muito tech”, diz Hugo. “Nosso background era storytelling, não parecia um fit muito bom…”
Ajaz cativou os dois com a fala mansa, o jeito humilde (Diego o comparou ao “Dalai Lama da propaganda”); ainda assim, eles resistiam à proposta. Hugo diz:
“Não queríamos ser homens de negócio, lidar com planilhas… E já tínhamos visto agências passarem anos só em processo de concorrência: são os mais desgastantes, o pessoal vira noite, trabalha no fim de semana…”
Outro desconforto era com o modelo de receita pautada em compra de mídia, em que as agências ganham não pelo trabalho criativo, mas pela veiculação, que já vem pré-direcionada (se vai ser um anúncio de revista ou na TV, por exemplo).
“Muitas vezes não fazia sentido, não era o melhor formato para chegar no público”, diz Diego. “Mas nunca tínhamos imaginado que seria possível quebrar algo tão sistêmico.”
A cada garfada e gole de vinho, Ajaz desmontava argumentos. A AKQA tinha gente para cuidar das burocracias. E compra de mídia não era seu modus operandi: eles cobrariam dos clientes por hora, a partir da criação.
Depois, visitando as filiais de Paris e Londres, Hugo e Diego foram se convencendo de que aquela “utopia” era possível. Desde que criassem um ambiente acolhedor que inspirasse as pessoas. Segundo Diego:
“A gente trabalha com criatividade. Assim como os músicos, temos de estar inspirados para criar. Claro, eles têm um deadline com a gravadora, os fãs para agradar… Nós também temos deadline com o cliente e um target com que precisamos falar. Mas não somos robozinhos numa linha de montagem”
Felicidade era palavra-chave. Em vez de um arquiteto de escritórios, Hugo e Diego foram atrás de alguém que fazia projetos de casas e restaurantes.
Eles queriam um ambiente de trabalho que pudesse ser invadido pelo cheirinho de bolo e café, com mesão comunitário e ducha para o banho de quem viesse de bike.
A AKQA Casa funciona no Alto de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo. Em 2019, foi considerada “o estúdio mais feliz” do Grupo WPP (dono da AKQA), com nível de engajamento estratosférico de 98%.
“Se fosse definir o que fazemos num tuíte, diria que procuramos as soluções mais desformatadas para ambições ou problemas de clientes através do processo mais feliz”, diz Hugo.
Ambiente 100% “despressurizado” não existe. A indústria de publicidade é pesada, admite Hugo; eles tentam proteger o time e o trabalho.
“Alguns são talentos que tinham desistido da publicidade. Teve um freelancer que disse que deveríamos colocar [um letreiro na porta] ‘Rehab de Criativos’. A pressão aqui é por fazer bons trabalhos, mas não existe aquilo de ‘vocês têm que trazer vinte ideias’, por exemplo”
Quem ajuda a garantir a felicidade (e alguns puxões de orelha) é a Mazé, a “mãe” (ou “coração”) da casa. Diego e Hugo conheceram sua funcionária número um ainda durante a reforma, quando a agência ocupava um Airbnb em Pinheiros.
“A Mazé é ‘mãe’ mesmo, arretada, dá bronca em quem não lava a louça… Faz sopa no inverno para as pessoas levarem para casa, porque alguns moram sozinhos”, diz Hugo. “Ela tem esse cuidado de estar todo mundo alimentado.”
Desde o começo, a visão de Ajaz era criar uma casa aconchegante ganhadora de prêmios de arquitetura e que estivesse inserida no roteiro cultural de São Paulo.
Hugo e Diego se empenharam em dar espaço para artistas periféricos, sem lugar para expor, e hospedar eventos de projetos como o Fechado para Jantar, que serviam como chamarizes para negócios.
“Ganhamos clientes nesses jantares”, diz Diego. “As pessoas perguntavam: ‘Que casa é essa? É uma agência de publicidade?! Caramba, que legal, tenho a marca tal, quero conhecer esses caras’…”
Abrir-se à cidade era uma forma de estar “na conversa das pessoas”, clientes em potencial que queriam frequentar ambientes onde a criatividade estivesse fervilhando.
Em 2018, um evento próprio, o AKQA Stage, misturou nostalgia e futurismo com um show do Lumen Craft. “Saiu no Catraca Livre, fez fila, não coube todo mundo”, diz Diego.
O boca a boca gerava conexões. Uma mensagem de Baco Exu do Blues pelo Instagram foi o contato que depois deu à luz o “Bluesman” premiado em Cannes.
“O Deezer também nos procurou, dizendo: vocês têm o pulso para falar com os clientes que preciso atingir… Fizemos um projeto com o Emicida que depois culminou num show dele na casa.”
A presença da música no portfólio não é de hoje. Numa manhã de 2015, pipocou uma mensagem de Ajaz na caixa de e-mails de Diego e Hugo: o Usher quer falar com vocês sobre um projeto.
Eles ficaram encafifados, achando que talvez fosse alguém do time global. Por Skype, descobriram que Usher era mesmo o Usher, o cantor americano.
“Ele sempre tinha sido mais focado em pop, balada, nada ativista”, diz Diego. Agora, tinha uma nova faixa (“Chains”) mais densa, política, contra a violência policial nos Estados Unidos — e não queria simplesmente lançá-la no Spotify.
