No início deste ano chegou ao mercado a primeira água mineral engarrafada sem fins-lucrativos. Mais que isso: o lucro da venda do produto é inteiramente destinado ao propósito social de aumentar o acesso à água potável no sertão do país. Tudo isso foi embalado e cabe em uma garrafinha de nome AMA, que está em supermercados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Vendida e um preço médio de 2 reais a embalagem de 500 ml, todo o lucro — atualizado por meio de um “lucrômetro”, no site, que aponta cerca de 74 mil reais até o momento — é revertido para projetos que levam água potável a comunidades do semi-árido nordestino.
Mas o que deu na cabeça da Ambev, que sequer tem água mineral em sua linha de produtos, para criar um projeto como esse? Primeiro, consideremos que este mercado movimenta mais de 10 bilhões de reais ao ano, só no Brasil, e cresce em média 20% ao ano. Mas há mais aí. Carla Crippa, 35, a advogada que assumiu a Gerência de Sustentabilidade da companhia em janeiro do ano passado e é uma das líderes do projeto Ama, conversou com o Draft. “A Ambev já tinha projetos de gestão da água, interna e externamente, mas queríamos fazer algo que realmente tivesse impacto na sociedade”, diz. “Fazemos bebidas, refrigerante, suco, cerveja. Ao mesmo tempo, 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água potável. Isso é um pouco antagônico e chocante.”
Essa consciência e sentido de urgência brotaram, em parte, graças às provocações feitas pelo programa Yunus Corporate Action Tank, um laboratório imersivo de “ideias revolucionárias” das empresas para o mundo, realizado pela Yunus Brasil desde 2016 com o objetivo de “incentivar grandes corporações brasileiras a orientarem sua vocação, expertise e tecnologia para a criação de gamechangers”. Isso foi o divisor de águas dentro Ambev.
“Fomos fazer o curso do Yunus sem expectativa, e começaram a vir as provocações. Eles cutucavam mesmo e nos provocavam, de forma muito alinhada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU”, diz Carla, que participou do programa junto com duas colegas da Ambev, além de representantes de outras grandes companhias brasileiras. “Eles nos diziam: vocês são grandes… há problemas no mundo… o que vocês podem fazer para ajudar? Será que vocês podem fazer mais do que já fazem? Legal, vocês têm uma área de Sustentabilidade, mas, será que não dá para fazer mais? Será que não dá para fazer de uma forma rentável, sem ficar uma coisa só de doação, que possa ser sustentável financeiramente?”
SINCRONISMO DA GOTA
Imagine ser gerente de sustentabilidade de uma das maiores empresas do país e ir dormir com essas perguntas ecoando na cabeça. Agora some a isso ser pressionada e desafiada também por um comitê de especialistas em Segurança Hídrica, que a própria Ambev estabeleceu para subsidiar as tomadas de decisão em matéria de água para a empresa.
Carla conta que a pressão, de um lado e de outro, acabou fazendo algo explodir: “Em uma reunião, tivemos um estalo: ‘poxa, de um lado somos provocados por especialistas para ajudar a resolver o problema da falta de água potável, do outro recebemos esse conteúdo do Yunus sobre negócios sociais… Vamos fazer um negócio social com água potável! Por que não fazer uma água que possa, por assim dizer, ajudar as pessoas?’. Falamos isso e ficou todo mundo empolgado com esse negócio de fazer um negócio social, uma coisa super inovadora, que ninguém tinha feito.”
Com a ideia debaixo do braço, mais especificamente em um pen drive, com uma apresentação de 60 slides montados para convencer a diretoria de que não só a Ambev deveria entrar no ramo de água mineral, mas fazer isso sem lucrar. Carla conta que ela e alguns colegas do projeto encontraram o presidente Bernardo Paiva no corredor e falaram que precisavam fazer uma apresentação. O que se sucedeu, quem trabalha no mundo corporativo sabe, é muito raro:
“No segundo slide da apresentação, o presidente já falou ‘beleza, acho legal para caramba, vão em frente’. Não precisou de convencimento nenhum”
A história da Ama é uma prova viva de que, no mundo corporativo, os negócios sociais não precisam ser contos de fadas, e podem levar empresas como a Ambev, que lucrou mais de 13 bilhões de reais em 2016, a abrir mão de seu ganho sobre um novo produto. Ainda que os 74 mil reais sejam irrelevantes ante 13 bilhões, o que fica é a ideia de que essa possa ser apenas a primeira gota de um novo caminho.
