A expressão “viajar na maionese” talvez nunca tenha feito tanto sentido. Alguns anos atrás, o chileno Matías Muchnick, economista de formação, resolveu pensar numa forma diferente de fazer maionese, sem ovos. Por trás desse objetivo havia uma ambição maior: provocar uma revolução alimentar, capaz de sacudir, no longo prazo, toda a indústria de produção de alimentos.
Matías, 30, é o CEO e um dos sócios fundadores da NotCo. A foodtech desenvolveu um algoritmo de machine learning que sugere substitutos vegetais para ingredientes de origem animal, preservando sabor, cor, textura e consistência. Batizada de Giuseppe (em homenagem a Giuseppe Arcimboldo, o excêntrico gênio italiano do século 16 que pintava retratos com imagens de frutas e verduras), a ferramenta vem sendo aplicada para testar receitas veganas de maionese, leite, sorvete, iogurte e carne.
Primeiro produto da startup, a Not Mayo, ou não-maionese (com grão de bico em vez de ovos), conquistou 10% de market share no Chile em menos de um ano. Em um teste às cegas, 98% dos consumidores ficaram convencidos de que era uma maionese comum. Agora, a Not Mayo chega às gôndolas do Pão de Açúcar, no Brasil, e “a ideia é competir diretamente com os maiores players de maionese do mercado brasileiro”.
Em visita ao país para palestrar no Food Forum 2019, o empreendedor chileno falou ao Draft sobre a gênese de sua startup (que acaba de receber um aporte de 30 milhões de dólares), a indústria de alimentos e os planos para o Brasil.
Por que você deixou o mercado financeiro para empreender?
Eu trabalhava com private banking e administrava o dinheiro de famílias muito ricas. Eram diferentes fundos, e percebi que o denominador comum desses grupos é que quem havia criado a fortuna era um empreendedor. Em paralelo, conversando com outros empreendedores, eu os via realizados com seus sonhos. Ao mesmo tempo, me olhava no espelho e pensava: estou fazendo as pessoas mais ricas, mas não estou fazendo nada para o mundo, não estou fazendo algo pelo que realmente sou apaixonado. Sou bom em finanças, mas isso não quer dizer que eu ame. Olhando tudo isso, pedi demissão.
Como se deu a sua entrada no setor de alimentos?
Estamos em um ponto em que a tecnologia e a ciência podem fazer praticamente tudo. Mas, ainda assim, a gente continua comendo pior que os nossos avós. Ingerimos muita comida processada e com ingredientes complexos. Você entra no supermercado e sai mais confuso do que quando entrou, porque não entende os rótulos. Precisaria ser um químico para entender [tudo] o que está escrito ali e é inacreditável que a gente não se preocupe com isso.
É um sistema predatório para nós mesmos, porque afeta nossa saúde, e muito predatório para o meio ambiente. Isso chamou minha atenção e eu quis entender por que isso estava acontecendo
Foi então que criou sua primeira startup?
Eu não sabia nada sobre o setor alimentício e, mesmo assim, criei minha startup de alimentos. Contratei uma empresa de P&D [pesquisa e desenvolvimento] para criar comida à base de plantas. Um ano depois, meu dinheiro havia acabado e o produto desenvolvido tinha um sabor ruim. Mas eu tinha que aprender sobre a indústria alimentícia, então fui vender a maionese.
Comecei essa jornada vendendo um produto que não era saboroso, mas que eu acreditava ser mais saudável. Nessa época, eu era o cara que colava o rótulo, colocava os potes nas caixas, colocava as caixas no carro, vendia ao supermercado. Percebi que seria necessária uma nova tecnologia, uma nova ciência, para fazer a revolução alimentar. Como a empresa foi bem, eu a vendi e fui estudar nos Estados Unidos.
Sua formação é em finanças. Como você vislumbrou essa nova tecnologia necessária para a revolução alimentar que pretendia fazer?
Fiz uma pós-graduação em Berkeley e lá abri meus olhos para a bioquímica. Assisti às aulas não para me tornar bioquímico, mas para entender a dinâmica, e o que vi lá foi inacreditável. Todo mundo trabalhava na indústria farmacêutica, que trata apenas os sintomas. Nada estava sendo investido na prevenção. E havia muita tecnologia. Aqueles caras estavam sintetizando alguns tipos de proteínas no cérebro para deter os sintomas do Alzheimer, sem causar outras reações no corpo. Eu vi essa indústria realmente desenvolvida e me questionei por que na indústria alimentícia não havia nada disso.
Nessa época, que tipo de solução você imaginou?
Há um problema claro na indústria alimentícia. A gente alimenta os animais com plantas para retirar deles ovos, leite e carne. Isso é absolutamente ineficiente. Por que a gente não produz ovos, leite e carne a partir das plantas, tirando o animal da equação? Então, seria preciso criar uma nova tecnologia e trazer a inteligência artificial para o debate.
Foi então que você saiu em busca de sócios?