“Trouxemos a ideia de que, para ouvir aquela música, você teria de ‘encarar o problema’. A gente colocaria fotos de vítimas reais e suas histórias, e as pessoas teriam que olhar nos olhos delas; se virassem o rosto ou olhassem para o lado, a música parava”
Eles acionaram a AKQA Londres para ajudar na parte de tecnologia.
“Por uns meses, os programadores ingleses entravam direto nos nossos calls. Essa dinâmica é muita boa, mas a galera ficava meio maluca com a gente, dizem que somos os mais caóticos”, brinca Diego.
Outro projeto concebido em casa e executado com o suporte tecnológico londrino surgiu por conta do lançamento da terceira temporada de Stranger Things, em 2019, na Netflix.
O time de São Paulo resgatou uma gambiarra oitentista: usar bombril para melhorar a recepção das antenas de TV. Hugo conta:
“Criamos um app em que, ao aproximar o bombril do celular, a imagem melhorava e sintonizava ‘sinais de TV dos anos 80’ [cenas da série]. As pessoas perguntavam: ‘cara, que tecnologia vocês usaram, como faz isso?!’”
O truque foi usar o magnetômetro embutido nos aparelhos como detector de metal, reconhecendo a palha de aço por proximidade. Ao afastar o bombril, a tela voltava a mostrar um chuvisco de TV sem sinal.
O app Stranger Antenna ganhou até um tutorial com a presença nostálgica de Carlos Moreno, antigo garoto-propaganda de Bombril.
“Foi engraçado, vimos os vídeos que o pessoal estava a postar: minha mãe não está entendendo nada por que eu estou a roubar o bombril dela”, diz Hugo, aos risos.
Em 2019, um artigo na Science inspirou a AKQA Casa a pensar um projeto ambiental. Dois colaboradores bolaram a ideia de um “escudo digital” para proteger reservas florestais.
O plano era usar uma base de dados global sobre áreas protegidas para criar um código open source que permitisse rastrear, disparar alertas e até desativar remotamente caminhões e tratores usados em extração ilegal de madeira e minérios. Diego diz:
“Falamos com o time de Melbourne e descobrimos que era um código relativamente simples. Foi mágico chegar numa solução com uma tecnologia superfácil, escalável”
Para materializar o Código da Consciência, eles acionaram players do setor de extração mineral e vegetal, e entidades como o Instituto Raoni. O próprio cacique esteve na casa para conhecer o projeto (e provar o pudim da Mazé).
Inscrito pela AKQA Melbourne, o Código da Consciência rendeu uma presença no ranking da Fast Company de melhores ambientes de trabalho para inovadores.
O desafio agora é convencer fabricantes a adotarem a solução. A AKQA Casa enviou protótipos do chip com o código (e esculturas de animais em vias de extinção feitas com sobras de madeira) para presidentes de dez empresas do setor, sem maiores avanços por enquanto.
“Nunca pretendemos ganhar dinheiro com isso”, diz Hugo. “Estamos procurando parceiros que peguem esse projeto e implementem.”
A pandemia, claro, fechou temporariamente a casa. “A Mazé, agora, está a sofrer imenso, porque não tem ninguém para puxar as orelhas”, brinca Hugo (ele próprio hoje em home office no Porto).
Enquanto Jair Bolsonaro desdenhava a “gripezinha”, um contato com a empresária do Criolo mobilizou a AKQA Casa num dos projetos que mais engajariam o time emocionalmente.
O lançamento do clipe “Não Existe Amor em SP”, de Criolo e Milton Nascimento, virou uma campanha para angariar fundos para moradores de rua, com apoio da Sitawi e da Benfeitoria. Diego conta:
“No momento em que estava todo mundo sensibilizado, se fechando em casa com as famílias e criando o seu bunker, fugindo da pandemia, a gente quis levantar essa bandeira: não vamos esquecer dos moradores de rua”
Imagens de Criolo e Milton no estúdio foram intercaladas com takes de ruas (quase) desertas. E pegando carona na onda das projeções que se espalhava pelo Brasil, o clipe foi projetado simultaneamente em empenas de prédios pelo país afora.
“Foi muito desafiador, todo mundo trabalhando de casa, conectando projetores pelo Brasil”, diz Diego. “Mas teve um resultado surreal. Saiu na Globo, SBT, em tudo que é jornal.”
A meta de arrecadação batida não foi a única recompensa. “É gratificante quando nossos ídolos aprovam o trabalho. Fizemos uma live no Instagram com o Criolo e o Milton, e todo mundo chorou, mexeu com o coração de todos na agência.”
Juntos há mais de uma década, Diego e Hugo celebram a química que nasceu lá na Ogilvy, em 2009, quando começaram a trabalhar em dupla. Desentendimentos foram poucos; briga, nenhuma. Segundo Hugo:
“A gente brinca que, se fosse o Tinder, seria ‘o maior match da história’. O motivo de ter dado tão certo entre nós é que estávamos alinhados no tipo de trabalho que queríamos fazer e na energia que queríamos dedicar”
Hoje, eles atuam também como CCOs (Chief Creative Officers) globais da AKQA. Diego explica que o objetivo é escalar, por toda a rede, esse jeito de trabalhar criando soluções desformatadas.
“Nosso papel é conhecer os talentos na ‘cozinha’ de cada escritório e conectá-los com a melhor pessoa para cada trabalho: por exemplo, um cara especializado em música de Gotemburgo para trabalhar com um designer do subúrbio de São Paulo… Esse olhar diverso ajuda a AKQA a ser o que é hoje.”
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