Uma das maiores produtoras de soja e algodão do país, a SLC Agrícola avalia que o agro brasileiro entrou em uma nova fase. Não precisamos desmatar nem mais um hectare de terra para plantar ou criar gado, diz Álvaro Dilli, 60, diretor de RH e Sustentabilidade da companhia. Maximizando as áreas de pecuária e melhorando a tecnologia de produção, completa, podemos alimentar a população pelo menos até
2050.
Diante dessa avaliação, a empresa adotou, desde o ano passado, uma política de desmatamento zero. Daqui em diante, explica Dilli, os ganhos de produção virão com tecnologia e inteligência. Nos principais mercados de atuação da empresa, soja e algodão, a agricultura sustentável “certificada e rastreável”, como afirma, não é mais uma questão de nicho. Quem estiver fora desses parâmetros estará fora do jogo –principalmente no que se refere a exportações para a União Europeia, que tem fechado o cerco ao agronegócio menos responsável.
Dilli, engenheiro agrícola de formação, nascido em família humilde no interior do Rio Grande do Sul, está na SLC desde os anos 1980. Acompanhou de perto a evolução do agro brasileiro – desde a chegada das ideias ESG ao setor, sob a pecha de “discurso ecochato”, até seu mais recente processo de consolidação, com a adesão dos principais players do mercado.
Experiente, o executivo prega uma “tropicalização da agenda ESG”. A Europa, diz, está muito atenta às questões ambientais, mas no Brasil elas não podem ofuscar o imenso desafio social que se coloca diante de nós: como as empresas, em especial as do campo, que ele considera uma espécie de “última fronteira do ESG”, podem oferecer melhores condições de trabalho, de educação e desenvolvimento, além de impactar positivamente as comunidades ao redor?
Outro desafio, segundo ele, é levar o discurso da diversidade, da inclusão e da igualdade de gênero a uma área tão conservadora como o agronegócio, feita de “homens valentes” que se sacrificaram para abrir fronteiras agrícolas. Mesmo aí, contudo, sinaliza avanços.
Confira a seguir a entrevista que Dilli deu com exclusividade a NetZero.
NETZERO: Você se formou em engenharia agrícola nos anos 1980. O que te levou para essa área?
ÁLVARO DILLI: Sou de uma família humilde de São Lourenço do Sul (RS), mas minha vida toda passei em
Pelotas (RS), uma cidade mais desenvolvida. Tenho cinco irmãos e fui criado em um ambiente em que a gente precisava muito da ajuda dos avós e tios. Durante o período de férias escolares eu ia para o sítio do meu avô. Ele criava frango, plantava verduras, tinha mel, e isso foi me dando um entendimento maior sobre esse ambiente de hortifrútis.
Meu sonho era ser engenheiro em uma indústria de equipamentos para a agricultura. Eu me formei na década perdida no Brasil, os anos 1980. Enviei cem cartas com currículo datilografado e só voltaram umas 15 delas, com negativas. Mas uma tinha uma oferta. Era da SLC Indústria e Comércio, para trabalhar em uma fazenda pequena no interior de Goiás, a primeira da empresa fora do Rio Grande do Sul. Eu precisava trabalhar e resolvi encarar o desafio. Tornei-me gerente dessa fazenda e, ao todo, passei 12 anos lá.
Depois desse período você foi para o corporativo da SLC?
Depois dessa fazenda eu fiquei quatro anos em outra, mais desenvolvida e consolidada, onde desenvolvi um projeto de qualidade de algodão. Então fui chamado para a matriz para ampliar esse projeto. O algodão ali no início dos anos 1990 era uma cultura novíssima, e chamava a atenção a complexidade do cultivo, o manejo, o uso de defensivos agrícolas.
E como você migrou para Sustentabilidade e Recursos Humanos?
Quando a empresa saiu do interior de Horizontina para Porto Alegre, fui convidado a assumir a área de Recursos Humanos. Em 2007, fomos a primeira companhia de commodities agrícolas no mundo a abrir capital na Bolsa de Valores. Aí surgiu um tema importante, que foi o meio ambiente. A gente tratava isso na companhia como uma questão fundiária, saber a origem da terra, manter a reserva legal obrigatória e as APPs [Áreas de Proteção Permanente], licenças e legislação. Mas após a abertura de capital houve uma demanda para ir além de cumprir a legislação.
Então a SLC começou a se preocupar mais com o tema ambiental?