Fui para Harvard fazer um curso e conheci Karim [Pichara]. Ele trabalhava no departamento de astrofísica e fazia algo supercomplexo: extrair dados de telescópios e desenvolver algoritmos de machine learning para entender a densidade da atmosfera e outras coisas. Mas, no fim do dia, o que ele fazia era entender coisas complexas, e um dos maiores problemas da indústria de alimentos é que nós não somos capazes de entender por que leite, ovo e carne têm o sabor que têm.
Para mim, se a gente conseguisse replicar a experiência sensorial de produtos à base de animais usando plantas, nós conseguiríamos substituir esses alimentos no mercado
Agora, imagine eu, que sou de finanças, falando isso para o Karim. Eu disse: “Tenho uma ideia, você pode me ajudar?”. Para minha total surpresa, ele disse “sim” e aí começamos a desenvolver o algoritmo [de machine learning] e treiná-lo.
E como você chegou ao seu outro sócio, Pablo Zamora?
Precisávamos de alguém que entendesse de plantas. Há mais de 400 mil espécies de plantas e só usamos uma pequena parte delas: soja, milho, mandioca, alguns grãos. A gente não conhece 99% das plantas. Conversei com um amigo meu que trabalha na Nasa, porque sabia que ele conhecia os melhores cientistas do mundo, e perguntei: “Você conhece alguém que entenda muito de plantas?”. Ele conhecia, e me indicou o Pablo. Era o cara que a gente precisava. Ele disse “não” na primeira reunião, mas três semanas depois ligou dizendo que estava interessado.
Quanto tempo levaram até desenvolver a Not Mayo? E como chegaram a esse nome de produto e ao nome da empresa?
Voltamos para o Chile e um ano depois lançamos a Not Mayo. É um produto que tem tudo o que você quer em uma maionese e não tem o que você não quer. O rótulo é simples, é algo que você lê, entende e quer dar aos seus filhos. E o sabor é bom. Então é um produto saboroso, saudável, à base de plantas e sustentável. Nosso desafio era como convencer as pessoas que comem ovos e não se preocupam com o meio ambiente a comer a nossa Not Mayo. Decidimos contar a nossa história às pessoas. Elas iriam entender. E daí veio o nome da empresa, The Not Company, e os nomes dos produtos seguiram a mesma linha.
Todo mundo sabe que há algo de errado na indústria de alimentos, então o “Not” fez sentido. Foi uma grande aposta. As pessoas de marketing diziam que não daria certo. Eu pensei: se a gente vai ser disruptivo, que seja em tudo
A aceitação foi boa, pelo visto…
Em oito meses, o produto alcançou 8% de market share no Jumbo, que é como [se fosse] o Pão de Açúcar no Chile. Naquela época, 83% dos nossos consumidores não eram veganos. Eles compravam leite, ovos, carne e a Not Mayo. E aconteceu uma coisa louca: as pessoas começaram a tirar fotos com a Not Mayo e postar nas redes sociais, dizendo que era um propósito e não um produto.
Em dois anos estávamos em todas as lojas do Chile. Conseguimos uma tração incrível, e no final de 2017 conquistamos nosso primeiro round de investimento, com a Kaszek, que nos ajudou a escalar o negócio. No final de 2018 nós tínhamos um produto à venda e temos mais cinco prontos para serem lançados. Em fevereiro, fechamos nosso segundo round, de 30 milhões de dólares. Agora estamos chegando ao Brasil.
A Not Mayo está chegando às gôndolas do Pão de Açúcar. Como se deu essa negociação? Há exclusividade? Ou planos de ingressar em outras redes?
O GPA foi visitar a NotCo cerca de um ano atrás. Um executivo pegou o avião, foi conhecer nossa fábrica, o laboratório, a equipe. Nós não esperávamos de forma alguma. Aliás, a gente nem sabia quem era o GPA. Ficamos em negociação por mais de um ano. E estamos vendo a exclusividade com o GPA. Estamos abertos a entrar em outras redes, mas é algo que estamos em negociação.
Quais as expectativas da NotCo para o Brasil?
O Brasil vai se tornar nosso principal país em 2019 ou 2020. Ainda temos muito a fazer, porque temos uma tração de dois anos no Chile, mas o Brasil será o país líder.
Vemos o Brasil como uma oportunidade gigante, onde há um consumidor que merece coisas melhores. Estar aqui não passa só por uma decisão de negócio. É claro que tem que ser lucrativo, mas o mais importante é estar aqui, mudar a indústria alimentícia e começar a revolução no Brasil
A intenção é produzir localmente no Brasil?
Estamos buscando parceiros de produção interna para produzir localmente. Temos parcerias em andamento, mas não fechadas. Achamos importante produzir localmente pelo tema da sustentabilidade, para não ter que mandar de um lugar a outro água, azeite, coisas que se pode conseguir localmente. Não tem sentido. E a logística fica muito mais fácil. Em seis meses devemos estar produzindo localmente tudo que vendemos no Brasil.