Carla conta que o passo seguinte foi formar o time para o lançamento de marca, “o mais rápido de que se tem notícia na companhia”, ela diz, pois foram apenas quatro meses entre o aval do presidente e a estreia nos supermercados, em janeiro deste ano.
A boa vontade também se refletiu em uma doação financeira. Antes da Ama chegar ao mercado, a Ambev doou recursos para viabilizar os três primeiros projetos.
Ao todo, 318 mil reais foram destinados à construção de “poços profundos” e canalização para distribuição de água potável nas cidades de Capistrano, Aiuaba e Jaguaruana, todas no Ceará. Os projetos beneficiam diretamente 3 mil pessoas.
Parece pouco, mas também pode ser um oceano. Gabriela Junqueira, 28, gerente de Inovação de Não-carbonatados da Ambev, conta como foi diferente, internamente, trabalhar no projeto Ama. “O engajamento era absurdo porque é uma marca muito gostosa. O cunho social fez com que todas essas pessoas olhassem com um carinho especial este projeto”, diz.
Ela conta que um dos objetivos do time foi que a água tivesse alguns diferenciais ante as concorrentes já existentes no mercado, além do cunho social. “Queríamos uma água com a menor quantidade de sódio possível, comparado a outras marcas do mercado, e também o Ph mais neutro possível”, conta.
LUCRO TRANSPARENTE, PROJETO SOCIAL TRANSPARENTE
Outro diferencial, por óbvio, viria na comunicação. Como a ideia era destinar todo o lucro para projetos do semi-árido, a Ambev teria de agir com total transparência no que tange a um tabu enorme: mostrar quanto há de lucro em cada produto. Vamos aos números: o custo de produção e transporte da Ama representa 45% de seu preço, 25% são os impostos, 5% vendas e marketing, os 25% restantes são lucro — são os reais que vão financiar a mudança social lá nos sertões.
Enquanto a equipe de Inovação se empolgava na criação do produto, especificando a composição desejada para a água, localizando o melhor fornecedor, em regiões com boa disponibilidade hídrica, desenvolvendo a embalagem e a marca que melhor apresentariam o conceito etc, a equipe de Sustentabilidade buscava o melhor parceiro local para implantar das iniciativas a serem financiadas com os recursos do novo negócio.
Carla conta que estava em uma palestra no Banco Mundial na qual falaram que de um modelo de acesso a água potável para áreas rurais de difícil acesso tinha foi escolhido como o melhor modelo de gestão comunitária de água do mundo. “E aí, mais uma vez, as coisas foram se encaixando”, diz.
Ela se referia ao Sisar, Sistema Integrado de Saneamento Rural, criado no Ceará em 1996 e que também opera na Bahia e no Piauí, atendendo atualmente mais de 500 mil pessoas com sistemas de água potável totalmente gerenciados pelas mais de 1 000 comunidades onde atua.
Carla conta que cada sistema constitui uma organização sem fins-lucrativos, formada pelas associações comunitárias das populações atendidas, com a participação e orientação da companhia estadual de abastecimento. Sob a mesma lógica de um negócio social, essa organização fica responsável pela prestação de assistência técnica, o controle da qualidade da água, o cálculo de tarifas e a emissão de contas, sem margem de lucro.
“No fim do mês, a conta chega com um valor bem abaixo do cobrado em sistemas tradicionais, porque é a própria comunidade que opera o sistema, dividindo despesas como energia elétrica, salário do operador da estação de tratamento e manutenção”, diz. Até o fim do ano a Ambev pretende, com os lucros da venda da Ama, instalar oito sistemas de água potável em comunidades do Ceará e da Bahia. Uma conta barata, dessas que dá gosto pagar.
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