Na época a empresa não tinha pessoal com afinidade com meio ambiente, então fui chamado para organizar essa área. Imediatamente contratei um engenheiro ambiental para nos ajudar. No final de 2008 aconteceu outro fato importante, que foi um empréstimo que a SLC fez com a IFC [Corporação Financeira Internacional, na sigla em português] que é um braço do Banco Mundial para financiar empresas privadas, e esse crédito tinha exigências associadas que iam muito além da legislação. Chamaram a nossa atenção as questões ambientais e sociais. Então começamos a trabalhar com um conceito mais abrangente, que na época chamamos de Sustentabilidade.
Outro marco foi em 2008, quando entramos na Round Table on Responsible Soy Association, a RTRS, e esse movimento foi muito importante. A soja era uma cultura crítica em função das fronteiras: as pessoas usavam a pecuária para fazer o desmatamento e logo depois vinha a soja. A RTRS introduziu uma régua muito alta, em que poucos produtores passavam. A SLC foi a primeira a entrar na associação, junto
com a Maggi. Na sequência eu entrei para o board da RTRS e fique lá por dois anos, quando desenvolvemos cinco princípios, 27 critérios e 99 indicadores para aplicar a filosofia da associação.
Qual foi o impacto da entrada na RTRS para vocês?
Quando entramos na RTRS tivemos a visão de que o futuro da agricultura era ser certificada, rastreável e responsável. Lá em 2008, 2009, a empresa ainda tinha receio disso, parecia um discurso muito “verde”, meio “ecochato”.
Era uma empresa que vinha se desenvolvendo em fronteiras agrícolas, então o discurso era “o que vamos ganhar com isso?”, “ninguém vai pagar a mais por soja certificada”. Mas à medida que
fomos discutindo com mais profundidade, ficou claro que aquele era um caminho importante. Vimos com o RTRS que a Europa queria comprar soja sustentável, e a SLC tinha que atingir todos os mercados, mesmo os mais críticos, que exigem rastreabilidade. Fomos fazendo um trabalho de fazenda a fazenda para garantir uma qualidade de vida na fazenda, incluindo o controle da jornada dos colaboradores, transporte, infraestrutura. Hoje temos 80% das nossas propriedades RTRS.
A soja é a principal cultura da SLC?
Sim, a área maior é soja, seguida por algodão e milho. Temos 22 fazendas e 670 mil hectares plantados em sete Estados, com mais de 5.000 colaboradores.
Como esse projeto de soja sustentável avançou na última década?
Na época era para ser algo predominante: toda a soja brasileira deveria estar RTRS, mas devido a todas as dificuldades isso não aconteceu. Agora que a União Europeia está exigindo a rastreabilidade para acessar o mercado, a tendência é que os processos de certificação aumentem ainda mais.
Isso acontece só na soja?
O algodão também passou por esse processo, que eu liderei com a Associação Brasileira de Produtores de Algodão, com a “Better Cotton Iniciative” [presente em 21 países]. Eu fui do board da Better Cotton, representando a Abrapa, enquanto desenvolvíamos um esquema que tem rastreabilidade muito maior que a soja. Com o algodão a gente tem como saber exatamente de onde veio a fibra. Hoje o Brasil é o maior produtor de algodão com essa certificação no mundo, e a SLC representa 10% da produção de algodão nacional. Todo nosso algodão é “Better Cotton”.
A indústria e os clientes finais valorizam esse esforço?
Acho que hoje em dia o varejo está preocupado com isso. Redes como C&A, Lojas Renner, Reserva, já estão usando o selo “Sou de Algodão”.
Está crescendo no varejo tanto a questão do algodão sustentável como do algodão orgânico, que também é uma tendência, mas esse vai ser mais de nicho. Já o algodão rastreável e responsável não é um nicho: quem não aderir a isso vai estar fora do mercado.
Como você avalia a agricultura brasileira em relação à sustentabilidade?
A agricultura brasileira é sustentável por vocação. Temos problemas nas bordas, nas fronteiras, próximo à Amazônia. Temos maus produtores, maus pecuaristas, desmatamento ilegal, mas avançamos muito. Inclusive, a SLC está com política de desmatamento zero desde 2021. Não vamos crescer mais transformando área, acabou o período de expansão por áreas nativas.
Para ampliar a produção no Brasil não é mais preciso desmatar?
Não. Hoje nós podemos fazer mais por menos, não precisamos ampliar área. A agricultura brasileira é a mais desenvolvida do Hemisfério Sul, e temos uma vantagem em relação ao Norte, onde a maior parte do tempo o clima é gelado: conseguimos tirar mais de duas safras de soja e milho por ano.