Pode contar um pouco sobre os planos de contratações no país?
Não podemos abrir detalhes e projeções de contratações, mas, na matriz, temos brasileiros no board de diretores e gerentes. Dentro da equipe em geral, temos diversas nacionalidades, como holandeses, alemães, chilenos, brasileiros, argentinos etc.
Sobre o aporte de 30 milhões de dólares: como esse dinheiro será gasto?
Temos três focos para o dinheiro: desenvolver o time, a tecnologia e a ciência; lançar novos produtos; e expandir internacionalmente para Argentina, Brasil, México e Estados Unidos nos próximos dois anos. O Brasil é nosso foco principal hoje e é o primeiro país, fora o Chile, a ter nosso produto. A Giuliana Vespa [ex-Ambev] está comandando a operação aqui.
Parte do aporte veio do Bezos Expeditions, family office do Jeff Bezos, da Amazon. Como você o convenceu a investir? Ele chegou a experimentar o sorvete, ainda em fase de testes?
Não tivemos feedback ainda sobre o que ele achou do sorvete. De verdade. Mas para ele não era necessário provar. Ele olhou a nossa tecnologia, o time, a tração de mercado que conquistamos e viu que a gente estava fazendo a diferença. É o primeiro investimento dele na América Latina — e o primeiro em comida.
Como você avalia o ecossistema brasileiro de inovação e empreendedorismo, hoje, na comparação com o Chile e outros países da América do Sul?
Espetacular, muito desenvolvido! O Chile também é um país desenvolvido em termos de empreendedorismo, mas aqui há mais histórias de sucesso.
Na América Latina não há outros unicórnios além do Mercado Livre. No Brasil há o Nubank, 99, Stone. Há grandes
Além de propor substitutos vegetais para ingredientes de origem animal, o Giuseppe [algoritmo de machine learning da NotCo] ajuda a reduzir custos e o uso de recursos naturais. De onde vêm os dados analisados pelo algoritmo? Ele é licenciado a outras empresas? Poderia ser aplicado a outras indústrias?
São diferentes fontes de dados, muitas delas proprietárias. Há cerca de 30 mil plantas [na base de dados]. Não licenciamos o algoritmo para nenhuma empresa e, sim, ele poderia ser adaptado a outras indústrias.
Foodtechs que criam comidas veganas em laboratório são alvo de críticas de que os produtos seriam os “próximos transgênicos”. Há receios quanto à falta de regulação desses alimentos. Como a NotCo se posiciona sobre o tema?
A NotCo analisa alimentos de origem animal em nível estrutural e cruza diferentes bases de dados para recriar esses alimentos usando apenas vegetais. Além disso, eles são feitos e produzidos da maneira mais natural possível, sem o uso de aditivos químicos, alergênicos, transgênicos etc. Restringimos, além da soja, alimentos que não sejam sustentáveis na cadeia produtiva — por exemplo, óleo de palma. Não nos enquadraríamos nesse quesito específico de manipulação de alimentos.
O Brasil tem quase 30 milhões de vegetarianos, 14% da população, segundo pesquisa do Ibope de 2018. A NotCo mira esse nicho ou vocês estão de olho em um público mais amplo?
A NotCo está focada em conquistar todo mundo. Veganos e vegetarianos são os personagens conscientes, mas temos que fazer com que as pessoas se alimentem melhor sem se dar conta disso. É nossa responsabilidade fazer produtos saborosos e acessíveis à base de plantas. É a forma como pensamos.
O Not Burger ainda está em fase de testes. E alguns potenciais concorrentes brasileiros (Fazenda do Futuro e Behind The Foods) estão se antecipando e chegando agora ao mercado. A estratégia da NotCo é impactada por esses novos produtos brasileiros?
A nossa estratégia não muda por conta do surgimento de produtos veganos. Nós acreditamos que, quanto mais pessoas estiverem fazendo suas revoluções por um mundo mais sustentável, melhor. Isso inclui também as empresas.
Nós não queremos competir com quem oferece alternativas veganas ou vegetarianas. Nossos maiores competidores são os produtores tradicionais, que vendem carne, leite, maionese com ovos etc.
Você é vegano ou vegetariano?
Sou vegetariano há dois anos. É difícil não ser vegetariano sabendo o que acontece na indústria alimentícia. Geralmente eu não como alimentos à base de animais, mas eu ainda não tenho meu iogurte, o meu sorvete, e ainda amo essas duas coisas. Quando a NotCo lançar o sorvete e o iogurte eu serei vegano.
Depois da Not Mayo, quais serão os próximos produtos da NotCo no Brasil?
O Not Milk e o Not Ice Cream chegam ainda em 2019.
Como você se vê daqui a dez anos? Qual o legado que você pretende deixar?
Velho e feliz. [risos] Eu não sei o que vai acontecer em dois anos, ou dez anos. Eu espero olhar para trás e dizer: “Nós fizemos algo fantástico”.
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