Também somos um dos maiores países do mundo a utilizar plantio direto. Isso mantém no solo o carbono e a água, não revolve o solo. Temos uma gestão de irrigação com menos impactos que nos Estados Unidos, Austrália, China e Índia, que irrigam muito mais e utilizam muito mais água. O país está consagrado como produtor responsável, com um agro forte, organizado. Agora precisamos acabar com o desmatamento.
O Brasil não precisa desmatar nem mais um hectare de Amazônia para atender a população até 2050. Podemos fazer isso apenas maximizando as áreas de pecuária e melhorando a tecnologia de produção.
O foco ESG do agro é mesmo em meio ambiente?
No olhar da Europa, a grande preocupação é ambiental, mas a gente precisa tropicalizar o ESG. Existem outras agendas importantes.
Quais?
A social. Ela entra no desenvolvimento das pessoas, dando boas condições a elas. Estamos falando de fazendas, de lugares no interior do interior, que têm que ser atrativos para as pessoas deixarem a cidade. São famílias inteiras, que precisam de escolas e transporte, de alojamentos com ar-condicionado, de ambulância dentro da fazenda.
Também temos uma preocupação de ter ambiente seguro, práticas fortes de segurança no trabalho, taxas baixas de acidentes com afastamento. Há dez anos tínhamos 13 acidentes a cada milhão de horas, e hoje reduzimos para dois. A meta é zero.
Como a pandemia impactou a agenda ESG da SLC?
A pandemia acelerou o processo de educação e inclusão digital. Criamos espécies de LAN Houses nas fazendas para treinamentos diversos. Nos anos 1990 o desafio era ter um clube dentro da fazenda, com futebol, vôlei etc. Hoje a fazenda precisa ter internet.
Também investimos muito para ter rede 4G nas nossas unidades. Hoje temos 4G não só na sede, mas em toda a fazenda, porque as máquinas estão conectadas. Isso beneficia inclusive moradores de cidades próximas, que acabam tendo acesso a esse sinal.
Quais os desafios específicos do agronegócio em relação à agenda ESG?
O ESG é parte da sustentabilidade. Vejo ele com uma visão financeira, com métricas, e também como reputação. Afinal, qual é o risco, hoje, de colocar dinheiro em uma empresa com trabalho forçado ou poluidora? Os desafios são muito grandes no agronegócio. Talvez sejamos o último reduto para que o ESG aporte com força e isso vai nos dar uma condição melhor de gestão e de governança, vai ajudar a cuidar melhor das finanças e das pessoas.
A SLC tem sido pioneira em muitas coisas, disruptiva e inovadora até para abrir capital, e hoje vemos outros bons produtores querendo se aproximar desse estado da arte da gestão. Uma gestão de alta eficiência e baixo impacto, com pessoas engajadas.
Considerando a diversidade e a desigualdade que encontramos no país, como a SLC lida com as comunidades próximas às suas fazendas?
Evidentemente, a SLC não é uma ilha de prosperidade em cidades com problemas. A gente procura impactar positivamente as comunidades. O grupo SLC mantém um instituto, que, de 2019 para cá, acabou sendo um canal de melhorias sociais. Estou há anos nesta empresa e nunca tivemos uma invasão, nunca tivemos pressão da sociedade para que não operássemos, porque temos uma preocupação de usar mão de obra local, ajudar a desenvolver as cidades. A questão do aproveitamento do 4G é um exemplo.
Nosso papel é tentar equilibrar um pouco melhor as forças sociais. O grande desafio para nós no Brasil é a diversidade e a inclusão no agro. Este é um meio feito por homens valentes, heróis que saíram de suas casas para desbravar o Centro Oeste e a Amazônia, então colocar esse assunto da diversidade é um desafio na companhia. Já temos 15% dos funcionários e de lideranças femininas e estamos avançando com esse tema, com programas de empoderamento feminino. Esse é um assunto muito recente no agro, mas estamos trabalhando para melhorar e equilibrar essas tendências, incluindo também a contratação de colaboradores com deficiências.
O bagaço de malte e a borra do café são mais valiosos do que você imagina. A cientista de alimentos Natasha Pádua fundou com o marido a Upcycling Solutions, consultoria dedicada a descobrir como transformar resíduos em novos produtos.
O descarte incorreto de redes de pesca ameaça a vida marinha. Cofundada pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, a Marulho mobiliza redeiras e costureiras caiçaras para converter esse resíduo de nylon em sacolas, fruteiras e outros produtos.
Aos 16, Fernanda Stefani ficou impactada por uma reportagem sobre biopirataria. Hoje, ela lidera a 100% Amazonia, que transforma ativos produzidos por comunidades tradicionais em matéria-prima para as indústrias alimentícia e de cosméticos.